Livros do Escritor

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domingo, 10 de setembro de 2023

O que queria ser um pássaro se não o fosse?

 




Pela luz exterior, proveniente no possível do oblíquo, pelo prédio em frente, o outro do lado, pela cortina, sempre corrida, e demasiado opaca, afinal, o prédio sempre em frente, nunca uma folga, ninguém o convidava para sair, talvez um café, quem sabe se, assim, a luz no lugar de uma cortina opaca, percebia-se o adeus da manhã, a cama cheia de roupa, e da mala ainda aberta, ele de um lado para o outro, à volta da cama, com a roupa, e a mala, ela observava-o de uma outra divisão, detinha-se apenas no rosto, nada mais, nem por uma única vez se preocupou com o gesto, nada, apenas a face, ali estava tudo (há quanto aprendera ela isto?), ele ainda por um tempo, sempre demasiado para quem esperava por um olhar, com a mala e as roupas, até que um estalido metálico prenunciou passos ao seu encontro, ali estava, diante dela, a mala numa das mãos, ela pousou, numa pressa indisfarçada, a actividade doméstica na superfície mais à mão, Tens a certeza de que não te esqueces de nada?, ele respondeu olhando-a, as palavras em maré-vazia, ela Senta-te, está quase pronto, com isto, a puxar um banco, ele a hesitar, a mala ainda na mão, o olhar no banco, o olfacto no aroma proveniente do fogão, o sentir num indistinto do tempo, algures entre um estalido metálico e os despojos do verbo, uma questão suspensa (Tens a certeza de que não te esqueces de nada?) e uma resposta olhada, por fim, pousou a mala pudicamente a um canto e sentou-se, ela retirou o tacho do fogão e pousou-o sobre a mesa, ainda deambulou pela cozinha, como se de uma inevitabilidade se tratasse, mais isto e aquilo, tudo sob o eco de uma questão que ainda não partira (Tens a certeza de que não te esqueces de nada?), em verdade, uma questão só parte quando uma resposta ocupa o seu lugar, comeram no mutismo de trivialidades, falaram daqueles pequenos nadas, apenas isso, facturas por chegar, sempre aquelas visitas certas mensais que aportam na caixa-do-correio, sem qualquer resquício de convite para tal, outras já chegadas, mas ainda por pagar, a escola da miúda, ela Passas por lá antes de… Ele Não sei… E se ela reagir mal? Nisto, procurou qualquer coisa onde encostar o olhar, mas a resposta logo Tens de lhe explicar as coisas! Ela já tem idade suficiente para as compreender. Tudo, ali, em suspenso, questões, o tacho já menos fumegante sobre a mesa, as respostas vagas, facturas chegadas e por pagar, uma partida iminente, a mala no recato de um canto, a melodia dissonante do estalido de há pouco ainda pela casa, e a questão ancorada, que vogava inclementemente naquelas consciências, como se um grito sufocado na madrugada por um terror maior, Tens a certeza de que não te esqueces de nada?, assim que os últimos grãos de arroz trocaram a superfície do prato pela instabilidade espaçada do garfo, acelerou os gestos, ela manteve-se na mesma cadência, já ele levantara o prato, dentadas numa maçã enquanto caminhava pela casa, mais correctamente, enquanto se despedia da casa, primeiro, o quarto da filha, sempre aquele delicado do feminino, não sabia explicar muito bem, mas era isso que sentia ali da porta, talvez porque os sonhos do feminino tenham longas raízes, é possível, feminino e lar são velhos caminhantes, de seguida, foi até ao seu, deteve-se apenas no leito, nada mais, afinal, aí se escreve um casal, respirou fundo, como se para compreender o tempo até ao regresso, ou o porquê de partir, antes de virar costas, perdeu-se naquele instante emoldurado sobre a mesa-de-cabeceira do lado dela, os dois, abraçados, rostos de fim-de-semana, olhares de futuro, num jardim, se lhe perguntassem agora em que ano a foto, não saberia precisar, apenas o sabor de que aquele teria sido um bom dia, daqueles em que, antes de adormecer, uma certeza nos engole, Sim, valeu a pena, quando regressa à cozinha, detém-se na silhueta dela de costas, está à janela, percebe-se-lhe uma expectativa desencantada, como se do seu corpo tivessem partido todos os sonhos, sem saber muito bem porquê, o seu olhar deixa-a e precipita-se sobre a mala pudicamente pousada a um canto, como se dali um aviso de que chegara a hora, nesta vida, todas as horas chegam, sempre mais depressa as das partidas do que as das chegadas, esta é uma das veladas amarguras do existir, pegou na mala, aproximou-se hesitante, ela permaneceu de costas, a olhar a tarde do mundo, pareceu ouvi-lo dizer Quem me dera que tudo fosse diferente, deixou-se estar, talvez, antes de partir, ele, num gesto, encontre resposta para uma questão há muito suspensa.

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