Livros do Escritor

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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

A biografia inarticulada do sentir



Àquela hora da tarde, vinda não sabe de onde, sentiu uma pontada subir-lhe pelas costas, só se aquietou no pescoço, ele aproveitou para se endireitar na cadeira, descansar os olhos do ecrã, assim ficou durante o que considerou necessário, fechou os olhos, deixou-se estar, à sua volta apenas dedos em teclas e telefones insistentes, regressou, ninguém se apercebeu, de novo, olhos no ecrã, costas curvadas, e dedos em uníssono com aquela desabrida sinfonia de teclas, quando, lá fora, a escuridão pronunciava a artificial iluminação interna, as secretárias à sua volta a desertificarem-se, volta e meia, Então, até amanhã ou Ainda ficas?, pouco mais, não, não se ia demorar, até porque a dor, de novo, a subir-lhe pelas costas, levantou-se, após desligar a janela do hoje, retirou o casaco do cabide da entrada, e saiu, olhar na calçada, mãos nos bolsos, mais um anónimo a cumprir um destino para poucas memórias, agora tudo no inverso da manhã, autocarro, comboio, e aqueles seiscentos metros, da estação até casa, a pé, ou talvez não, os rostos cansados da manhã ainda mais cansados, aquela desesperança pressentida em cada gesto ainda mais acentuada, a sôfrega atenção consagrada aquele rectângulo avidamente segurado na palma da mão ainda presente apesar do cinzentismo das expressões, quem sabe se, naquelas paragens artificiais, ousassem revestir-se de expressões solares, de gestos largos, de risos suspensos, captados na fugacidade do instante, para logo se precipitarem no abismo voraz de um autocarro somado a um comboio e umas centenas de metros, a pé, até a um qualquer lar num canto do hoje, talvez, nessas paragens artificiais, os risos na proporção dos abismos, é possível, ele nunca calcorreou esses caminhos sem pó, pelo contrário, desde muito cedo sempre apreciou a brisa pelo rosto, a firmeza de um solo, as nuances do pensamento num olhar contemplado, o jorrar musical de um riso, enquanto caminhava os últimos seiscentos metros desse dia, vindo não se sabe de onde, como quase sempre acontece nos trilhos do pensar, surgiu-lhe o rosto do pai, carteiro de profissão, há uns anos decidira entregar a sua última mensagem, nem tristeza nem alegria face ao rosto do pai, apenas saudade, com os anos as costas curvaram-se-lhe, o saco às costas parecia ganhar terreno, é estranho, era-lhe difícil dissociar a figura paterna do saco às costas, e daquela farda de tons cinzentos, não se lembra de ver o pai doente, é possível que nunca tenha faltado, e, apesar disso, nem uma carta em dias de aniversário, nada, aquando da última mensagem, uma cerimónia muito discreta, ele, a mãe, uns vizinhos, não se recorda de mais ninguém, nem os primos do Norte se dignaram a descer, julgaram que o telefonema fugidio seria o suficiente, ainda esperaram um ramo de flores, é possível que nunca tenha faltado, tudo em vão, e o pai que fez aportar tanto sentimento, e contas, é certo, zangas também, quando comprou uma pequena mota em segunda mão, ainda levou uns anos para tal, levou-o com ele, lembra-se tão bem, no primeiro dia de umas férias grandes, aquele tempo em que os dias encerravam uma vida, o alforge, repleto de missivas, de um dos lados, perdeu a conta a quantas portas o pai bateu só naquela manhã, ansiava apenas pelo seu regresso, nem descia do assento, para sentir a brisa pelo rosto, assim que se iniciava a marcha, no entanto, uma certeza, primeiro sob a forma de uma estranha insinuação, crescia nas funduras do seu ser de uma dezena de anos, não queria, no seu amanhã, bater a nenhuma porta, nem andar de costas curvadas sob o peso de um alforge repleto de missivas dos outros, também não queria aportar sentimento, contas, e zangas nos portos alheios, sempre tão no seu mundo, evitava demorar-se nos rostos alheios, somente para as nuances do pensamento num olhar contemplado, ou para o jorrar musical de um riso, de outra forma, receava que por aí ficasse um pouco de si, uma gota fria fê-lo erguer o rosto, um pouco à frente, só faltava atravessar uma rua, o lar, aquele segundo andar iluminado, as cortinas já corridas, mais gotas se seguiram, o pensamento arrefeceu, de repente, uma certeza chegou com o anoitecer, amanhã, àquela hora, estaria naquele exacto ponto (há quanto tempo?), é curioso, percebeu que as costas também um pouco, já poucos passos o separavam daquele segundo andar iluminado, as cortinas já corridas, nisto, apercebeu-se de um olhar indulgente derramado sobre si, de uma figura sentada numa mota, enquanto se esforçava por abrir rapidamente a porta do prédio, entretanto, as alturas desciam à terra, sempre naqueles esforços vãos de limpar e esquecer, achou curioso que aquela mota sob o sol de uma manhã de Verão, reconheceu-o, ali, mas sabia-o em casa à sua espera, nem descia do assento, talvez o esperasse para sentir a brisa pelo rosto, assim que se retomasse a marcha, no entanto, uma certeza, primeiro sob a forma de uma estranha insinuação, crescia nas funduras daquele ser de uma dezena de anos, não queria, também no seu amanhã, abrir nenhuma porta, nem andar de costas curvadas, enquanto as alturas desciam à terra, sempre naqueles esforços vãos de limpar e esquecer, num efémero esforço por rapidez, depois de um autocarro somado a um comboio e umas centenas de metros, a pé, até a um qualquer lar num canto do hoje, e de se saber perdido ao cair de joelhos perante uma questão: há quanto tempo?

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