Livros do Escritor

Livros do Escritor

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Queria rever o teu rosto ao entardecer - Pedro de Sá


 

 

O que amas nos outros? As minhas esperanças.

A felicidade é impossível, porque há memória.

 Friedrich Nietzsche

 

 

Índice

 

 

Partir……………………………………………………………………….4

 

Viajar…………………………………………………………………….25

 

Regressar……………………………………………………………….116

 


Partir

 

I

Amanheceu monotonia. Há muito que não me lembro dos sonhos. Ouvi há tempos, alguém dizer que sonhamos sempre durante o sono. Não podia estar mais errado. E dessa certeza ninguém me demove. Mecanicamente, cumpri com as obrigações matinais, antes de enfrentar o desencanto de mais um dia. Antes de sair de casa, já da ombreira da porta, gritei um fugidio até logo. Como eco obtive: Tem um bom dia. Marta, minha companheira, tenho que introduzi-la desta forma, uma vez que não estamos documentados, respondeu-me assim, enquanto soterrava a nossa filha com agasalhos. Nunca compreendi a tendência para o excesso da maternidade. No fundo, talvez não queira compreender. Aí reside a beleza virginal dos mistérios. Essa aparente inacessibilidade a uma resposta. Mas é mera ilusão. Porque, sei hoje, não há questões sem resposta: tudo parte de uma simples mudança de perspectiva. E, então sim, assistimos ao desmoronar dos enigmas espartilhantes. Mudar de perspectiva: trocar a segurança das certezas apaziguantes pela vertigem elíptica da dúvida.

II

Vivemos num subúrbio da capital, onde sempre vi mais carros do que gente. E mais gente do que pessoas. Saí para os primeiros acordes do alvorecer. O laranja iniciava a sua luta pelos domínios do horizonte. O frio dominante recordou-me a doçura da palavra lar. O Inverno preparava a sucessão. A azáfama matinal, das diversas casas, derramava-se na rua. Era uma orquestra de pratos, talheres, estalidos de torradeiras, bater de portas, furiosas torneiras, autoclismos do Niágara, tudo sob o compasso de um grito omnipresente: Despacha-te! Entrei no carro, que ainda ostentava, orgulhosamente, o manto da madrugada. Era dos primeiros a abandonar a praceta sonolenta. Bastava atentar nos poucos lugares vagos. Desertores de uma triunfal parada mecânica. Entre ligar ou não o rádio, pensar se queria notícias ou música, desembaciar os vidros, saber do telemóvel, dei por mim já na auto-estrada e perante a inexorável fila quotidiana. Já me habituara. Tempos houve em que praguejei, procurei percursos alternativos, mas a conclusão foi apenas uma: desgaste de nervos e de travões. Agora, ia ao sabor daquela vagarosa corrente metálica. Sabia que a jusante me aguardava uma foz conhecida. Cedi à irresistível força do hábito. É espantoso como o nosso instinto de sobrevivência anda a par com a nossa capacidade de capitulação. A nossa vontade sucumbe perante os nossos mais elementares interesses. Por vezes desconhecidos. Pensamentos deste género povoavam-me entre o travar e o acelerar. Tratava-se da altura do dia mais propícia às minhas filosofices. Sempre escolhi o visível em detrimento do invisível, o conhecido em vez do desconhecido. Embora, em momentos idos, sonhasse com harmonias de alvores nunca amanhecidos.

