Quando fechamos uma porta pela última
vez? Esta e outras questões turvavam-lhe o pensar, enquanto rodava a chave.
Após a quarta volta, insistia com a fechadura para se assegurar de que era a
última, contudo, acabava sempre por repetir o processo, pelo menos, uma vez,
ainda abanava a porta, por fim, afastava-se, antes com orgulho, pelo pão nosso
de cada dia, pela satisfação dos clientes, por ser a obra da sua vida, ainda se
lembra (há quantos anos?) de dizer à mulher Esta
é uma zona de futuro! Ela reticente, afinal, teria de mexer naquela conta,
tantas vezes ouvira da mãe Minha filha, é
muito importante que preserves sempre uma almofada para uma emergência.
Lembra-te: jamais saberemos o amanhã. Desemprego, um acidente, doença, uma
qualquer fatalidade. Se preservares essa almofada, sempre terás onde te
agarrar. Deus permita que não seja necessário, mas não se sabe… Nunca te
esqueças: o futuro é irónico. Não te deixo muito, bem sei, mas sempre é uma
ajudinha em dias de pão d´ontem. E ele a querer aplicar as economias
herdadas numa mercearia, logo naquela rua, metade dos prédios ainda por
habitar, mas proferia aquela sentença (Esta
é uma zona de futuro!) com uma segurança tal, que lhe suscitava expirações,
no fundo, talvez ele estivesse certo, e aquela almofada herdada
multiplicar-se-ia, atravessa a rua, abre a porta do prédio, sobe, entra em
casa, a televisão, como sempre, a debitar trivialidades em alta voz, já lhe
falara em ir ao otorrino, mas percebeu-lhe a resistência, não voltou a
insistir, ou talvez houvesse nele outros motivos, quase sempre existem quando a
insistência não renasce, e vai postar-se à janela, doravante, este seria o seu
lugar no mundo, a olhar, do outro lado da rua, o que foi a sua loja, a
princípio, ela não lhe percebia os passos do olhar, embora lhe adivinhasse as
cores do pensamento, mas deixava-o estar, ao contrário do que ele julgava,
conhecia a afinidade entre tempo e luto, daí que se familiarizasse com as
cortinas esvoaçantes em cada regresso, durante três décadas, naquele espaço de
duzentos metros quadrados, os gestos perpetuaram-se, hoje, da janela, vê-se a
abrir, sob uma luz demasiado tímida para ser dia, a porta, a receber os
primeiros fornecedores, a expor frutas e legumes no passeio, sempre frutas de
um lado e legumes do outro, enquanto ela, de vassoura na mão, retocava o soalho
para a clientela, conhecia rostos e vidas daquela gente, como se uma família
mais lata, mas tempo rima com subtrair, e, por aquela porta, do outro lado da
estrada, havia muitos rostos ausentes e muitas vozes silenciadas, pareceu-lhe
em demasia, talvez haja um limite para se proferir adeus, ao fundo da rua, ainda antes de festejar o final da segunda
década, abriu um supermercado, ele tinha razão (Esta é uma zona de futuro!),
os outros limitaram-se a seguir-lhe os passos, mais espaço, mais produtos,
preços dietéticos em relação aos seus, mas não podia encurtar as margens,
afinal, também tinham de sobreviver, a certa altura, ainda as tentou encurtar,
talvez em vão, os sacos começaram a sair mais leves, os rostos de sempre
visitavam-no menos vezes, quando entravam percebia-se-lhes o comprometimento,
ele tentava diluir pesos desnecessários com graças, mas o ontem não volta, sim,
é verdade, ele tinha razão (Esta é uma
zona de futuro!), contudo, não tinha a passada necessária, acabou por ser
ultrapassado, nesta tarde, da varanda, à vista da porta fechada, nem pensa que
pela última vez, sabe que amanhã não haverá, à entrada, no passeio, legumes de
um lado e frutas do outro, inspira, pelo menos, todos os prédios estão habitados,
fecha a janela, vai ter com ela à cozinha, a televisão continua a debitar
trivialidades em alta voz, abre a porta do frigorífico, e, sim, podemos
garantir, os legumes arrumados de um lado e as frutas do outro.
Livros do Escritor
terça-feira, 18 de outubro de 2022
Uma lágrima na palma da mão
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