Livros do Escritor

Livros do Escritor

sábado, 30 de setembro de 2023

O Maqueiro-Barrigudo


 

Há figuras que necessariamente levam tempo a ganhar relevância em nós, não foi o caso em apreço, desde a primeira troca de palavras, compreendi estar perante um singular e eloquente vulto  cultural, a primeira frase que lhe retive foi, no fundo, a sua carta-de-apresentação “Sou maqueiro, sim, sou maqueiro”, assim, lacónico, expressivo, devidamente audível, digno de reflexão, em verdade, até esse momento, por muito que vasculhasse na memória, não me recordo de ter conhecido um maqueiro, muito menos um que tivesse gáudio em sê-lo, foi num contexto, do hoje, onde saúde e vaidade se fundem, que o conheci, saúde e vaidade parecem conceitos antagónicos, no entanto, o hoje é o território da estranheza, por conseguinte, as fronteiras esboroaram-se, a alguém interessa este cenário, voltando à nossa personagem, já dobrara os sessenta, contudo, o seu gritante anacronismo provinha de uma manifesta ruralidade nos modos e palavras, treinava com uns andrajos, as calças próximas de umas ceroulas encontradas na última visita ao sótão, a camisola, inevitavelmente de alças, onde pontificava uma ou duas nódoas, deixemos neste ponto a imaginação adormecida para a génese das mesmas, demasiado justa para a sua volumetria, sobretudo na cintura, onde, para mais, colocava um cinto-de-ginásio – como se um imperativo para quem julga levantar toneladas e toneladas –, não é necessário um apurado poder de dedução para inferir que o papel do cinto seria tão-só, na sua mente, disfarçar o enorme barrigão,  não me recordo do calçado, confesso, as perninhas demasiado aquém da volumetria do tronco, onde se destacava aquela vasta cintura refreada pelo omnipresente cinto-de-ginásio – como se um imperativo de quem julga levantar toneladas e toneladas –, entrava sempre munido de uma garrafa, cheia com um líquido de cor duvidosa, para dar credibilidade à aura que procurava transmitir, era de poucas palavras aos primeiros contactos, por regra, os heróis não são conhecidos pelo seu carácter extrovertido, este também cumpria tal premissa, demonstrava abnegação nos exercícios, durante os períodos de descanso, rondava o aparelho onde estava, com uma expressão a meio-caminho entre um felino e um sentinela, um autêntico durão, daqueles que o cinema já não produz, não lhe peçam velocidade, com aquele barrigão, o mais natural, seria, à segunda ou terceira-passada, cair para a frente, também para solidificar a imagem de duro, muito duro, um autêntico durão, era comum ouvi-lo emitir urros enquanto se esforçava para levantar barras ou halteres, embora, com um pouco mais de atenção, concluíssemos haver um dessintonia entre os urros e os pesos levantados, mas a atenção às coisas está num galopante desuso, esse aspecto ajuda a consolidar os lancinantes urros de figuras como esta, certo dia, alguém resolveu desvendar o mistério do líquido, de cor duvidosa, que preenchia a garrafa, nesta altura, já o Maqueiro-Barrigudo caminhava para o seu primeiro trimestre por ali, assim que o seu olhar no conteúdo da garrafa, o Maqueiro-Barrigudo estaca, levanta-se, vai ao encontro do curioso e pergunta-lhe: “Quer saber o que trago na garrafa?” O curioso prontamente anuiu, os olhos do Maqueiro-Barrigudo brilharam, parecia que, por fim, alguém questionava a origem dos seus super-poderes, como toda a icónica personagem não se fez rogado em desvelar a origem dos seus extraordinários super-poderes, com a devida teatralidade, pegou na garrafa, de plástico, seria daquelas habituais de litro e meio, abanou-a com vigor, numa clara manifestação da sua inesgotável energia, baixou o volume da voz, afinal, ia revelar a origem dos seus extraordinários super-poderes, não convinha ficar do domínio-público, um super-herói, por cidade, é o suficiente, além de que o ginásio só tinha um ou dois cintos, imagine-se uma multidão de titãs atrás dos cintos para ocultar os respectivos barrigões! A dicção do Maqueiro-Barrigudo era sofrível, na sua incessante busca por uma voz áspera, condizente com a ansiada imagem de duro, muito duro, um autêntico durão, acabava por comer sílabas em simultaneamente salivar em demasia, o curioso só reteve: “Sopa… Avó… Agriões… Borrego… Nabo…”; pouco mais, no fim, ainda questionou: “Onde julga que vou buscar força para carregar macas o dia todo?!”, apontou para o braço liposo, numa demasia pálida, onde se visualizava tudo menos os frutos de frequentar um contexto, do hoje, onde saúde e vaidade se fundem, acrescentou: “Não duvide: depois de todo este esforço, vou carregar macas o resto do dia!”, o olhar do curioso, sem querer, desceu à extraordinária proeminência abdominal, talvez o visualizasse a empurrar uma maca, para cima de uma ambulância, com aquele inevitável auxílio, espero, com sinceridade, que nunca precisem de ambulâncias, se infelizmente for necessário, rezem para que seja alguém, munido de uma garrafa, cheia com um líquido de cor duvidosa, aí haverá uma certeza: os super-heróis existem: em vosso socorro veio o Maqueiro-Barrigudo!

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.