Livros do Escritor

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terça-feira, 18 de outubro de 2022

Uma lágrima na palma da mão


 

Quando fechamos uma porta pela última vez? Esta e outras questões turvavam-lhe o pensar, enquanto rodava a chave. Após a quarta volta, insistia com a fechadura para se assegurar de que era a última, contudo, acabava sempre por repetir o processo, pelo menos, uma vez, ainda abanava a porta, por fim, afastava-se, antes com orgulho, pelo pão nosso de cada dia, pela satisfação dos clientes, por ser a obra da sua vida, ainda se lembra (há quantos anos?) de dizer à mulher Esta é uma zona de futuro! Ela reticente, afinal, teria de mexer naquela conta, tantas vezes ouvira da mãe Minha filha, é muito importante que preserves sempre uma almofada para uma emergência. Lembra-te: jamais saberemos o amanhã. Desemprego, um acidente, doença, uma qualquer fatalidade. Se preservares essa almofada, sempre terás onde te agarrar. Deus permita que não seja necessário, mas não se sabe… Nunca te esqueças: o futuro é irónico. Não te deixo muito, bem sei, mas sempre é uma ajudinha em dias de pão d´ontem. E ele a querer aplicar as economias herdadas numa mercearia, logo naquela rua, metade dos prédios ainda por habitar, mas proferia aquela sentença (Esta é uma zona de futuro!) com uma segurança tal, que lhe suscitava expirações, no fundo, talvez ele estivesse certo, e aquela almofada herdada multiplicar-se-ia, atravessa a rua, abre a porta do prédio, sobe, entra em casa, a televisão, como sempre, a debitar trivialidades em alta voz, já lhe falara em ir ao otorrino, mas percebeu-lhe a resistência, não voltou a insistir, ou talvez houvesse nele outros motivos, quase sempre existem quando a insistência não renasce, e vai postar-se à janela, doravante, este seria o seu lugar no mundo, a olhar, do outro lado da rua, o que foi a sua loja, a princípio, ela não lhe percebia os passos do olhar, embora lhe adivinhasse as cores do pensamento, mas deixava-o estar, ao contrário do que ele julgava, conhecia a afinidade entre tempo e luto, daí que se familiarizasse com as cortinas esvoaçantes em cada regresso, durante três décadas, naquele espaço de duzentos metros quadrados, os gestos perpetuaram-se, hoje, da janela, vê-se a abrir, sob uma luz demasiado tímida para ser dia, a porta, a receber os primeiros fornecedores, a expor frutas e legumes no passeio, sempre frutas de um lado e legumes do outro, enquanto ela, de vassoura na mão, retocava o soalho para a clientela, conhecia rostos e vidas daquela gente, como se uma família mais lata, mas tempo rima com subtrair, e, por aquela porta, do outro lado da estrada, havia muitos rostos ausentes e muitas vozes silenciadas, pareceu-lhe em demasia, talvez haja um limite para se proferir adeus, ao fundo da rua, ainda antes de festejar o final da segunda década, abriu um supermercado, ele tinha razão (Esta é uma zona de futuro!), os outros limitaram-se a seguir-lhe os passos, mais espaço, mais produtos, preços dietéticos em relação aos seus, mas não podia encurtar as margens, afinal, também tinham de sobreviver, a certa altura, ainda as tentou encurtar, talvez em vão, os sacos começaram a sair mais leves, os rostos de sempre visitavam-no menos vezes, quando entravam percebia-se-lhes o comprometimento, ele tentava diluir pesos desnecessários com graças, mas o ontem não volta, sim, é verdade, ele tinha razão (Esta é uma zona de futuro!), contudo, não tinha a passada necessária, acabou por ser ultrapassado, nesta tarde, da varanda, à vista da porta fechada, nem pensa que pela última vez, sabe que amanhã não haverá, à entrada, no passeio, legumes de um lado e frutas do outro, inspira, pelo menos, todos os prédios estão habitados, fecha a janela, vai ter com ela à cozinha, a televisão continua a debitar trivialidades em alta voz, abre a porta do frigorífico, e, sim, podemos garantir, os legumes arrumados de um lado e as frutas do outro.

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