III

Tenho 43 anos. Sou bancário. Trabalho numa sucursal em Lisboa. Marta tem 39 anos. É fisioterapeuta. Trabalha numa clínica perto de casa. Desconhece o flagelo do trânsito. Desconhece no verdadeiro sentido: não o sofre. Antes da clínica, deixa a Filipa na Escola. Damo-nos bem. No fundo, toleramo-nos. Isso é o que acontece com todos os casais, a partir de certa altura. Já vi casais bem encarquilhados anunciar, a plenos pulmões, a eternidade do seu amor. Não me assustam. Compadecem-me. Porque, após oito anos juntos, posso proclamar apenas tolerância. Daqui também não me demovo. Não quero com isto afirmar a extinção definitiva da centelha. Tem os seus reacendimentos. Cada vez mais intervalados. O problema está na incontornável derrota da magia face ao quotidiano. Daqui não há saída. É uma troca cruel. E injusta. Daí que muitos optem por uma constante troca de parceiros, de forma a perdurar aqueles inicias e inebriantes momentos. No fundo, a eternizá-los. Estes são os mais inexperientes de todos. Nunca passaram da infância de uma relação. E acabam sempre por partir sem nunca conhecer um vislumbre do outro. Sem dúvida, isto é sempre uma derrota. Porque só nos apaixonamos por ideias. Precisamente a ideia que formamos do outro. Nada mais. E o desvanecimento da magia não é mais do que esbater dessa mesma ideia. Apercebermo-nos do outro na sua essência desnudada… Daí que desilusão seja vocábulo recorrente quando se fala de relações humanas… A morte de uma ideia é sempre trágica! Apenas contemplar, numa total orfandade, a funesta sucessão de dias, sem o prenúncio melodioso de auroras sonhadas. E aqui entra o passado, para reescrever o futuro que nunca foi.

IV 

Hoje estou particularmente sonolento. Parece-me sempre haver cada vez mais carros. São sete horas e trinta e três minutos. Estou há precisamente 43 minutos dentro do carro. Se começasse a somar o tempo que passo sentado dentro do carro ao longo de uma semana, um mês, e, por fim, um ano, o resultado só podia ser um: derrame de vida. Tempos houve, em que equacionámos ir para uma dessas vilas pacatas do interior. Marta ainda pesquisou casas e preços, invariavelmente muito mais reduzidos. Tentou seduzir-me através da propalada qualidade de vida. Mas eu resisti-lhe. Sou da cidade, respondia-lhe. E, em minha defesa, relembrei as vezes em que visitávamos os seus pais, lá na aldeia, por mais que três dias: na segunda manhã já acordava inquieto, e assim ficava, pela ausência de movimento. E esse pânico crescia em mim, ao verificar a lentidão reinante, como se a vida tivesse sido extinta da face da terra. A tranquilidade regressava só na auto-estrada, quando o trânsito recrudescia perto de Lisboa. Estava de volta ao meu ecossistema natural. Cada um nasce com a sua forma. Não há como mudar. A persistência de Marta, nesta questão, ainda se arrastou por dois meses. Evocou um casal nosso conhecido, que, aparentemente, estava muito feliz, tinha ganho muito tempo para os seus afazeres, na sua nova vida algures na planura alentejana. Claro, o que é que têm para fazer? Andar à volta do coreto? Assim, lhe respondi. Evoquei, depois, as oportunidades de futuro de Filipa, os serviços de saúde, os nossos empregos, e logo a sua atenção se desviou para uma qualquer problemática, que prontamente trataria de me apresentar. Nesse aspecto, o de me exercitar a paciência, ela sempre foi extremamente dedicada. 

O trânsito continua a arrastar-se. O condutor do lado contrasta a gravata civilizacional com a animalidade de um bocejo pontuado pelo amarelo dos seus dentes. Logo cresce em mim, o irresistível apelo orgânico de um salvífico bocejo. Sempre detestei esta coisa da indução. Procurei resistir-lhe. Sintonizei música. Tudo em vão. Acabei por exibir os meus dentes ao mundo amanhecido. 

