Livros do Escritor

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sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Entre as nuvens e o húmus

 

Não me arranja uma moedinha?, nem sopesava a frase, já nem a ouvia, saía-lhe, apenas isso, a mão estendida atrás de passos apressados, ou temerosos, tudo depois de auxiliar mais um estacionamento, a maior parte das vezes na ilusão de uma necessidade, não para ele, mas para quem se obstina numa arte, como tantas vezes acontece, que jamais será sua, e como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, Não me arranja uma moedinha? Desde quando esta frase? Talvez há um par de anos, ou mais, embora, se lhe perguntassem, não soubesse o que dizer, como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, escolheu o entra e sai do supermercado mais próximo, nem se importou se, por ali, rostos de há tanto, talvez assim mais moedinhas, talvez houvesse menos passos temerosos, talvez, afinal, não fosse um estranho, no entanto, ele é que se despedia do ontem com a máscara do hoje, procurava disfarçar os contornos acentuados do rosto com uma barba deslustrada, um pouco como aquela vegetação tímida que apenas acentua a esterilidade de um solo, a pele irremediavelmente escurecida, percebia-se que o clima não fora convidado para este processo, a voz arrastada enfatizava ainda mais a escassez vocabular, apesar de ter conhecido os corredores académicos, de facto, talvez tenha sido aí que se começara a formar uma questão na sua mente (Não me arranja uma moedinha?), nele sempre o gosto por…, mas lá em casa nem se ouvir falar de tal, porém, os olhos maternos traíam, por vezes, este nem se ouvir falar de tal, e traição rimava com compreensão diante do seu olhar, mas o silêncio materno anuía quando se proclamava bem alto nem se ouvir falar de tal, como se outorgasse tal imposição, não se recorda do momento em que ensurdecera para as imposições caseiras, em verdade, poucos o devem recordar, como tudo na vida, vai acontecendo, até que, num repente, olhamos e o dia é, ou já foi, sempre aquela extenuada analogia entre enxada e canudo, cantada entredentes pela voz áspera do pai, a partir de certa altura, quando se avizinhava que estes objectos iam ser introduzidos na conversa, sempre naquele tom profético e irreversível, parecia-lhe sentar-se no cimo de um monte distante, um daqueles pontos onde vemos sem ouvir, daí a distância, daí a elevação, enquanto no vale do acontecer tudo se desenrola como se escrito por uma mão demasiado distante da nossa vontade, certa manhã, o sono a trair-lhe a direcção dos corredores académicos, a voz áspera do pai, sempre naquele tom profético e irreversível, a repetir uma extenuada analogia, por outro lado, havia coisas de que nem queria ouvir falar, como se naquela casa houvesse apenas dois temas de conversa: enxada e canudo; nessa manhã, em verdade, ainda viu o metropolitano diante de si, ainda avançou uns metros, quando as portas se abriram, tão empurrado foi pela desencantada pressa de quem corre pelo pão do dia, ouviu aquele apito arrastado e nada estridente, as portas fecharam-se, partiu, quando se lembrou da sua circunstância, já regressara à superfície, deambulou um pouco durante a manhã, sabia, sem saber muito bem o porquê, que procurava gente de acordares tardios, como tudo neste existir, sabia que teria de enfrentar um rito iniciático, temos sempre uma inclinação a ignorá-los, mas surgem a cada esquina, e assumem tantas formas, uma questão, um olhar, um cumprimento, uma resposta, uma graça, e a reacção do outro dita sempre um destino, acenar-lhes-ia com a carteira e falaria da sua vontade em esquecer o mundo, assim foi, tudo tão depressa, sempre demasiado depressa quando chegamos ao amanhã e compreendemos o contrastante vagar do hoje, de casa apenas a memória dos últimos gritos, e de costas, curioso, já não se lembra dos olhares, apenas das costas, chegou a sentir falta, um pouco antes de, daquela extenuada analogia entre enxada e canudo, cantada entredentes pela voz áspera do pai, como se um cântico de regresso, porém, só a sombra de costas num silêncio que afasta, como é fácil perdermo-nos nos horizontes de nós, dois dias por semana troca o posto no estacionamento do supermercado por outro no semáforo do cruzamento mais abaixo, aí vende uma revista, uma gente simpática, de uma associação qualquer, fez-lhe a cabeça com coisas que sempre soube, mas que não quis saber, pelo menos até hoje, um pouco como a luz da manhã que nos devolve os contornos das coisas, apesar de há muito os sabermos, Isso não é vida, Vai acabar mal, Mudar só depende de si, E da sua vontade, O seu vício só alimenta a riqueza de outros, Já viu a sua idade? Ainda vai a tempo de consertar muita coisa, enquanto lhe diziam estas coisas, nem os ouvia, fascinado que estava com a ausência de costas, vozes e olhares diante si, e passou-lhe pela cabeça, de verdade, talvez pela primeira vez na vida, levantar-se do cimo de um monte distante, um daqueles pontos onde vemos sem ouvir, daí a distância, daí a elevação, e descer ao vale do acontecer, onde tudo se desenrola, para encontrar alguém que o queira ouvir acabar uma frase algures interrompida…

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