Ouço a campainha. Um pânico intruso
corre por mim. Instintivamente procuro por horas. Afinal, é o miúdo. Enquanto
expiro, o pânico, já longe, a dobrar uma qualquer esquina, numa corrida
envergonhada. De mochila às costas, entra em casa, um beijo de fugida na minha
face, enquanto lhe passo a mão pelos cabelos, e dirige-se para o seu quarto,
hesito em segui-lo, deixo-me estar, pelo menos, ainda há silêncio, já sei que,
até amanhã, só vai sair do quarto para jantar, sim, compreendo-o, reparei que,
quando entrou, evitou olhar-me e teve um especial cuidado em beijar-me a face
direita, como é curioso, sempre tão longe, no seu arquitectado mundo de uma
dezena de anos, e simultaneamente tão próximo de uma frialdade intemporal, eu
para aqui estou, a ouvi-lo tirar a mochila, de certa forma, no indizível de
entre nós, do meu lado, uma vergonha impronunciável, da parte dele, um gesto
calado, reparei nisso ontem, quando a porta se abriu e fechou com o estrépito
habitual, aquela voz sobrepovoou, de imediato, a casa, gritou o meu nome, como
sempre, estava na cozinha àquela hora, assim que senti aqueles olhos sobre mim,
senti-me a ajoelhar, como é verdade, ia-se-me a altura e a dignidade, numa
cadência gasta seguiram-se as questões, com quem estive, falei, por fim, a
janta, o hálito a denunciar-lhe os passos antes do lar, tudo cansado, repetido,
sobrepovoado, os joelhos a tolherem-me os movimentos, não os joelhos, mas
aquele olhar, como é estranho, os mesmos olhos, mas um olhar que eu
desconhecia, e, muito antes, assim que aqueles olhos em mim, sentia que me
elevava a um palco, a voz escassa para os meus desejos, muito longe de
sobrepovoamentos, como se a ténue e encantatória melodia de riacho em tarde de
Verão, eu a segui-la na esperança de saciar uma sede chegada de paragens
além-compreensão (Isto foi há quanto? Talvez numa outra existência…), os gestos
contidos, como se espartilhados por uma timidez desarmante, o riacho nos meus
ouvidos, tardes de gelados, de sombras e dedos entrelaçados, como eu gostava de
subir a um palco, perdia-me a olhá-lo para satisfazer este meu desejo, sim, eu
era o seu mundo, certa noite, foi lá a casa expressar os seus desejos aos meus
pais, sempre respeitador do cânone, já trabalhava, cumprira com as letras e
números necessários, os meus pais renitentes, talvez se esperasse um pouco
mais, mas aquela melodia do riacho em tarde de Verão, os meus desejos de um
palco, mais tardes de gelados, de sombras e dedos entrelaçados, no Inverno,
cinema, o ombro dele onde eu repousava angústias e embalava sonhos, castanhas
repartidas, poças de água dançadas, lábios ofegantes sob a chuva, em despedidas
sem amanhã, cumpriram-se formalidades, documentos, igreja, padrinhos, do lado
dele apenas o pai, os meus estranharam, afinal, a viuvez é feminina, nessa
noite, rumámos ao Algarve, talvez tenha sido aí que deixei de ouvir aquela
melodia do riacho em tarde de Verão, a voz tornara-se mais oceânica, de vez em
quando a vaga de uma interrogação, a princípio, atribuía ao ciúme, sempre me
aquecia o sentir, mas o olhar caminhava os passos do hálito, e eu, estarrecida,
a pensar que entrara numa igreja com o dia e saíra de braço dado com a noite,
ainda hoje, esta imagem persegue-me, como se o vaticínio de uma existência, já
não me lembro da primeira vez em que, sim, é verdade, já não me lembro porque
foi, a segunda foi poucos dias depois, disso tenho a certeza, tentou recuperar
aquela melodia do riacho em tarde de Verão, mas eu já não a ouvia, esforçou-se
por mais tardes de gelados, de sombras e dedos entrelaçados, contudo, doía-me o
rosto, tentou, no Inverno, cinema, o ombro dele onde eu repousava angústias e
embalava sonhos, castanhas repartidas, poças de água dançadas, lábios ofegantes
sob a chuva, em despedidas sem amanhã, em vão, a noite entrara na minha vida, e
hoje, enquanto os meus sonhos repousam, limito-me a contemplar angústias. É
possível que, um dia, quando o miúdo chegar da escola, eu pronuncie vergonha,
enquanto ele dê voz a um gesto, e, talvez nesse momento, ele me possa beijar as
duas faces sem o receio de encontrar vestígios de uma frialdade intemporal.
Sim, é possível…
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