O sujeito e o seu persistente bocejo omnipresentes na minha lateral direita. Olhei-o. Devia ter aproximadamente a minha idade. Embora, em verdade, nunca fosse feliz nesta matéria. A recorrência de constrangimentos obrigou-me a um mudo sorriso contemporizador. Findo cada bocejo, o seu rosto readquiria o devido manto de seriedade. O fato de acordo com a viatura. Tudo numa harmonia condizente com imperativos metafísicos da lusitanidade. Continuava a olhá-lo. Apesar da seriedade, vislumbrava outras gradações naquele rosto. Como alguém que perde um objecto querido algures, mas esquece-se de que o perdeu. No fundo, eu não analisava o seu rosto, mas sim o espelho que este me oferecia. Ambos provínhamos da mesma leva, e ostentávamos, agora, o desencantado perfil reconhecido em nossos pais. Onde nos perdêramos? Em que altura capituláramos? Neste momento, a minha fila anda um pouco mais. Estou a ultrapassá-lo. Já não boceja. Rói o punho, e fixa o olhar onde o desalento o leva. Onde nos perdemos? De novo, esta questão. Será este o destino de todas as gerações? Uma derrota amnésica? Talvez seja por isso que nos olhamos com uma hostilidade envergonhada. Como se nos acusássemos, mutuamente, ao descobrir que, afinal, somos despojos de um conflito efémero com a idade do mundo.

Percebo que ele ouve música, pelo tamborilar ritmado dos dedos no volante. Que música ouvirá? Serão ecos de meninice? Não há sabor, como os sons da infância! Continuo fixado neste meu espelho. É estranho, como, ao longo da vida, entre os muitos espelhos que encontramos, os mais preciosos, a dada altura, sejam os que invocam passado! De novo, ele mostra o seu amarelado esmalte à manhã. Em mim, anuncia-se o desejo. Mas, neste momento, estou muito longe. Vence a saudade… 

Escuto risos, guinchos, alguém conta, virado para uma parede, um, dois, três, quatro, cinco…, enquanto outros se apressam na urgência de esconderijos, um vira aos cinco acaba aos dez, é gritado numa convicção de vitória, o disparo de um fulminante, de uma fisga, o roçar do giz no alcatrão, para remarcar os traços, esbatidos da véspera, do palco do polícias e ladrões, de uma televisão, a música do Tom Sawyer, e logo o desejo de me descalçar, vejo ramos a tocar em aflitos bichos-de-conta, cheira-me a lareira, e, de repente, tenho o vislumbre de um pôr-do-sol no campo, contemplado de uma cadeira de praia… E sou harmonia. 

Agora é a fila dele a assumir a dianteira. Ultrapassa-me. Ostenta, a esta hora da manhã, um olhar de final de dia. Não lhe encontro luzes de infância no rosto. Apesar de iluminar a minha. Que memórias trouxe consigo? Lembrar-se-á da sua BMX? Dos joelhos cor de terra pelas olimpíadas de guelas? De olhar a lua de perto, antes do sono, envergando um pijama do Espaço: 1999? De chamar o amigo gordo de Piranha, e logo começar a trautear aquela mágica melodia azul de verão? Ou de chamar Chanquete a cada velhote com ar marítimo? De nadar à Homem da Atlântida? De sair de casa com a lista telefónica, que se convertia em munições, para a guerra de canudos? Da primeira arritmia de amor? Da melodia do amolador – Sinal de chuva, dizia-lhe a professora primária? Da primeira aparelhagem, seguida dos primeiros discos? Dos singles (45 rpm)? Ou dos LP (33 rpm)? Do fascínio sentido enquanto o disco girava, e das colunas envolverem-no no sublime da música? Foi assim que conheceu os Scorpions, os Alphaville, e tantas outras bandas míticas, que se afirmavam, em primeiro lugar, pela altura das permanentes? Ter-se-á refinado o ouvido, com o tempo? Ou será, para ele, cada uma destas melodias, um daqueles lugares que se leva no bolso, não vá haver um surto de nostalgia? E dos aniversários, que recordações transporta? Terá, na sua biografia, natais de província? Será daqueles que sonha ao saborear o cheiro de terra molhada? Ainda guarda, nos pés, as marcas das tiras das sandálias de plástico? Ainda ostentará, orgulhoso, as meias das raquetas? Não sei. Mas, pareceu-me vê-lo retirar qualquer coisa do bolso, não se vá dar o caso de vir um surto a caminho…

Hoje ainda tenho uma reunião, após o expediente, por causa de uma hipotética fusão. Nada é certo nestes dias. Apenas uma crescente angústia nos corações daqueles cansados de tanto olhar o mundo.

