Livros do Escritor

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terça-feira, 27 de setembro de 2022

Esta noite

 


Ouço a campainha. Um pânico intruso corre por mim. Instintivamente procuro por horas. Afinal, é o miúdo. Enquanto expiro, o pânico, já longe, a dobrar uma qualquer esquina, numa corrida envergonhada. De mochila às costas, entra em casa, um beijo de fugida na minha face, enquanto lhe passo a mão pelos cabelos, e dirige-se para o seu quarto, hesito em segui-lo, deixo-me estar, pelo menos, ainda há silêncio, já sei que, até amanhã, só vai sair do quarto para jantar, sim, compreendo-o, reparei que, quando entrou, evitou olhar-me e teve um especial cuidado em beijar-me a face direita, como é curioso, sempre tão longe, no seu arquitectado mundo de uma dezena de anos, e simultaneamente tão próximo de uma frialdade intemporal, eu para aqui estou, a ouvi-lo tirar a mochila, de certa forma, no indizível de entre nós, do meu lado, uma vergonha impronunciável, da parte dele, um gesto calado, reparei nisso ontem, quando a porta se abriu e fechou com o estrépito habitual, aquela voz sobrepovoou, de imediato, a casa, gritou o meu nome, como sempre, estava na cozinha àquela hora, assim que senti aqueles olhos sobre mim, senti-me a ajoelhar, como é verdade, ia-se-me a altura e a dignidade, numa cadência gasta seguiram-se as questões, com quem estive, falei, por fim, a janta, o hálito a denunciar-lhe os passos antes do lar, tudo cansado, repetido, sobrepovoado, os joelhos a tolherem-me os movimentos, não os joelhos, mas aquele olhar, como é estranho, os mesmos olhos, mas um olhar que eu desconhecia, e, muito antes, assim que aqueles olhos em mim, sentia que me elevava a um palco, a voz escassa para os meus desejos, muito longe de sobrepovoamentos, como se a ténue e encantatória melodia de riacho em tarde de Verão, eu a segui-la na esperança de saciar uma sede chegada de paragens além-compreensão (Isto foi há quanto? Talvez numa outra existência…), os gestos contidos, como se espartilhados por uma timidez desarmante, o riacho nos meus ouvidos, tardes de gelados, de sombras e dedos entrelaçados, como eu gostava de subir a um palco, perdia-me a olhá-lo para satisfazer este meu desejo, sim, eu era o seu mundo, certa noite, foi lá a casa expressar os seus desejos aos meus pais, sempre respeitador do cânone, já trabalhava, cumprira com as letras e números necessários, os meus pais renitentes, talvez se esperasse um pouco mais, mas aquela melodia do riacho em tarde de Verão, os meus desejos de um palco, mais tardes de gelados, de sombras e dedos entrelaçados, no Inverno, cinema, o ombro dele onde eu repousava angústias e embalava sonhos, castanhas repartidas, poças de água dançadas, lábios ofegantes sob a chuva, em despedidas sem amanhã, cumpriram-se formalidades, documentos, igreja, padrinhos, do lado dele apenas o pai, os meus estranharam, afinal, a viuvez é feminina, nessa noite, rumámos ao Algarve, talvez tenha sido aí que deixei de ouvir aquela melodia do riacho em tarde de Verão, a voz tornara-se mais oceânica, de vez em quando a vaga de uma interrogação, a princípio, atribuía ao ciúme, sempre me aquecia o sentir, mas o olhar caminhava os passos do hálito, e eu, estarrecida, a pensar que entrara numa igreja com o dia e saíra de braço dado com a noite, ainda hoje, esta imagem persegue-me, como se o vaticínio de uma existência, já não me lembro da primeira vez em que, sim, é verdade, já não me lembro porque foi, a segunda foi poucos dias depois, disso tenho a certeza, tentou recuperar aquela melodia do riacho em tarde de Verão, mas eu já não a ouvia, esforçou-se por mais tardes de gelados, de sombras e dedos entrelaçados, contudo, doía-me o rosto, tentou, no Inverno, cinema, o ombro dele onde eu repousava angústias e embalava sonhos, castanhas repartidas, poças de água dançadas, lábios ofegantes sob a chuva, em despedidas sem amanhã, em vão, a noite entrara na minha vida, e hoje, enquanto os meus sonhos repousam, limito-me a contemplar angústias. É possível que, um dia, quando o miúdo chegar da escola, eu pronuncie vergonha, enquanto ele dê voz a um gesto, e, talvez nesse momento, ele me possa beijar as duas faces sem o receio de encontrar vestígios de uma frialdade intemporal. Sim, é possível…

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