Pela luz exterior, proveniente no possível do oblíquo, pelo prédio
em frente, o outro do lado, pela cortina, sempre corrida, e demasiado
opaca, afinal, o prédio sempre em frente, nunca uma folga, ninguém
o convidava para sair, talvez um café, quem sabe se, assim, a luz no
lugar de uma cortina opaca, percebia-se o adeus da manhã, a cama
cheia de roupa, e da mala ainda aberta, ele de um lado para o outro, à
volta da cama, com a roupa, e a mala, ela observava-o de uma outra
divisão, detinha-se apenas no rosto, nada mais, nem por uma única
vez se preocupou com o gesto, nada, apenas a face, ali estava tudo
(há quanto aprendera ela isto?), ele ainda por um tempo, sempre
demasiado para quem esperava por um olhar, com a mala e as roupas,
até que um estalido metálico prenunciou passos ao seu encontro, ali
estava, diante dela, a mala numa das mãos, ela pousou, numa pressa
indisfarçada, a actividade doméstica na superfície mais à mão, Tens a
certeza de que não te esqueces de nada?, ele respondeu olhando-a, as
palavras em maré-vazia, ela Senta-te, está quase pronto, com isto, a
puxar um banco, ele a hesitar, a mala ainda na mão, o olhar no banco,
o olfacto no aroma proveniente do fogão, o sentir num indistinto do
tempo, algures entre um estalido metálico e os despojos do verbo, uma
questão suspensa (Tens a certeza de que não te esqueces de nada?) e
uma resposta olhada, por fim, pousou a mala pudicamente a um canto e
sentou-se, ela retirou o tacho do fogão e pousou-o sobre a mesa, ainda
deambulou pela cozinha, como se de uma inevitabilidade se tratasse,
mais isto e aquilo, tudo sob o eco de uma questão que ainda não partira
(Tens a certeza de que não te esqueces de nada?), em verdade, uma
questão só parte quando uma resposta ocupa o seu lugar, comeram no
mutismo de trivialidades, falaram daqueles pequenos nadas, apenas
isso, facturas por chegar, sempre aquelas visitas certas mensais que
aportam na caixa-do-correio, sem qualquer resquício de convite para tal,
outras já chegadas, mas ainda por pagar, a escola da miúda, ela Passas
por lá antes de… Ele Não sei… E se ela reagir mal? Nisto, procurou
qualquer coisa onde encostar o olhar, mas a resposta logo Tens de lhe
explicar as coisas! Ela já tem idade suficiente para as compreender. Tudo, ali, em suspenso, questões, o tacho já menos fumegante sobre a
mesa, as respostas vagas, facturas chegadas e por pagar, uma partida
iminente, a mala no recato de um canto, a melodia dissonante do
estalido de há pouco ainda pela casa, e a questão ancorada, que vogava
inclementemente naquelas consciências, como se um grito sufocado na
madrugada por um terror maior, Tens a certeza de que não te esqueces
de nada?, assim que os últimos grãos de arroz trocaram a superfície
do prato pela instabilidade espaçada do garfo, acelerou os gestos, ela
manteve-se na mesma cadência, já ele levantara o prato, dentadas numa
maçã enquanto caminhava pela casa, mais correctamente, enquanto se
despedia da casa, primeiro, o quarto da filha, sempre aquele delicado
do feminino, não sabia explicar muito bem, mas era isso que sentia ali
da porta, talvez porque os sonhos do feminino tenham longas raízes,
é possível, feminino e lar são velhos caminhantes, de seguida, foi
até ao seu, deteve-se apenas no leito, nada mais, afinal, aí se escreve
um casal, respirou fundo, como se para compreender o tempo até ao
regresso, ou o porquê de partir, antes de virar costas, perdeu-se naquele
instante emoldurado sobre a mesa-de-cabeceira do lado dela, os dois,
abraçados, rostos de fim-de-semana, olhares de futuro, num jardim,
se lhe perguntassem agora em que ano a foto, não saberia precisar,
apenas o sabor de que aquele teria sido um bom dia, daqueles em que,
antes de adormecer, uma certeza nos engole, Sim, valeu a pena, quando
regressa à cozinha, detém-se na silhueta dela de costas, está à janela,
percebe-se-lhe uma expectativa desencantada, como se do seu corpo
tivessem partido todos os sonhos, sem saber muito bem porquê, o seu
olhar deixa-a e precipita-se sobre a mala pudicamente pousada a um
canto, como se dali um aviso de que chegara a hora, nesta vida, todas
as horas chegam, sempre mais depressa as das partidas do que as das
chegadas, esta é uma das veladas amarguras do existir, pegou na mala,
aproximou-se hesitante, ela permaneceu de costas, a olhar a tarde do
mundo, pareceu ouvi-lo dizer Quem me dera que tudo fosse diferente,
deixou-se estar, talvez, antes de partir, ele, num gesto, encontre resposta
para uma questão há muito suspensa.
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