V

Sei que Marta não gosta destes prolongamentos laborais. Apenas isso. Não acho que a sua imaginação (ou chamar-lhe-ei ciúme?) vá tão longe! Mas que sabe um homem do coração de uma mulher? O coração de uma mulher não é para se conhecer, mas sim para se sentir. Aqui reside o equívoco da maioria dos homens. Também já andei por ali. Até me aperceber de que tudo leva o seu tempo. E, no fim de tudo, aprendemos a maior e mais dura das lições: tudo tem o seu tempo. Marta, como penso ter referido, provém de famílias remuneradas do interior. Talvez por isso, a voz da terra ainda lateje dentro de si, clamando o seu regresso. É uma mera hipótese. O seu primeiro contacto com a capital deveu-se ao curso. Antes disso, não me recordo de ouvir passos seus pelos labirintos de Lisboa. Nos seus relatos desses tempos, é indisfarçável o deslumbramento sentido.

Ficou em casa de uns primos. Um casal com duas filhas da sua idade. Uma cursou direito, a outra perdeu-se numa viagem até ao Intendente. Foram educadas da mesma maneira, era frase que mais se ouvia naquela casa, entre olhos embaciados e lenços. Dizem que seguiu os passos do namorado. Por ali deambulou. De poeirentos quartos de pensões, aos lancis dos passeios, até aos estofos desgastados de automóveis conduzidos por capitulações de lares nunca concretizados. Longa e subterrânea foi a sua epopeia. Tudo em nome de uma pátria intravenosa e alienante. Por vezes, os pais viam-na de longe, a abordar condutores, pediria uma boleia? Talvez. De seguida, entrava. Talvez fossem para um destino comum. Talvez… No fundo, já não viam a sua menina. Viam uma ruína do templo que procuraram, ao longo do tempo, erigir. O que mais lhes doía, mas que nem ousavam confessar, era reconhecerem naquele rosto amarelecido, sujo, esquálido, vestígios de uma inocência que lhes sorria e, ao mesmo tempo que os abraçava, lhes aquecia os corações. Regressavam a casa abraçados, num amparo mudo, como se temessem naufragar no indizível de uma dor que lhes turvava para além do ser. Nunca falaram destes passeios à outra filha. Ela também nunca questionava. Embora o pressentisse. São poucos os motivos que levam alguém a entrar em sua casa com a alma na sola dos sapatos. 

Mas a inevitabilidade do regresso a casa é o destino dos pródigos. E recentemente, tal como partiu, ela começou a ter lampejos do caminho de volta ao lar. A estudante de Direito nem queria ouvir falar desta possibilidade. Há muito, no seu íntimo, havia cumprido o luto fraternal. Entre a vergonha e o rancor balizavam-se os seus sentimentos, enquanto os pais procuravam o vitelo mais gordo.

Até à festividade ainda havia uma longa caminhada. Contudo, depois de uma fractura, nunca mais se caminha da mesma forma. E talvez aqui residisse o grande equívoco do supliciado casal: borracha e solidez nunca foram sinónimos. Afinal, o passado está sempre presente.

Pelo menos, uma vez por semana, Marta visita os primos. De ingratidão não sofre. Aprendeu muito cedo que, só se vira as costas, depois de assegurar que a porta se fechou.

