Livros do Escritor

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domingo, 11 de setembro de 2022

Está bem, está…


 

Hoje vou falar de uma figura que facilmente poderia ser a verdadeira fonte-de-inspiração para a personagem Wally – a quem não acho qualquer graça, confesso – alguém que, de facto, encontramos nos lugares mais recônditos, mas já lá vamos, um dos erros mais comuns, quando conhecemos alguém, é perguntar qual a sua profissão, como se a actividade de sustento definisse o sujeito, nada mais errado, eu, por exemplo, sou tudo menos a minha profissão, e era o que mais me faltava confundir a minha ontologia com a forma-de-sustento, todavia, por muito que tenhamos estas directrizes presentes, lá me vi a colocar a malograda questão quando o conheci (atenção: esta pergunta coloca-se, quase sempre, a um amigo comum, nunca ao próprio), a resposta deixou-me atónito: “Sinceramente, não sei o que faz! Já o vi a realizar os mais diversos trabalhos!”, extraordinário, pensei logo na rigidez da minha postura, devolvida por um qualquer espelho, em contraste com volatilidade daquele autêntico camaleão, ainda a resposta ecoava em mim (“Sinceramente, não sei o que faz! Já o vi a realizar os mais diversos trabalhos!”), quando me pus a observá-lo devidamente, pois, de facto, os óculos apelavam ao intelectual, porém, o brinco na orelha concedia-lhe uma aura de chulo do Cais-do-Sodré, pois, de facto, um somatório de partes, uma das suas múltiplas atividades era de treinador-adjunto de futebol nas distritais das distritais, da qual muito se orgulhava,  sublinhe-se, era comum, às segundas-feiras, ouvir nomes épicos como: Águias de Camarate, Catujalense, Os Bucelenses, Atlético-Tojal, Santa-Iria, Juventude-Castanheira, Ponte-Frielas, que associava a tudo menos a bola e relvados; a verdade é que, naquele espaço e pela sua voz, o Juventude-Castanheira parecia estar a um passo da meia-final da Liga-dos-Campeões, pois, quem sabe, a vida complicou-se-lhe um pouco, neste aspecto, quando por ali apareceu alguém familiarizado com este submundo da bola das distritais das distritais, neste contexto apenas vislumbrava a noite da minha ignorância, felizmente, confesso, perguntar-se-á o leitor: qual o motivo para a vida da nossa personagem se ter complicado? Muito simples: as derrotas do seu clube passaram a ser do conhecimento geral; por conseguinte, quando perdia, às segundas-feiras passou a haver duas possibilidades: ou simplesmente não aparecia, ou vinha munido de um escudo de desculpas, por norma, o discurso não fugia muito a isto: “Viste o jogo? Não, a sério, viste o jogo? É que podíamos ter goleado! Eles vieram uma vez à nossa baliza! E fizeram golo… Dominámos o jogo inteiro! Podíamos ter vencido por uns seis ou sete… Não, a sério, viste o jogo?”, quando ouvi esta questão, pela primeira vez, pensei, a sério, que estivesse no gozo, mas quem iria perder o seu tempo a ver uma coisa daquelas ao-vivo ou na televisão?! E onde se transmitiria tal fenómeno?! Outra das suas vincadas características passava por propagandear algum currículo com o sector feminino, velho e sabido: a gabarolice só conhece a voz masculina; porém, também aqui a vida se lhe complicou, certa tarde, enquanto ajeitava os óculos e clamava os seus feitos de arrebatador de corações, ouviu-se esta afirmação num despudorado tom: “Também só arranjas camionetas!”, não contente, o emissor procurou ser mais explícito, não houvesse alguém com dificuldades em metáforas: “Sim, tu só arranjas tipas com mais de oitenta quilos! Cheias de grandes curvas e com demasiada chicha!”, um confrangedor silêncio abateu-se sobre o mundo, como iria o nosso improvável herói dar a volta àquela ignomínia? Não estou a exagerar, mas pareceu-me ver, naqueles instantes, também o brinco a corar, como se podia conceber que o homem dos mil e um ofícios, treinador-adjunto, ainda assim treinador, de um clube do submundo da bola das distritais das distritais, contudo, do banco se governa o navio de uma equipa, ter como companhia feminina um mamífero dos sete mares?! Pois, inconcebível, apesar do mais que evidente ruborescer, optou pela sua velha e extenuada máxima, “Está bem, está…”,  logo, para seu descanso, a conversa divergiu, no entanto, a ideia instalara-se nos mais atentos: a de um campeão do engate de pesos-pesados femininos; na vida-social, e não só, há momentos que demarcam um antes e depois, neste caso, foi o corar também do brinco a traí-lo, a certificar a autenticidade da afirmação proclamada num despudorado tom; peço ao leitor, agora, um esforço para se imaginarem num contexto de dor, a partida, para o  outro lado das coisas, de alguém que nos é tanto, foi num contexto assim que o encontraram a trabalhar, ar circunspecto, o ajeitar dos óculos, fato-escuro inerente à ocasião, para quem duvidasse de que era, sem dúvida, o homem dos mil e um ofícios; recentemente convidaram-no para o sector imobiliário, o convite partiu de um visionário deste ramo, aquelas figuras que, logo na primeira ou segunda frase, compreendemos estarem seis ou sete séculos à frente, nem duvido, por um segundo, do sucesso desta empreitada, se, por alguma intrincada razão, a coisa correr mal, acreditem que ele não se vai furtar a responsabilidades, proclamará para quem o quiser ouvir: “Viste o jogo? Não, a sério, viste o jogo? É que podíamos ter goleado! Eles vieram uma vez à nossa baliza! E fizeram golo…”

(11/09/22)


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