Há figuras que só nos fazem sentido num contexto, como é o caso do vulto hoje retratado, como se, deslocados desse ambiente, perdessem relevância, espessura, mesmo a voz que ecoa, em nós, se fosse diluindo, perante a irreversibilidade destes factos, resolvi dedicar-lhes estas linhas e, desse modo, guindá-las à posteridade, por norma, ocupava sempre o mesmo banco-de-supino, a um canto da sala, onde permanecia deitado de costas, confesso que nunca o vi em qualquer outra máquina, só ali, deitado de costas, porém, o que saltava à vista de qualquer um era a gigantesca proeminência na zona-abdominal, nem a cabeça se lhe via, tal a altura daquela saliência, a camisola que envergava permanecia muito acima do umbigo, em pé ou deitado, o que lhe conferia uma aura de personagem de desenhos-animados, a força era irreversivelmente contrastante com a vertigem das alturas daquela proeminência-abdominal, por conseguinte, chegado aos trinta quilos, era comum ouvi-lo “Oh, meu irmão, meu irmão, dás-me aqui um toque… Vigia só, se vires que preciso, irmão, então, aí sim, ajuda…”, e lá ia deitar-se, por vezes, achava enternecedor tanto cuidado e alarido para um peso tão infantil, no entanto, ele lá se esmifrava para levantar a barra, mas por muito que se esforçasse por erguê-la, jamais ultrapassava a saliência-abdominal, sublinho que o espectáculo era deveras arrepiante, à medida que levantava a barra do enfezado peito, o barrigão inchava, inchava, inchava, como se, de facto, aí residisse a sua real força, depositava a barra, com o devido estrondo, nos suportes, como se acabado de levantar insuperáveis toneladas, respiração igualmente sonora, convém para dar credibilidade à coisa, depois, depois, depois… A questão maior: como se iria erguer? Confesso ter interrompido o meu treino para saciar esta curiosidade, afinal, estava deitado num banco-de-supino, e, com aquela saliência-abdominal a pesar-lhe tanto, seria tudo menos fácil, lenta, muito lentamente, com o inevitável apoio de uma das mãos, um esgar de esforço no rosto, o desviar a cabeça da barra servia para maquilhar a manobra, na urgência de recuperar o fôlego permanecia o tempo necessário sentado, começava em movimentos rotativos da cabeça, como se, por um escasso segundo, tivesse consciência do que efectivamente estaria a fazer, contudo, há coisas que se fazem apenas porque ficam bem, quem o visse, sentado, a rodar e rodar a cabeça, provavelmente julgaria estar na presença de um entendido em prática-desportiva, sem dúvida estaria muito longe de ser confundido com um nutricionista, dizia-se que tinha um tio endinheirado, tudo à custa de negócios na sombra, em troca de um favor, o tio ofereceu-lhe um BMW, era, então, vê-lo, quando ia ao café do bairro, mesmo sem ter lugar à porta, a deixar o carro em segunda-fila, de óculos-escuros, saía do automóvel e olhava à volta, como se esperasse alguém, cotovelo apoiado no tejadilho, quem sabe copiasse os mesmos passos de algum anúncio-televisivo do seu agrado, entrava no café, nem dois minutos passados, regressava ao carro, como se esquecido de algo, abria a porta, debruçava-se para o interior, mas não muito, não fosse a proeminência-abdominal obedecer aos imperativos da gravidade e fazê-lo cair para a frente, uma vez mais, cotovelo no tejadilho, olhar em volta como se numa ansiosa espera, em verdade, nada daquilo era necessário, já todo o bairro sabia que o carro era seu, uma prenda do tio das negociatas-sombrias, o certo é que ninguém ousou explicar-lhe tal, no fundo, era confrangedor, por vezes, vê-lo em esforços para sair do carro à porta do café, uma luta titânica só para se erguer, havia nele uma qualquer coisa de sapo-inchado, o barrigão, mais a baixo dois caniçozitos que se estendiam até ao chão, contaram-me que, certa tarde, o viram, de camisa e gravata, no tal banco-de-supino, parece que aproveitou uma pausa no trabalho, houve quem acreditasse, outros duvidaram, como é habitual nestas ocorrências mais inusitadas, repeti, em jeito de questão, o final da frase: “… de camisa e gravata?” Peremptoriamente ouvi “Sim”, dirigi-me para o mais famoso banco-de-supino da história, naquele peculiar canto da sala, olhei o chão, pois, ali estavam três provas irrefutáveis da sua passagem, de camisa e gravata, sob a forma de três botões caídos, qual a camisa capaz de suster o despontar daquele Kilimanjaro? Ainda o censuraram por ali estar de camisa e gravata, sinceramente, mas aquele não é o seu canto? O respeito escasseia por estes dias, às vezes dá-me para isto, sonhar, só faltava àquele canto algo para o quadro ficar completo: o BMW; imaginem: após pousar a barra, com o devido estrondo, nos suportes, como se acabado de levantar insuperáveis toneladas, respiração igualmente sonora, convém para dar credibilidade à coisa, erguer-se a custo, muito custo, rodar a cabeça vezes infindas, depois levantar-se, abrir a porta do carro, pousar o cotovelo no tejadilho e olhar em volta… Ainda há quem diga que o céu não tem lugar na terra!
(02/09/22)
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