Livros do Escritor

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domingo, 21 de julho de 2024

"Marketering"


 

Há uns tempos escrevi: “Aqui chegado, creio que só os simples são felizes”; a personagem que hoje vou abordar enquadra-se, de forma paradigmática, neste contexto, ficara muito aquém da escolaridade mínima – se bem que a escola jamais meça inteligências, apenas trabalho –, por conseguinte, vivia sob a asa dos pais, que eram donos de uma oficina, cedo aprendeu aquele sublime léxico (bielas, pistom, escape, correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) digno de qualquer profuso pensador, em verdade quem lhe estendia mais a asa era a mãe que, como para os livros prematuramente revelou total inépcia, logo o colocou na oficina, havia que providenciar a sucessão, e como o léxico era vasto (bielas, pistom, escape, correia-de-transmissão, pastilhas-de-travão…) tinha de apreendê-lo o mais cedo possível, o pai era mais exigente e afastado, todo o cabelo lhe fugira para o lábio-superior, e como se orgulhava daquela vasta bigodaça, certa tarde, não me recordo o motivo, tive de lhes bater à porta, estavam os três à mesa, pai, mãe e filho, mais comovente é impossível, da bigodaça paterna pingava azeite, chafurdava um prato de bacalhau, assim que me viu: “Então patrão, o que o traz por cá? É servido?” Na presença do pai, o filho esvaziava-se, impossível este pormenor passar despercebido a quem soubesse olhar, não por acaso, talvez para se arrogar de que conseguia ir além da esfera paterna, veio com a notícia de ir simultaneamente trabalhar numa outra área, quando se lhe perguntou qual, respondeu com uma pérola que até hoje guardo ciosamente: “Uma cena qualquer ligada ao marketering..”; risos ou lágrimas? Pois, a realidade em suspenso: risos ou lágrimas? E afirmou-o com a naturalidade de quem sabe do que fala, os seus horizontes cingiam-se à moto, ginásio, bebedeiras, namorada, e, por imperativo de sobrevivência, claro, a oficina, não lhe saíam três frases seguidas sem afirmar a sua masculinidade, regra geral, no uso dos punhos ou ameaça de os utilizar, longas epopeias, como sempre acontece quando a garganta é inversamente proporcional aos factos, até que, repentinamente, a namorada troca-o por outro, um acontecimento assim não é filho do instante, há muito tudo se jogava nos bastidores, e o “trocado”, pois, é sempre o último a saber, neste ponto, confesso que fiquei apreensivo com a saúde do sujeito que era agora titular do coração da sua ex, todavia, ele limitou-se às lamúrias, lágrimas e nada mais, dias transformaram-se em semanas, semanas em meses, meses em trimestres, e somente, da sua parte, lamúrias, lágrimas e nada mais, neste ponto da caminhada seguimos por vias distintas, registei apenas o facto de que, numa situação-limite, afinal, no lugar de punhos ou ameaça de os utilizar, limitou-se às lamúrias, lágrimas e nada mais, por norma a garganta é inversamente proporcional aos factos, ainda me recordo, como sempre acontece na tribo das motos, ou em qualquer outra, o rito assume sempre um papel-central, quando alguém chegava com uma nova, todos se imobilizavam em redor a observar, como devotos diante de um altar, em silêncio, devoção, deleite, espanto, passado algum tempo, começavam a andar em redor, como se romaria, as cabeças em gestos verticais de anuência, como nunca professei esta religião, por respeito, recuava uns passos e observava este rito de uma segura distância, meia-dúzia ou mais sujeitos a olhar boquiabertos e atónitos para um veículo, algo me escapava, felizmente continua a escapar, foi mais ou menos nesta altura que comecei a intuir o facto de a estupidez ter sido tão generosamente distribuída entre os homens, e o silêncio caído enquanto se imobilizavam em redor a observar, como devotos diante de um altar, pois, graças a Deus há horizontes que me foram sempre vedados, ele cumpria este rito com total abnegação, andar em redor, como se em romaria, a cabeça em gestos verticais de anuência, não nos podemos esquecer de que já estaria muito à frente para o seu tempo, não fosse um especialista em “marketering”, a última vez que o vi foi no meu local de trabalho, deslocara-se lá para resolver uma questão com o filho, como não o deixavam entrar berrava e gesticulava, quando me viu lá se acalmou, perguntei-lhe qual era o problema, aos berros respondeu-me, a apontar para a funcionária, “Aquela grande P… não me deixa entrar!”, lá o encaminhei e cessou o brado, naqueles breves instantes, senti proximidade e uma enormíssima distância com esta personagem, houve um ponto da caminhada em que seguimos por vias distintas, este facto é irreversível e dita muito de quem somos e sobretudo de quem fomos, por acaso esqueci-me de lhe perguntar se ainda está ligado ao “marketering”, se me revestir de paciência talvez, numa destas tardes, lhe bata à porta, e encontre os três à mesa, pai, mãe e filho, mais comovente é impossível, da bigodaça paterna pingue azeite, possivelmente chafurde um prato de bacalhau, e assim que me vir: “Então patrão, o que o traz por cá? É servido?”


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