Um dos aspectos que ressalta, logo ao primeiro contacto, é a sua imaculada educação, segue-se-lhe o afável trato, observador, bom-ouvinte, dominava muitíssimo bem aquele peculiar malabarismo-social de falar de si sem dizer muito, no entanto, todos, à sua volta, pareciam satisfeitos com o que de si comunicava, mas, em verdade, não procurava saber muito dos outros, apenas o que lhe quisessem transmitir, a sua elevada gentileza, que se estendia aos gestos e linguagem, indiciavam outra bagagem-cultural, pois, a ilusão da aparência, velho engano, contudo, um ouvinte perspicaz, sabia, de antemão, o que se lhe ia dizer, vivemos tempos onde a educação parece, cada vez mais, um anacronismo, nada é por acaso, repito, nada é por acaso, há quem tenha muito interesse na derrocada dos valores-essenciais, porém, ele esmerava-se em gestos de perfeita educação, por vezes, olhavam-no com estranheza, quem se habitua à rudeza, estranha o polimento, na altura em que mais comunicámos, fazia-se acompanhar de um espanhol de gestos e linguagem inversamente proporcionais, chamava-se José, mas vamos expor o nome conforme a peculiar pronúncia castelhana: Rosé; curioso o facto de ele arrastar, quando chamava, o Roosééé, quase com boquinha-de-passarinho: Roosééé; bom, nessa altura, denotava-se-lhes uma sentida proximidade, própria de um casal, todavia, o Rosé ou Roosééé, quando o chamava, quase com boquinha-de-passarinho, padecia de um mal-antigo: era excessivamente ciumento; sempre que o via a trocar mais de três frases com alguém, desatava a bufar e, por vezes, a afastar-se, rosnando, entredentes, azedas palavras na sua língua-natal, ambos trabalhavam na área da estética, próprio destes contextos enviesados, o Rosé ou Roosééé, quando o chamava, quase com boquinha-de-passarinho, era tatuador, isto foi há uns anos, sublinhe-se, cedeu inclusive uma sala, no seu estabelecimento, para o Rosé potenciar o seu negócio, regra geral, sentimo-nos bem a falar de algo que dominamos, ele não diferia, por conseguinte, quando o assunto ia para o campo da cosmética, parecia renascer, até as palavras lhe saíam mais ligeiras, em certa ocasião, alguém lhe perguntou se aconselhava uma marca específica para a hidratação da pele, não se fez rogado, levantou-se, de imediato, e, logo ali, revelou o seu Graal da hidratação cutânea, “Olhe, peço-lhe imensa desculpa, mas esqueça todos esses cremes e afins dos super-mercados”, a cena repetiu-se, o Rosé afastou-se a rosnar, entredentes, incompreensões aos nossos ouvidos, porém, o mote estava lançado, cosmética, “Quando acabo o banho, com a pele ainda húmida, atenção, a pele tem de estar húmida, ponho óleo para bebé, não importa a marca, e não seco logo, ponho apenas um rooouuupão (talvez, aqui, uma reminiscência do Roosééé, a boquinha-de-passarinho era a mesma) e assim ando pela casa. Não há melhor para a pele,” sem dúvida elucidativo, passados uns dias, voltaram à carga, questionaram-no sobre cuidados com o rosto, foi a última vez que vimos o Rosé, nessa tarde, o espanhol-tatuador bateu com a porta, da parte dele prevaleceu, como sempre, a educação, talvez o sentir já caminhasse em passos-arrefecidos, afinal, ninguém via aquele espanhol-bronco, com boquinha-de-passarinho, a corresponder devidamente ao Roosééé, por muito que esforçássemos o intelecto, “Eu ando sempre com uma água-de-rosto comprada na farmácia. Sobretudo em pleno Verão. Aplico, pelo menos, quatro vezes por dia. Para além disso, uso também um creme-de-rosto,” de facto, não víamos aquele espanhol-bronco com estas delicadezas, a certa altura, cheguei a questionar-me como faria as tatuagens, quem sabe se à martelada, tinha mais aspecto de trolha que de qualquer outra coisa, como há pouco salientei, foi a última vez que vimos o Rosé, nos dias seguintes, nem por acaso, denotámos-lhe um ar derrotado, mal se levantava, havia uma frase que se lhe tornou recorrente: “Sabem, eu sou uma pessoa seriíssima,” um pouco mais à frente, “Sabem, eu sou uma pessoa seriíssima,” até levava a mão ao peito, como se em exortação, a maledicência tratou de arranjar as mais diversas teorias para justificar o afastamento do Rosé, eu só encontro uma razão plausível, quando alguém seriíssimo, quase com boquinha-de-passarinho, chama Roosééé, vestido apenas com um rooouuupão, e como resposta apenas um rosnar entredentes, mais vale virar as costas antes que passe a hora do creme-de-rosto.
(06/09/22)
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