Livros do Escritor

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domingo, 7 de julho de 2024

Lembras-te de quando…

 



Lembras-te de quando, já se percebia que o frio, lá fora, pousara as malas, tu a chegares-te para juntinho de mim, a sugerires ternamente Não me queres aquecer os pés, meados de um Outubro ido, talvez Novembro, num Sábado de manhã, porventura Domingo, ficávamos, não sei se te lembras, sempre até mais tarde deitados, a repor sonos, depois de uma semana de loucos, custava-me tanto acordar cedo, menos do que a ti, bem sei, mas custava-me à mesma, levantar apenas uma ponta do lençol e logo a punhalada daquele frio da madrugada, que apenas acentuava um sonho interrompido, enquanto, ainda sentado na cama, a procurar os chinelos, de olhos fechados, com os pés no soalho escurecido, debruço-me sobre questões que sempre viajaram comigo, o Sentido de tudo isto, o porquê de abraçar a contragosto o frio da madrugada, virar costas a um sonho interrompido que me olha, numa súplica de abandonado, da almofada que ainda ostenta a minha efígie, uma dezena de minutos depois, mais ou menos, aparecias-me na cozinha, vestígios também de almofada por uma das tuas faces, as palavras sucumbiam, à nascença, a gestos mecânicos apressados, leite, torradas, café, acordavas depois as miúdas, pouco antes de saíres, achava um disparate, mas sempre foste pródiga em argumentos Deixa-as dormir mais um pouco. Têm tanta vida pela frente, para perceberem o frio do mundo. E, afinal, não sou eu que as deixo, todos os dias, na escola? E lá as deixava, a salvo do frio, por mais uns minutos, saía apressado, não sem antes me despedir, com a devida dignidade, de ti, lá fora, como sempre sucede nesta altura do ano, ainda estrelas de um lado, do outro, uns indícios alaranjados antecipam o irromper de algo, como se, por aqueles lados do mundo, qualquer nova caminhasse ao nosso encontro, como se por ali viesse o repouso para aquelas questões que sempre viajaram comigo, é possível, até hoje, aqueles indícios alaranjados são apenas o prenúncio de uma monótona sucessão do ontem, até que, certa tarde, não sei se te lembras, lá fora as coisas já se teriam invertido, onde bem cedo indícios alaranjados agora pontificavam umas quantas estrelas, onde ainda estrelas, neste momento, despedidas alaranjadas, vens ao meu encontro, abraças-me, percebo, depois, uma folha pela mão, pergunto-te, claro, o porquê da alegria, sem a ânsia natural se te compreendesse tristeza pelo rosto, dizes-me, com um certo despudor, ao relembrar-me ainda, em certos cantos de mim, a indignação, Entrei para a faculdade, confesso que tive de me sentar, as questões sucediam-me e não lhes encontrava palavras para as materializar (Faculdade? O quê? Porquê? Quando te inscreveste? De novo, porquê? Em que curso? Não disseste nada? Uma vez mais, porquê?), demorou o seu tempo, como tudo nesta vida, mas lá me contaste, no teu jeito tão lento, mas tão lento, que só propícia o meu exasperar, a sugestão, no trabalho, de uma colega, a hipótese de ascenderes a um outro cargo, consequente aumento salarial, não disseste nada porque, porque, era uma surpresa, disseste isto, não sei se te lembras, abraçada a mim, eu olhei um canto distante de alcatifa, fechei os olhos, e vi-te a mentira tão cobarde, era uma surpresa, parabenizei-te, procurei, claro, maquilhar, naquele momento, a convicção de uma mentira tão cobarde que encontrei, de olhos fechados, num canto distante da alcatifa, no fundo, as coisas são tão simples, uma questão elementar assaltou-me de imediato, se o resultado outro, na folha pela mão, ter-me-ias contado? Essa variável, que tanto sopesaste, o orgulho, não é? Sempre o orgulho, o receio de falhar, de deslustrar a já de si pálida imagem que trazemos ao mundo em cada dia que por aqui andamos, como dizia, essa variável foi o início do nosso desencontro, claro que assumo as minhas culpas, senti-me traído, e que viravas costas àquele mundo que até ali construíramos, foi, mais ou menos nessa altura, que aquela colega me pediu boleia, uma tarde chuvosa de Abril, não sei se te lembras, telefonei-te a dizer que ia jantar ao Armando para ver a bola com o resto do pessoal, ela bem mais nova que tu, a confidenciar-me os receios dos primeiros passos no mundo laboral, não achas curioso? Conhecia-me há tão pouco, e confidenciava-me receios, tu que vivias comigo há tanto, ocultavas-me factos, sabes, em verdade, sempre soube do teu jeito com as letras, antes deste hoje, de modernices, se ter instalado na nossa vida, como se nunca tivesse havido um antes, lembro-me das longas cartas que escrevias aos teus pais, apesar do telefonema semanal, regra geral, Sábado à noite, fazias questão da carta, deixava-la na mesa da sala, antes do envelope, e como eu gostava de ler aquelas palavras derramadas de ti, como se fosses uma outra, dizias as coisas de um jeito que eu, cá à minha maneira, até conseguia pensá-las, mas, lá está, não encontrava palavras para as materializar, no dia em que te acenasse por uma qualquer janela, sabia que não lhe irias virar costas, nem podias, afinal, com esse teu jeito para as letras terias muitas cartas para escrever, e não só, como era regra geral, num Sábado à noite, afastámo-nos, não fujo às minhas culpas, hoje até compreendo o porquê daquela variável, talvez me quisesses dizer que, apesar do insistente acenar do teu jeito para as letras, sempre que o frio, lá fora, pousasse as malas, tu chegar-te-ias para juntinho de mim, a sugerires ternamente Não me queres aquecer os pés?

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