Livros do Escritor

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domingo, 2 de outubro de 2022

MIIIÚÚÚDDDAAAA


 

Após fechar a porta, respira fundo, a casa em silêncio, os ansiados momentos só para si, dos quais sempre fincou jamais abdicar, a mulher no trabalho, filhos na escola, em cima da mesa o ansiado objecto, retém por ali a atenção, como se para corroborar o facto, quase lhe nascia uma oração de agradecimento, o último álbum de uma banda-alternativa, digamos que se tratava de um melómano contemporâneo, havia nele um certo gáudio no facto de apreciar música-alternativa, algo que não é para todos os ouvidos, atravessa a sala de cinquenta metros quadrados, um facto que também clama para todos, após colocar o compacto-disco na aparelhagem, apetrechar-se dos respectivos auscultadores, senta-se no seu cadeirão, adquirido propositadamente para estes momentos, e frui dos primeiros acordes que o levam para longe da sua circunstância, socialmente todos representamos um papel, ou que nos é imposto ou expectável pelo contexto, mesmo os que procuram, de todas as formas, fugir à inevitabilidade das máscaras, acabam por representar um papel, o de falso fugitivo – pois já estão a ser actores sem do facto se aperceberem –, há uma nítida sacralização, para ele, destes momentos, talvez pela(s) máscara(s) caídas pelo soalho em seu redor, compreensível, quem lida com público carece do oxigénio da solidão, era sexta-feira, dia de ir com o amigo ou conhecido, por estes dias, as palavras parecem ter perdido substância, a uma loja esconsa  de música-alternativa, pois, lá está, daí o carácter esconso da mesma, em Lisboa, o tal amigo ou conhecido tinha o permanente aspecto de recém-saído de uma sauna, mas ouvia música-alternativa e era isso o mais importante, às sextas-feiras, religiosamente, seguiam ambos para o recôndito santuário musical, como se empossados de um desígnio divino, quem os visse, de uma certa distância, concordaria que mais diferentes não podiam ser, ele sempre muito direito, consciente do seu porte-atlético, denotava-se-lhe cuidado no vestir e calçar, passada ligeira e ágil, já o outro desconhecia, por inteiro, o conceito de rigor, da fábrica de óleo na cabeça à barba jamais feita, a indumentária tinha a dignidade de um feirante-bêbedo, opostos em busca de um mesmo objectivo, sublimam-se diferenças em prol de um valor-mais-alto, no seu contexto de trabalho, onde lidava com os mais inusitados espécimes-humanos, quando um elemento feminino ali aportava, era recorrente ouvi-lo a gritar triunfalmente “MIIIÚÚÚDDDAAAA”, quem ali teve o privilégio de estar lembrar-se-á, de certeza, deste épico e triunfal grito: “MIIIÚÚÚDDDAAAA”; no entanto, se algum incauto lhe entrava, próximo da sua hora de saída, não era brindado com um sorriso, mas sim com o rosto-fechado e uma advertência: “Olha, vê lá as horas, só tens quarenta-minutos para treinar!”, a frase era dita com sofreguidão, não fosse alguma sílaba traí-lo e revelar tudo asco sentido pelo retardatário, de imediato, procurava, em redor, um ouvido-amigo com quem pudesse partilhar esta angústia chegada, como precisava de desabafar, era-lhe notória a incapacidade de reprimir as mais elementares emoções, após: “Olha, atenção às horas, só tens quarenta-minutos para treinar!”, era vê-lo, junto de um ouvido-amigo: “Já viste? Achas normal? Entrar a esta hora? Daqui a meia-hora é a andar, andar, andar… Quem vier que feche a porta! Sempre a mesma coisa! Devem pensar que estão em casa! Que os outros não almoçam! Para este peditório já dei!”, qualquer contrariedade nunca lhe foi bem-vinda, ali ficava a desabafar o necessário, “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, era pródigo em pérolas assim, não lhe era difícil encontrar um receptor generoso, afinal estava no seu espaço, os fins-de-semana, regra geral, eram passados a caminho de pavilhões onde espalhava a magia do seu futebol, se, por acaso, o adversário surpreendia, o mau-perder não se lhe tardava a emergir, houve exemplos suficientemente plurais deste facto, chegado o Verão, rumava aos  Algarves com a família, apesar da praia, os hábitos de leitura subsistiam, debaixo do braço o imperdível jornal “A Bola”, não fosse perder a última contratação do seu Benfica, à noite, com a esposa, deambulavam pelo centro-comercial mais próximo, ele sempre muito direito, consciente do seu porte-atlético, porém, se, por acaso, visse alguma conhecida, jamais poderia emitir o triunfal e épico grito “MIIIÚÚÚDDDAAAA”, há coisas que nenhum homem ousa fazer sob o olhar da sua mulher, mais tarde, bem mais tarde, talvez este casamento se dilua, os cinquenta metros quadrados da sala idem, imaginem como terá reagido, logo ele – qualquer contrariedade nunca lhe foi bem-vinda –, mas, de facto,  ela não suportava as sextas-feiras, na companhia do seboso, a caminho da loja-esconsa de música-alternativa, os fins-de-semana de bola nos pavilhões do concelho, ou possivelmente lhe chegassem ecos do famoso e gutural grito “MIIIÚÚÚDDDAAAA”, num naufrágio procura-se salvar o essencial: a existência; assim o fez, primeiro, salvou-se, depois reconstruiu o que pôde, de certa forma, serenou, os cinquenta metros quadrados exigiam muito de si, afinal, só precisava de um canto sossegado para ouvir a sua música-alternativa, o seboso também se lhe diluiu do horizonte, assim é o palco da existência, uns saem para outros entrar, também há os que regressam, só perdura o que a vida permite, neste ponto, proclama audivelmente: “Eu gosto muito de mim…”, num tom mais comedido, tão distante do histriónico “MIIIÚÚÚDDDAAAA”, até se sentava num degrau para ouvir o dia-a-dia de um par de muletas “Esta semana só consigo vir duas vezes… A minha irmã faz anos. Na quinta-feira tenho cabeleireiro… Mas, para a semana, fica prometido: virei três vezes…”, para um observador minimamente atento a este quadro – ele sentado num degrau, com uma expressão de suplício, a ouvir o par-de-muletas a discorrer sobre banalidades – o sentir oscilava entre a ternura e a melancolia, afinal, naquele degrau estava quem, no ontem, fez levantar o terceiro-anel… Mas, como afirmava bastas vezes, “O futebol é o momento”, a vida também, acrescento eu agora, um dia, o par-de-muletas também se lhe diluiu do horizonte, em verdade, desconheço se, no seu íntimo, não houve um lamento, é sempre bom saber se mudou o dia do cabeleireiro, o degrau onde se sentava também ficou vazio, e um quadro se esfumou da existência, como afirmava bastas vezes, “O futebol é o momento”, a vida também, acrescento eu agora, todavia, acredito que, com a devida serenidade  e um pouco de atenção às coisas do mundo, nos chegue o eco de um grito imortal: “MIIIÚÚÚDDDAAAA”.

(02/10/22)


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