Livros do Escritor

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quinta-feira, 25 de julho de 2024

É preciso andar para a frente…



Um dia destes, nas notícias, relatavam um acidente, com vítimas mortais, durante um evento, para contextualizar, a jornalista lá resolveu entrevistar alguns dos participantes, retive os lugares-comuns e a boçalidade final de um: “Pois, é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é preciso andar para a frente,” o meu pensar sentou-se aquando e depois de ouvir (“… mas é preciso andar para a frente”), o que mais feriu os ouvidos, para não falar do sentir, foi, talvez, a naturalidade da entoação, onde se denotava algum entusiasmo, como se remetesse o sucedido para um lugar bem pretérito, onde nem a memória já conseguisse alcançar, sei há muito que, quando daqui partirmos, continuamos a respirar na memória daqueles que nos amam, no entanto, ao saber da partida de três seres-humanos, o boçal ardilosamente colocou o ênfase no futuro, desvalorizando por completo o presente que, no fundo, é um constante passado, enfim, a verdade é que, a cada dia, me revejo menos na realidade circundante, longe vão os tempos em que, quando se falava de partidas, olhos no chão e pesar pelas faces, por outras palavras, havia respeito, pois, hoje diz-se adeus com demasiada facilidade, ou muito me engano, ou chegará o dia em que muito poucos, raríssimos, conseguirão dialogar olhos-nos-olhos,   a verdade é que, a cada dia, me revejo menos na realidade circundante, Platão sempre esteve certo, desconhecia apenas que a caverna seria um rectângulo sofregamente sustido entre os dedos, uma palavra silenciada, uma frase reprimida, “Hoje não vale a pena, mais vale guardar para amanhã… Para que é que me vou aborrecer?”, o telefonema que não apetece atender, e depois é tarde… Um pouco como aquele familiar que sempre vamos adiando a visita, por este ou aquele motivo, tempo, sobretudo paciência, até que um dia só o vazio do espaço que ocupava, e essa ausência que nos ameaça engolir, afinal, a sua dimensão era bem maior que se julgava, equivalente à saudade que nos habita, ainda por aqui a imagem de um casal, viviam nos subúrbios, empregos atrás de secretárias, filhos na escola, primeiro ela, depois ele, uma inversão ao olhar paterno, tudo bem, a saúde é que importa, ao olhar materno, aquando férias regressavam às origens, por outras palavras, à aldeia que a viu nascer, ela é que norteava os passos familiares, ele limitava-se a segui-la, da melhor forma possível, na véspera de Natal, era vê-la sair do prédio, em primeiro, muito direita, com o seu vison contrafeito, a armação do cabelo, construída à custa de muitos litros de laca, imperturbável face a qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase segundo-andar, a maquilhagem num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha ele, curvado, numa luta titânica para arrastar duas malas de volumetria assinalável, um fato-coçado em vários pontos, uma gravata anacrónica, seguia-se-lhe a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer som dali emergia, tal a sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, por fim, o filho, também se curvava por uma mala, o bom-senso de, dentro do possível, mitigar o esforço paterno, lá seguiam para a aldeia materna, ali chegados tudo se repetia, apenas o sentido se invertia, ela a primeira a sair do carro, muito direita, com o seu vison contrafeito, a armação do cabelo, construída à custa de muitos litros de laca, imperturbável face a qualquer intempérie, os saltos-altos de um quase segundo-andar, a maquilhagem num excesso de palhaço-pobre, em segundo, lá vinha ele, curvado, numa luta titânica para retirar duas malas, de volumetria assinalável, da bagageira, um fato-coçado em vários pontos, uma gravata anacrónica, seguia-se-lhe a filha, fones nos ouvidos, rectângulo na mão, qualquer som dali emergia, tal a sua alienada expressão, pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, por fim, o filho, que também se curvava, sobre a bagageira, por uma mala, o bom-senso de, dentro do possível, mitigar o esforço paterno, à porta os pais dela aguardavam-nos, a mãe sempre com uma expressão velada para a filha, só perante o genro e os netos se tornava solar e os gestos se  janela, o carro, repetia incessantemente que a filha não poderia ter realizado melhor casamento, ela é que norteava os passos familiares, repetia, com indisfarçável orgulho, aos mais próximos, quantos homens, após décadas de matrimónio, secundariam a mulher enquanto se digladiavam com duas robustas malas? Na Páscoa, tudo se repetia, no Verão igualmente, e os anos a sucederem-se, um dia, o filho vira-se para o pai e “Nunca vamos visitar a nossa avó-materna! Porquê?” Espanto pela face perante uma evidência tão crua, desde o casamento, de facto, como se costas para as suas origens e um irreversível amplexo pela família da mulher, quando, por acaso, lembrava ao tempo que não visitava sua mãe, o pai partira há muito, logo esta: “Para quê? A tua irmã está sempre lá metida! Ainda nos fazia sentir uns estranhos… E sabes bem como aquilo é longe! No Inverno é gelo, no Verão nem se consegue respirar… Um horror! Para quê lá ir? Falas com a tua mãezinha quase todos os meses. Não te esqueças de que ela sublinha bem a predilecção pelas filhinhas da tua irmã! Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, quando lhe relatou a questão do filho, ela limitou-se a: “Para quê? A tua irmã está sempre lá metida! Ainda nos fazia sentir uns estranhos… E sabes bem como aquilo é longe! No Inverno é gelo, no Verão nem se consegue respirar… Um horror! Para quê lá ir? Falas com a tua mãezinha quase todos os meses. Não te esqueças de que ela sublinha bem a predilecção pelas filhinhas da tua irmã! Isso faz muito mal à cabeça dos miúdos…”, que ninguém se esqueça do carácter irónico do tempo, um dos erros maiores na vida, foi numa manhã de Sábado, o telefone, foi a filha que atendeu, talvez de pastilha na boca, o mascar conferia-lhe um desagradável e deselegante ar bovino, a expressão, no entanto, ficou cinzenta, aproximou-se do pai “É a tia! Diz que precisa de falar urgentemente…”, um assomo de energia fê-lo levantar-se do sofá, a filha nem concluiu a frase, ele limitou-se a ouvir o que chegava do outro lado, não emitiu qualquer palavra, a sua expressão transparecia o sentir de alguém que sempre vai adiando a visita a um tão próximo familiar, por este ou aquele motivo, tempo, sobretudo paciência, influência do cônjuge, até que um dia só o vazio do espaço que ocupava, e essa ausência que o ameaça engolir, afinal, a sua dimensão era bem maior que se julgava, ela ladeou-o, talvez estivesse ao espelho, percebeu logo o sucedido, assim que ele desligou o telefone : “Pois, é lamentável, muito triste, mesmo muito triste, não devia ter acontecido, mas é preciso andar para a frente…”

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