Você quer ouvir a minha história? A questão saiu-lhe arrastada, sem
qualquer resquício de ansiedade, pelo contrário, como se esperasse,
há muito, que aquele estranho ali aportasse, por um qualquer desígnio
do destino, o outro, ainda a familiarizar-se com o balcão e a altura do
banco, curiosamente não estranhou a questão, sinal de que era veterano
por aquelas paragens, balizadas por copos vazios e timbres lamurientos,
respondeu-lhe com uma expressão convidativa, mas sempre naquela
discrição codificada de desconhecidos náufragos de uma mesma
embarcação, que, do outro lado da porta, os abandonara, àquela
precisa hora recrudescia numa dissonância de sons e de movimentos
antagónicos, entretanto, a questão levantou-se mais uma vez Você
quer ouvir a minha história? Desta vez, a expressão convidativa fez-se acompanhar por um gesto incentivador, o empregado apercebera-se do rio de palavras iminente e tratou de colorir os copos, também
tinha pouco mais para fazer, além daqueles dois só tinha um casal
sentado numa mesa, uma dessas que povoam o canto escurecido de
um qualquer estabelecimento, pródigas em sussurros e em rostos sem
amanhã, talvez porque sempre de passagem, nunca além da soleira de
uma promessa, daí a urgência, a pressa no gesto, sempre a efemeridade
da sombra, um ecrã de dimensões consideráveis ilustrava um jogo de
paragens longínquas, sem som, uma janela aberta para um horizonte
despido de olhares, no balcão, os copos também se despiram de cor,
enquanto no canto escurecido era visível que o sujeito se esforçava por
clarificar uma mensagem, ela visivelmente recuava, percebia-se, por
um indistinto qualquer, que já vivenciara aquelas palavras, de repente,
uma mão pousa com estrépito, acompanhada de uma voz arrastada,
Tudo bem! Está decidido! Vou contar-lhe a minha história… O que vê
quando me olha? Eu respondo-lhe… Você vê sempre o agora, que é o
tudo que somos menos… Sabe, já tive aquilo que nos exigem: uma casa
apresentável, mulher à espera com um sorriso sempre que chegava do
emprego, dois filhos, ele dois anos mais velho que ela, já viu, até nisso
tive sorte, acertei logo com um casalinho, aos fins-de-semana almoços
com a família, ou com os amigos, no emprego progredia, certo dia, para ser exacto, foi mais numa certa noite, não sei porquê, custava-me
a adormecer, tudo à minha volta o eco de gritos meus, pela casa só os
ponteiros do grande relógio da cozinha, ela dormia, a meu lado, no
seu habitual sono sem sobressaltos, de quem sabe que o seu mundo é
um lugar arrumado, os miúdos também no sono da cor da meninice, é
curioso, acho que, com a idade, a cor dos sonhos se vai esbatendo…
Não concorda? Pois… Como lhe estava a dizer, tudo dormia, como
se o facto de dormirem, àquela precisa hora, fosse um imperativo da
sua ordem natural no mundo, não sei se me faço entender, de repente,
eu percebi que cada hora, do meu dia seguinte, já estaria preenchida,
acordaria às sete da manhã, aquele pequeno-almoço, com sabor a
pressa, que servia apenas para me despertar a azia, seguiam-se pouco
menos de duas horas em que o meu pé direito oscilava entre dois
pedais, avançar umas dezenas de metros para logo me imobilizar, até a
um destino que nunca me foi perguntado, as mesmas faces de um ontem
demasiado, as mesmas frases a ilustrar as mesmas circunstâncias,
tudo repetido até uma demência impronunciada, à hora de almoço,
aquela sopa, desagradavelmente aquosa, sorvida em pé, acompanhada
de uma sandes, fértil em molho, que logo me escorria pelos dedos,
de novo a azia a reclamar a sua existência, duplicava o café, apesar
da sonolência àquela hora sempre me visitar, as horas da tarde em
passos de bengala, o regresso numa desesperada e silenciosa repetição
da cadência matinal – pouco menos de duas horas em que o meu pé
direito oscilava entre dois pedais, avançar umas dezenas de metros
para logo me imobilizar, até a um destino que nunca me foi perguntado
–, de facto, não me lembro, nesta vida, de me perguntarem pelo destino,
fala-se muito dele, mas nunca vi ninguém agarrá-lo pelos colarinhos e
perguntar-lhe o que tem para oferecer, é assim, nessa noite, como quase
sempre acontecia, adormeci no sofá, ela com a novela, os miúdos já na
cama, tudo no seu lugar, as interrogações banidas para um lugar além-mapas, só que, uma vez mais, quando ela me despertou para nos irmos
deitar, custou-me a adormecer, tudo se repetiu: à minha volta o eco de
gritos meus, pela casa só os ponteiros do grande relógio da cozinha,
ela dormia, a meu lado, no seu habitual sono sem sobressaltos, de
quem sabe que o seu mundo é um lugar arrumado, os miúdos também
no sono da cor da meninice, é curioso, acho que, com a idade, a cor dos sonhos se vai esbatendo… Não concorda? Pois… Como lhe estava a
dizer, tudo dormia, como se o facto de dormirem, àquela precisa hora,
fosse um imperativo da sua ordem natural no mundo… Dolorosamente
compreendi que o meu mundo é um lugar de gritos desarrumados e
de insónias regressadas, nessa noite, quando me percebi, uma vez
mais, no mundo, guiava pela madrugada, sabe, é curioso, quando saí,
percebi o adeus sentido pronunciado pela porta, parti, apenas isso,
andei por aqui e por ali… Se me arrependo? Ontem não sabia que, a
esta hora, estaria aqui a falar consigo… Não é suficiente? Cada um
procura a sua jangada… Olhe o sujeito ali atrás, implora para que ela
o aceite com a sua circunstância, quando, no fundo, ele não quer ser
engolido por… Você compreende, não é? Sempre esta necessidade de
uma jangada que nos adie o inevitável naufrágio… E agora, fale-me
um pouco de si… O que o fez naufragar aqui a esta hora da tarde? Já
o agarrou pelos colarinhos e lhe perguntou o que tem para oferecer?
Ou o seu mundo é um lugar arrumado…
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