Quando pensamos em alguém, com o decorrer do tempo, mesmo se já tiver partido, só há um aspecto que se mantém inalterado: a voz! Até o rosto se vai desvanecendo, desvanecendo, daí a pertinência das fotos, para nos recordarmos, para reavivar certezas, porém, a voz subsiste na memória, no sentir, como certas frases que, só com aquela sonoridade, fazem sentido, é comum pensarmos, afirmar é mais raro, que alguém só podia ter aquele timbre de voz, como se o seu pensar só assim pudesse ser expressado, a tudo isto não se pode, como é óbvio, dissociar a aparência, a partir desta premissa, vou hoje trazer à cena uma figura em que voz e físico residem, literalmente, nos antípodas, ao telefone ouvimos uma voz cavernosa, arrastada, gutural, como um viajante chegado da mais longuíssima jornada, uma voz onde o conceito de temor não encontrasse entrada, contudo, a personagem tem um metro e sessenta, vai pouco além dos cinquenta quilos, calça o trinta e oito, de facto, após se falar ao telefone, esperar-se-ia uma imponente figura de um metro e noventa no mínimo, perto de cem quilos, ombros a lembrar mesas-de-cabeceira, um rosto granítico e corte à militar, um autêntico Schwarzenegger, pois, mas, como disse, vou hoje trazer à cena uma figura em que voz e físico residem, literalmente, nos antípodas, no seu lugar emerge um Dustin Hoffman, de início vem o espanto, a voz cavernosa, arrastada, gutural, como um viajante chegado da mais longuíssima jornada, ainda tão presente, nada como pô-lo a falar para liquidar todas as dúvidas, a questão é o alimento do diálogo, velho e sabido, a cabecita enterrada entre os descarnados ombros, passa, receoso e desconfiado, a olhar o chão, quase como se procurasse a invisibilidade, como um rafeirito a caminho das sombras de uma esquina, no entanto, desta vez, uma questão saiu-lhe ao caminho, daquelas que imperativamente têm de ser respondidas, num contexto assim, andam à volta do mundo da bola, nesta altura da sua vida, concluiu, por fim, que a sua aparência e voz residem, literalmente, nos antípodas, só lhe restava a solução óbvia e mais fácil, pensou ele: modelar o corpo ao encontro da voz: inscreveu-se num desses lugares povoados por gritos, urros, suor e pesos: em verdade, estas seriam as palavras escolhidas por um pseudo-intelectual para descrever um ginásio, felizmente situo-me nos antípodas dessas figurinhas-de-pacotilha, sei muito bem, e há muito, que um ginásio é palco do desfilar da vida: com todas as suas grandezas e misérias, sonhos e frustrações, superação e desistência, carácter e pulhice; bom, mas à pergunta da bola, lá se virou e respondeu como pôde, denotava-se, a cada sílaba, uma luta, muito sua, contra a timidez, contudo, questão resolvida, de facto a voz pertencia-lhe, também aquele um metro e sessenta com pouco mais de cinquenta quilos, quem o visse, com um olhar imparcial, questionar-se-ia, mas que diabo anda este a fazer num ginásio? Um ar extenuado condizente com a passada lenta, como se chegado de uma longa labuta, a inata introversão contribuía sobremaneira para o aspecto de intelectual, antes de iniciar os sofríveis exercícios ao alcance de um octogenário, sentava-se a ler os jornais, de uma certa distância, tal acto provocava admiração, talvez em busca de algo que lhe tivesse escapado da complexa realidade, não obstante os descarnados ombros, parecia suster o mundo às costas, daí o ar extenuado condizente com a passada lenta, nos primeiros tempos ainda se aventurava na sala de pesos, era vê-lo em esgares terríficos com halteres dignos de uma Jane Fonda, após levantá-los três ou quatro vezes, sentava-se no banco mais próximo, ofegante, como se acabado de levantar toneladas, não se ia embora sem pedalar na bicicleta da terceira-idade, toalha-ao-pescoço, também aí os esgares de esforço, compreensível, os Himalaias acabavam de ser transpostos, por fim, lá ia, taciturno, na sua lenta passada, este Sísifo contemporâneo, de início, com tanta voragem de jornais, pensaram tratar-se de algum economista, a necessidade de permanente actualização, qual não foi o espanto geral quando um conhecido-comum, que padecia de incontinência-verbal, os informou de que o nosso Dustin Hoffmann desconhecia o conceito de trabalho: tudo ficou em espanto! Mas, mas, mas… O ar extenuado, a voragem de jornais, algum economista, a necessidade de permanente actualização, a passada lenta, o ar de intelectual, das asas-dos-pais passou a estar sob a asa-da-mulher, era dono-de-casa, compras, refeições, limpeza, não é fácil, convenhamos, ela viera de Leste, conheceram-se nos lugares do hoje, entre teclas e écrans, como talvez não lhe tenha ouvido a voz antes do primeiro encontro, não lhe viesse, logo, a ideia de que voz e físico residem, literalmente, nos antípodas, por aqueles lados também muito se espantaram ao tomar conhecimento do seu passado de vendedor-de-missangas pelas calçadas lisboetas, tudo cadenciado por melodias dos “Doors” e temperado a charros, uma vez mais: tudo ficou em espanto! Se para o Dustin Hoffman chegar a Schwarzenegger é sonho, que dizer do Jim Morrison? Só uma foto, desviada a muito custo, dissipou todas as dúvidas: ali estava ele, de barbas, trunfa à John Lennon, pois, o pseudo-economista concentrado do hoje, em verdade, um dono-de-casa, havia sido um rebelde vendedor-de-missangas pelas calçadas lisboetas, uma história cansada, os pais: “Tens de ser doutor! Tens de ser doutor! Tens de ser doutor!”, certo dia, cansou-se da imperativa insistência, entre baforadas sentiu o apelo das ruas, partiu, meses depois, talvez se tivesse cansado de tentar ser John Lennon, que nem filho-pródigo regressou à casa-paterna, quando a torneira dos pais cessou, felizmente, para ele, a protecção veio de Leste, procurou acompanhar os rigores daqueles lados, daí as infrutíferas tentativas de se transformar em Schwarzenegger, não sei se por maldade, quando dizia andar no ginásio, respondiam-lhe em espanto: “A sério??? Mas já lá não vais há muito, certo?”, em momentos assim, a cabecita ainda se escondia mais entre os descarnados-ombros, há coisas que simplesmente não se devem dizer, apesar de tudo, quando vislumbrava uma figura-feminina que lhe agradasse, prontamente questionava: “Quem é? Quem é?”, com aquela voz cavernosa, arrastada, gutural, como um viajante chegado da mais longuíssima jornada, de certeza que, antes de lhe responder, o seu interlocutor terá pensado: “Se só falares ao telefone, as tuas possibilidades aumentam exponencialmente…”
(17/09/22)
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