Àquela hora da tarde, vinda não sabe de onde, sentiu uma pontada
subir-lhe pelas costas, só se aquietou no pescoço, ele aproveitou para se
endireitar na cadeira, descansar os olhos do ecrã, assim ficou durante o
que considerou necessário, fechou os olhos, deixou-se estar, à sua volta
apenas dedos em teclas e telefones insistentes, regressou, ninguém se
apercebeu, de novo, olhos no ecrã, costas curvadas, e dedos em uníssono
com aquela desabrida sinfonia de teclas, quando, lá fora, a escuridão
pronunciava a artificial iluminação interna, as secretárias à sua volta
a desertificarem-se, volta e meia, Então, até amanhã ou Ainda ficas?,
pouco mais, não, não se ia demorar, até porque a dor, de novo, a subir-lhe
pelas costas, levantou-se, após desligar a janela do hoje, retirou o casaco
do cabide da entrada, e saiu, olhar na calçada, mãos nos bolsos, mais
um anónimo a cumprir um destino para poucas memórias, agora tudo
no inverso da manhã, autocarro, comboio, e aqueles seiscentos metros,
da estação até casa, a pé, ou talvez não, os rostos cansados da manhã
ainda mais cansados, aquela desesperança pressentida em cada gesto
ainda mais acentuada, a sôfrega atenção consagrada aquele rectângulo
avidamente segurado na palma da mão ainda presente apesar do
cinzentismo das expressões, quem sabe se, naquelas paragens artificiais,
ousassem revestir-se de expressões solares, de gestos largos, de risos
suspensos, captados na fugacidade do instante, para logo se precipitarem
no abismo voraz de um autocarro somado a um comboio e umas centenas
de metros, a pé, até a um qualquer lar num canto do hoje, talvez, nessas
paragens artificiais, os risos na proporção dos abismos, é possível, ele
nunca calcorreou esses caminhos sem pó, pelo contrário, desde muito
cedo sempre apreciou a brisa pelo rosto, a firmeza de um solo, as nuances
do pensamento num olhar contemplado, o jorrar musical de um riso,
enquanto caminhava os últimos seiscentos metros desse dia, vindo não
se sabe de onde, como quase sempre acontece nos trilhos do pensar,
surgiu-lhe o rosto do pai, carteiro de profissão, há uns anos decidira
entregar a sua última mensagem, nem tristeza nem alegria face ao rosto
do pai, apenas saudade, com os anos as costas curvaram-se-lhe, o saco
às costas parecia ganhar terreno, é estranho, era-lhe difícil dissociar a figura paterna do saco às costas, e daquela farda de tons cinzentos,
não se lembra de ver o pai doente, é possível que nunca tenha faltado,
e, apesar disso, nem uma carta em dias de aniversário, nada, aquando
da última mensagem, uma cerimónia muito discreta, ele, a mãe, uns
vizinhos, não se recorda de mais ninguém, nem os primos do Norte se
dignaram a descer, julgaram que o telefonema fugidio seria o suficiente,
ainda esperaram um ramo de flores, é possível que nunca tenha faltado,
tudo em vão, e o pai que fez aportar tanto sentimento, e contas, é certo,
zangas também, quando comprou uma pequena mota em segunda mão,
ainda levou uns anos para tal, levou-o com ele, lembra-se tão bem,
no primeiro dia de umas férias grandes, aquele tempo em que os dias
encerravam uma vida, o alforge, repleto de missivas, de um dos lados,
perdeu a conta a quantas portas o pai bateu só naquela manhã, ansiava
apenas pelo seu regresso, nem descia do assento, para sentir a brisa pelo
rosto, assim que se iniciava a marcha, no entanto, uma certeza, primeiro
sob a forma de uma estranha insinuação, crescia nas funduras do seu ser
de uma dezena de anos, não queria, no seu amanhã, bater a nenhuma
porta, nem andar de costas curvadas sob o peso de um alforge repleto
de missivas dos outros, também não queria aportar sentimento, contas,
e zangas nos portos alheios, sempre tão no seu mundo, evitava demorar-se nos rostos alheios, somente para as nuances do pensamento num
olhar contemplado, ou para o jorrar musical de um riso, de outra forma,
receava que por aí ficasse um pouco de si, uma gota fria fê-lo erguer o
rosto, um pouco à frente, só faltava atravessar uma rua, o lar, aquele
segundo andar iluminado, as cortinas já corridas, mais gotas se seguiram,
o pensamento arrefeceu, de repente, uma certeza chegou com o anoitecer,
amanhã, àquela hora, estaria naquele exacto ponto (há quanto tempo?),
é curioso, percebeu que as costas também um pouco, já poucos passos
o separavam daquele segundo andar iluminado, as cortinas já corridas,
nisto, apercebeu-se de um olhar indulgente derramado sobre si, de uma
figura sentada numa mota, enquanto se esforçava por abrir rapidamente
a porta do prédio, entretanto, as alturas desciam à terra, sempre naqueles
esforços vãos de limpar e esquecer, achou curioso que aquela mota sob
o sol de uma manhã de Verão, reconheceu-o, ali, mas sabia-o em casa à
sua espera, nem descia do assento, talvez o esperasse para sentir a brisa
pelo rosto, assim que se retomasse a marcha, no entanto, uma certeza, primeiro sob a forma de uma estranha insinuação, crescia nas funduras
daquele ser de uma dezena de anos, não queria, também no seu amanhã,
abrir nenhuma porta, nem andar de costas curvadas, enquanto as alturas
desciam à terra, sempre naqueles esforços vãos de limpar e esquecer,
num efémero esforço por rapidez, depois de um autocarro somado a
um comboio e umas centenas de metros, a pé, até a um qualquer lar
num canto do hoje, e de se saber perdido ao cair de joelhos perante uma
questão: há quanto tempo?
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