Livros do Escritor

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domingo, 9 de outubro de 2022

A rameira da mini-saia e o avôzinho-desnorteado



Quem os visse, aos Domingos, a passear, no Campo-Grande, de mão-dada, apesar do abismo etário, acharia enternecedor, o avôzinho a procurar, no possível de si, relembrar à coluna a sua verticalidade, mas o apelo da Terra há muito se fazia sentir, volta e meia, o seu olhar na direcção do estacionamento, afinal, aí estava o descapotável, anacrónico, como não podia deixar de ser, comprado propositadamente para estas ocasiões, ela, a seu lado, sempre de mini-saia, compreensível, quando nada mais há para oferecer, só resta a carne, uma cara apatetada pontuada por duas órbitas-vazias, uma hora antes, cumpriu-se o rito domingueiro, após o almoço, saíam ambos do prédio, muito compenetrados, passada lenta, para toda a rua ver, ai de quem ousasse perigar a honra da mini-saia a seu lado, o avôzinho lá desatava a rosnar, houve quem pensasse estar com um  AVC, tal a espuma emitida entre lábios pelo avôzinho, alguns até se ofereceram para o ajudar a atravessar a rua, ninguém ia contestar as alucinações de um esclerosado, a fragilidade do idoso só suscitava indulgência, coitadinho do avôzinho, estas medicações novas para a líbido são tramadas, acabam por afectar a mioleira, e, quando esta não é abundante,  o retrocesso é uma miragem, também havia quem, para não ferir a susceptibilidade do avôzinho, sobretudo a porteira do prédio, se limitasse a ver, ocultado pela cortina, a saída domingueira do inusitado par, o descapotável anacrónico sempre lavadinho, embora nada disfarçasse o aroma a naftalina, para tirar o carro do lugar, com a respectiva marcha-atrás, eram necessários uns minutos, nesta altura, ela valia-se de uns óculos-escuros, do seu passado pouco se sabia, apenas que era muito pouco recomendável, a indumentária não divergia muito da mini-saia, as carnes sempre à mostra, chegou àqueles lados por trabalhar nas limpezas, havia quem lhe apontasse o dedo devido ao facto de deixar sempre um rasto de imundície, se nem o exterior conseguia lavar, imagine-se o interior, mas ali se manteve, tornou-se próxima da mulher do administrador-do-prédio, que já dobrara a meia-idade, o casamento apenas um hábito, por conseguinte ávida de notícias que lhe povoassem o vazio, no fundo, a frustração de uma existência sem-sentido, o que não faltava à rameira da mini-saia era perspicácia, fruto de muitos passeios calcorreados, assim sendo, começou a demorar-se mais, com a esfregona, no patamar de certos apartamentos, esse aparente zelo no lavar seguia, de forma célere, para a frustrada mulher do administrador-do-prédio, com o tempo, tornou-se praticamente visita de casa, de início, a administrador admirou-se de, por ali, ver recorrentemente a mulher-da-limpeza, porém, ficou duplamente agradecido: a mulher estava entretida, já não lhe povoava tanto os ouvidos, e as carnes à mostra da rameira da mini-saia constituíam, para ele, um regalo, quando iam à terra, pasme-se, a rameira da mini-saia até com a chave-de-casa ficava, não houvesse alguma emergência, os mais antigos habitantes do prédio estranharam esta súbita familiaridade, procuraram, tanto quanto possível, reclamar, junto do administrador e da sua mulher, alguma prudência nesta “nova amizade,  ao aperceber-se desta ingerência, a rameira da mini-saia fingiu demorar-se mais na limpeza dos patamares destes intrometidos para, de seguida, povoar os ouvidos da frustrada mulher do administrador com as mais variadas calúnias, ressalve-se que esta as tomava como verdades-absolutas, as coisas, no espaço-do-viver, mudam, por completo, perante a nossa estupefacta incredulidade, como se bastasse uma distracção, e logo o mundo que conhecemos passou a ser um lugar bem lá atrás, há quem lhe chame envelhecer,  é possível, também há quem lhe chame a recusa dos factos, o prodígio das teorias perante o gelo da realidade, mas de regresso a este prédio, numa qualquer rua deste mundo  anoitecido, onde antes havia diálogo e educação, passou a haver azedume e costas-voltadas, a rameira da mini-saia rejubilava, até chegaram a requisitar os seus serviços para ver se seduzia o vizinho do terceiro-direito, dizia-se que tinha dificuldades em resistir aos encantos femininos, às sextas-feiras jantava sempre no mesmo restaurante, lá foi a rameira da mini-saia na sua missão, carnes à mostra, cara apatetada pontuada por duas órbitas-vazias, o vizinho do terceiro-direito na mesa do costume, ela foi directa à sua mesa, bem que se debruçou para exibir as carnes pálidas, no entanto, talvez por não possuir a sageza do jogo-da-sedução, talvez pela demasia de carnes à mostra, ou pela cara apatetada pontuada por duas órbitas-vazias, ou talvez lhe soubesse as noites passadas a calcorrear passeios anoitecidos, refutou qualquer avanço da rameira da mini-saia, previsivelmente ela contou o oposto, expectável de uma habitante das esquinas sombrias da vida, com o tempo, a mulher do administrador começou a cansar-se do olhar insistente e demorado do marido nas carnes expostas da rameira da mini-saia, daí ter-lhe falado, como uma opção segura e a muito curto-prazo, no viúvo do rés-do-chão esquerdo, “Até tem um barco! Imagine só…”, não tardou muito o convite para um cafezinho, um passeio no descapotável anacrónico com aroma a naftalina, houve quem, preocupado, tentasse chamar o avôzinho-desnorteado à razão, porém, nada havia a fazer, estava encantado com tanta carne à mostra, há décadas que o avôzinho-desnorteado só via pêlos e varizes como reflexo, neste momento, já devem ter chegado ao Campo-Grande, caminham, de mão dada, para o lago, o avôzinho a procurar, no possível de si, relembrar à coluna a sua verticalidade, mas o apelo da Terra há muito se fazia sentir, afirma que um dos barquitos-a-remos é seu, de facto, a mulher do administrador não mentira, era proprietário de um barco, se alguém reconhecesse a rameira da mini-saia de uma das esquinas sombrias da vida, o avôzinho-desnorteado logo rosnaria, se alguém os encontrar, opte pelo silêncio, trata-se apenas de um idoso frágil e senil com uma rameira de mini-saia a seu lado.


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