Livros do Escritor

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domingo, 14 de julho de 2024

Capitulação


 

Os serões pouco divergiam, ele, no sofá, de rosto oculto, pelo jornal, para que ela não percebesse a chegada do sono, por seu turno, ela num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, o olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, volta e meia, resmungava-lhe “Não me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, com tanto barulho, lá se vê forçado a regressar à sua circunstância, ao metálico embater das agulhas e ao rectângulo onde se desenrola uma trama com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, olha-a da distância do seu sono, imensa por sinal, as mãos frenéticas, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, o olhar absorvido pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, por momentos, breves mesmo, pensou regressar ao seu sono, mas receou aquele brado de novo “Não me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”, assim sendo, fingiu interesse pelo que se desenrolava no rectangular écran, enquanto ela lhe debitava as mais recentes ocorrências, pelo menos duas vezes por semana desaguava naquela sala uma conhecida – sempre considerei a palavra “amiga” rara e preciosa –, o marido, nesses dois serões, juntava-se a um coro-litúrgico, enfim, há quem fuja de si por uma vida inteira, e, no caso desse sujeito, não se visualizava a mínima aptidão para o canto, pois, há quem fuja de si por uma vida inteira, e como são demasiado plurais os exemplos, para não passar esses dois serões sozinhas, esta conhecida optava por ali desaguar, e era só atravessar a rua, ao menos, enquanto as duas conversavam, aquele brado não regressava (“Não me digas que já estás a dormir! Acorda, homem! Vê bem ao ponto que chegaste…”), há quanto os serões, por ali, não divergiam? A um olhar exterior, pareciam náufragos, a partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição face ao acontecer, ternura e repulsa entrecruzavam-se perante tal cenário, será este o destino, com o tempo, de qualquer casal? Ela absorvida pela trama de uma telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, chega-se a um ponto da existência em que já nada se espera, sabe-se que o amanhã apenas mais um ontem, é dos momentos mais dolorosos desta caminhada (sabe-se que o amanhã apenas mais um ontem), cada um enfrenta este facto como pode: uns fogem-lhe, pela alienação,  mediante a sua circunstância (jogo, bebida, viagens, muitos, por incrível que pareça, pelo trabalho, mais frustrante não pode haver… E são tantos!), outros, pela Arte, procuram redescobrir o Sentido, ainda há os que buscam, de forma desesperada, trazer o ontem ao hoje, um equívoco, sem dúvida, as coisas nunca ficam onde as deixámos, mas é sempre uma tentativa de o amanhã diferir do hoje, por fim, há os que se colocam na plateia para assistir a algo que os relembre quem foram, ela caminhava entre estes últimos, absorvida pela trama de uma telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, num ávido e galopante tricotar, uma ferocidade crescente, por ali, entre amores e desamores, visualizava a centelha de algo, no fundo, de um ontem, longínquo, tão longínquo, de dois náufragos, a partilhar um destroço, ao sabor da corrente, sem qualquer assomo de volição face ao acontecer, nem a chegada da conhecida, duas vezes por semana, a fazia refrear o embate metálico das agulhas, e, muito menos, esbater a avidez do olhar pela trama no écran rectangular, a conhecida tinha facilidade em se ajustar aos contextos, era ela que batia à porta, procurava transparecer interesse, pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, através de observações, em verdade, eram mais perguntas para se situar na acção, as agulhas respondiam energicamente, não fosse aquele um dos seus espelhos de eleição (há os que se colocam na plateia para assistir a algo que os relembre quem foram), pouco mais de duas horas depois, duas vezes por semana, de a conhecida bater à porta, era o marido, vindo do coro-litúrgico, a soar a campainha, entre outros complexos, o sujeito padecia de gaguez, e havia nele uma irreprimível ânsia de transparecer mais cultura do que efectivamente cabia na sua divisória craniana, além, claro, de uma total ausência de vocação para o canto, embora tal facto não o coibisse de frequentar o coro-litúrgico, os dois náufragos saudaram-no da sua circunstância, as agulhas mantiveram a sua cadência, o olhar nem se desviou do desenrolar da trama, quanto ao jornal lá continuou sobre a barriga refém das subidas e descidas do diafragma, palavras de ocasião, a conhecida feliz pela iminente partida, embora um olhito já capturado pela trama da telenovela com aquele peculiar sotaque de terras além-mar, assim que a porta se fechou, as agulhas mantiveram o seu frenético ritmo, ele, porém, capitulara à consciência de que o amanhã apenas mais um ontem.

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