Livros do Escritor

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quarta-feira, 17 de julho de 2024

Esparsos

 


Viver é subtrair o futuro e adicionar passado, por muitas teorias contrárias, deste facto ninguém me demove, e é no passado que respiram alguns vultos que hoje vão ocupar estas linhas, em verdade, há muito o mereciam, é sabido que o tempo é o melhor juiz: dissipa todas as dúvidas de quem nos guiou para a luz ou procurou anoitecer-nos o viver; há quem faça a apologia de não haver acasos nesta coisa do viver, já caminhei mais distante desta máxima, se todos, com quem nos cruzamos, desempenham um papel na nossa caminhada, naturalmente o oposto também sucede, eu sempre fui detentor de um lado melancólico de olhar o ido, talvez por aí resida a génese deste hábito de juntar palavras, de lhes dar musicalidade, construir enredos, contar histórias, as personagens que, de seguida, vou iluminar, ainda hoje me fazem sorrir, não é tudo, porém nos antípodas de ser o pouco, demasiados ficam tão aquém deste desígnio, frequentávamos o mesmo espaço desportivo com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, um dos donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava, corrigia, enfim, todas as incumbências da paternidade, certa tarde, ouço alguém, em jeito de proclamação, dizer-lhe: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!”; tudo por ali ficou em suspenso à espera da reacção do nosso guia-espiritual (um dos donos era como se pai de todos, ouvia, aconselhava, corrigia, enfim, todas as incumbências da paternidade), a mão pelo cabelo e o olhar no chão indiciaram-me desespero, ergueu o rosto e questionou: “E o que disseram os teus pais?”, claro que a mão pelo cabelo e o olhar no chão passaram despercebidos ao sujeito, continuou a sua narrativa: “O que disseram? Ameaçaram-me: se deixas de estudar, podes ir trabalhar! E fui mesmo: deixei a escola e fui trabalhar para uma obra!”, fez-se, de novo, silêncio, talvez o mesmo raciocínio pairasse pelos espíritos ali presentes: então, se queria crescer, o mais avisado não seria trabalhar nas obras…  O silêncio permaneceu, tal como uma mão pelo cabelo e um olhar no chão, para o miúdo que era, e felizmente sou, aquilo afigurou-se-me uma epifania: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!” Nem a minha imaginação conseguia visualizar tal, não me lembro de, nessa tarde, o nosso guia-espiritual articular uma frase, somente a mão pelo cabelo e o olhar no chão, este sujeito, na altura, também me apresentou o revendedor de marcas de suplementos norte-americanas de prestígio, lá íamos, que nem peregrinos, ao seu armazém adquiri-las, aqui dá-se-lhe a segunda epifania: como podem constatar, ainda a preservo ciosamente: vira-se para o revendedor e: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir aqui… Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Conciso, sintético, profundo, reparei no ar abismado do revendedor, ainda permaneceu uns instantes boquiaberto, também não me recordo de, nessa tarde, articular mais frases, e como era pródigo de verbo, eu, pelo contrário, compreendi estar perante um visionário: “Ouve lá, Rui, um dia destes tens de me deixar dormir aqui… Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” Tempos depois, cruzei-me com esta personagem, ia de fato, com um aspecto gasto, sublinhe-se, uma malinha na mão, apanhar o comboio, trabalhava numa sucursal-bancária, trocámos frases breves e apressadas, confesso o meu desgosto pela sua capitulação, nada lhe disse, diante de mim era um outro, longe, tão longe, daquele que, certa tarde, proclamou: “Ontem virei-me para os meus pais e disse-lhes: pai e mãe: vou deixar de estudar porque tenho de treinar mais… Ando a crescer pouco!” Num canto de mim, alimentou-se a esperança de que, talvez no seu regresso, da sucursal-bancária, o Rui lhe abrisse o portão, de um certo armazém, para o deixar dormir, Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!” É possível, ou talvez a ferocidade da vida lhe tenha destruído os sonhos do ontem, creio que o meu desgosto, em verdade, se deva ao funeral de mais um sonho: o mundo ganhou um céptico e perdeu um sonhador – mau prenúncio para o amanhã! Hoje também vou revelar como a Filosofia entrou na minha vida: foi exactamente nesse espaço desportivo que frequentávamos, com a intenção de sermos os futuros Schwarzenegger, entre pegar e largar barras ou halteres, recuperar o fôlego, olho um rosto bastante familiar por ali, estava noutro aparelho, sorri e diz-me: “Um gajo tem é de lhe dar!” Assim, do nada, de repente, outra epifania diante de mim, “Um gajo tem é de lhe dar!” – como podia fugir do mundo da Filosofia?! Eu já lá morava sem saber, este sujeito tinha a alcunha de Nubret, pela semelhança com o conhecido culturista francês, também havia quem o chamasse de O Africano, introvertido, calmo, concentrado no treino, reunia as características inatas de um herói, agora adicionava as de um pensador: “Um gajo tem é de lhe dar!” Alguém que pratica desporto já ouviu melhor conselho? Pois, então silêncio perante esta erudição, e, em verdade, isto não se cinge só ao desporto, é extensível à própria vida (“Um gajo tem é de lhe dar!”), sublime, como veem, ainda perdura em mim, em nenhum outro espaço me voltei a cruzar com personagens assim e muito menos com máximas ou conselhos tão profundos, se alguma noite me virem a bater num portão, não se preocupem, estou à espera que o Rui abra para ali pernoitar, não sei porquê, mas “Só de inspirar este ar, sinto-me a crescer!”

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