Tudo começou com uma pequena
insinuação. Ou talvez já não me lembre. Bom, mas tudo tem um início, certo? No
entanto, a sua morada é o ontem. Nós, de mão dada, naquele passo arrastado de
quem vira costas ao tempo, ele a entrelaçar os dedos no meu cabelo, a caminho
do jardim, não sei porquê, mas ele lá devia pensar que eu gostava de jardins,
ou talvez fosse o seu ideal de romantismo, não sei bem, sentávamo-nos sempre no
mesmo banco, em frente do lago, eu perdida com os patos, havia neles qualquer
coisa de patinadores, enquanto isso, a mão dele em passos tímidos, a princípio,
fingia-me distraída, sim, sempre apreciei patinagem artística, quando a timidez
foi trocada pela resolução, apelei ao respeito apenas com o olhar, a mão dele
recuou desengraçada, como se uma culpa, de súbito, iluminada, seguia, agora, os
volteios alados sobre a superfície espelhada, sim, o seu olhar partiu assim que
encontrou respeito, sob uma expressão invernosa, no meu rosto, no dia seguinte,
uma vez mais, costas viradas ao tempo, dedos entrelaçados nos meus cabelos, o
jardim, sempre o mesmo, ao menos ele podia variar, o banco em frente ao lago,
eu a perder-me com a patinagem dos patos, a mão, de novo, a encetar a escalada
de uma vida, possivelmente mais resoluta que ontem, quando cobri o rosto de
respeito, talvez pelos patos, talvez pela distância de mim a mim, a mão além de
ontem, não consigo perceber se gostei do seu alcance, da sua resolução, de lhe
ler o esforço, ou se, por outro lado, desilusão pela insistência, por sempre
percorrer as mesmas geografias, pela escassez na palavra e a abundância no
gesto, bem sei que há momentos em que tal se torna imperativo, mas não num
banco de jardim defronte de um lago, de novo inverno na minha face, contudo,
ele levanta-se num repente, afasta-se, caminho do espanto à indecisão, enquanto
lhe acompanho os passos, com o olhar, mas algo me aconselha à imobilidade, sim,
deixo-me estar, afinal, sempre gostei de patinagem, não sei bem porquê, há
naquele voltear alado uma harmonia deslizante, como se uma simbiose de
elementos, o meu pensar evola-se, até que uma sombra o devolve à terra, ele,
diante de mim, mãos nos bolsos, o regresso tão brusco quanto a partida, a voz
num contraste flagrante com a mão, em esforços para o ouvir, pedia para conversarmos,
logo agora, que só me apetecia comunicar voos deslizantes, sobre uma superfície
envidraçada, com o olhar, a insistência pela conversa, cedo pelo cansaço,
levanto-me e acompanho-o, fala de sentimentos, mas a voz não tem o aroma das
palavras, sempre a distância, da forma de os demonstrar, percebo a alusão a
conhecermo-nos melhor, afinal, ele é de geografias curtas, envereda pela
cobardia de exemplos próximos, enquanto isso, tento rememorar o que me demorou
a atenção naquele olhar, somos tão estranhos, morremos e ressuscitamos, diante
do nosso compreender, tantas vezes, sim, agora que estou ciente do logro, paro
e viro-lhe o rosto para mim, percebo que o vejo pela primeira vez, apesar de já
o ter olhado tanto, algo dói em mim, uma evidência nunca é pacífica, talvez por
não admitir regresso, os meus dedos tacteiam-lhe a face, procuram dizer-lhe que
não vai haver amanhãs, que a sua mão terá de partir em busca de outras
geografias, enquanto isto, saem palavras da sua boca, porém, não as ouço,
persisto numa surdez distante e segura, nisto, tenta abraçar-me, recuo um
passo, talvez fosse demasiado, ele imobiliza-se, quão longe agora estamos, eu,
com o amanhã, ele, ainda com o hoje, nisto, o meu olhar viaja até volteios
alados sobre uma superfície espelhada, talvez um dia, naquele banco de jardim,
alguém me sussurre o aroma das palavras e desenhe com a mão gestos alados na
geografia do meu sentir.
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