 

VI

O rádio fala de um acidente qualquer, a umas centenas de metros à frente do local onde me encontro. Já não me questiono do porquê dos acidentes diários ocorrerem sempre à minha frente. Sim, porque todos os dias há, pelo menos, um. E sempre à minha frente. Se ao menos fosse atrás. Que gozo sentiria! Ouço Marta: Escusas de te queixar! Vai de transportes públicos. Assim não sofres com o trânsito e poupas bastante em gasolina. Como se fosse assim tão simples. Ainda experimentei durante uma semana. E, além de levar o mesmo tempo em cada deslocação, o desconforto não compensa. Encontrões, viajar de pé, correr do comboio para o metro e vice-versa, tudo somado contribuiu para a irreversibilidade da minha decisão: venha o trânsito! Mas houve um aspecto que pesou sobremaneira no meu juízo, e que, ainda hoje, ao recordá-lo, me auxilia a dieta: os odores alheios: autênticos alucinogéneos gratuitos, à distância de um snifar. Recordo uma ocasião em particular, em que o destino me providenciou a graça (ilusória, descobri-lo-ia mais tarde) de viajar sentado. As estações sucediam-se, a vertigem de entradas e saídas intensificava-se. E o meu olhar fixava-se onde agora repousa – no indefinível que vai entre o desejo e o pensamento. Uma emergência sentida fez-me emergir à tona das minhas sensações. Rapidamente, procurei a génese deste alarme: poluição olfactiva foi a resposta. Não tardei a encontrar o emissor. Viajava no banco bem à minha frente, exibia-me orgulhosamente as suas cáries, num sorriso de bom-dia, a sua volumetria devia contribuir devidamente para as poças, em franca progressão, na sua camisola, sobretudo nas axilas: onde se visualizava com nitidez duas autênticas circunferências húmidas e negras. Ela devia andar perto dos quarenta. Segurava um saco de plástico. Ainda hoje não tenho qualquer curiosidade em relação ao seu conteúdo. O balançar do comboio agudizava-me os sintomas. Não tinha como sair dali. Afinal, latas de sardinha e transportes públicos, em português, são sinónimos. Procurei, à minha volta, parceiros de suplício. Não havia olhares disponíveis. Desde há muito que reina um hermetismo pardacento nos rostos portugueses. Talvez um cansaço da espera por uma incógnita promessa feita algures. Por fim, confrontei-me com a fonte de todos os meus males. Pontificava nos seus pés: um belo par de peúgos, outrora brancos, mas àquela hora já exibiam um orgulhoso castanho (afinal, ainda não eram oito horas!), dentro do respectivo par de socas. A partir desse dia, só consegui, e muito de vez em quando, comer apenas queijo fresco. Entre as divinais peúgas e a saia, ela exibia uns troncos de futebolista, onde proliferava uma amazónia de pêlos que faria as delícias de qualquer pulga com um mínimo de bom gosto. Todavia, ainda me recordo de que, entre o despudor do seu sorriso e a limpeza do seu olhar, a malícia não tinha encontrado alojamento. Saiu antes de mim. Sorriu-me um com licença e dilui-se na hora de ponta. E eu, miseravelmente, nem um vestígio de simpatia. Raras vezes me senti tão imundo.

VII 

Bocejo novamente, já com as amoreiras à vista. Resolvo ouvir música. Mudo de estação. Não sei o que procuro. Como se, de alguma forma, estes nadas de gestos me evadissem deste cárcere diário. Começo a sentir as costas. Marta repete incansavelmente a mesma coisa: Marca uma consulta! Pedi-lhe, por diversas vezes, o auxílio da sua arte. De novo, a consulta e a urgência de uma radiografia, como resposta. Mas, eu continuo relutante em conhecer a cara do meu médico de família. E o mal-estar agudiza-se. Tenho de ver se marco até esta sexta-feira. Nunca compreendi esta desistência gratuita, este laxismo, face às mais banais imposições da nossa vivência quotidiana. Será um traço genealógico da nossa lusitanidade? Este deixar andar? Será do meu carácter? Serei eu, um irreversível acomodado, que não gosta de se aventurar por águas obscuras? Mas eu sempre me queixei da aborrecida previsibilidade do quotidiano. Afinal, onde me situar? Concluo que, afinal, não raciocino, apenas levanto uma torrente infindável de questões. É isto que me sucede, sempre que me proponho a pensar as coisas. Nada concluo, apenas me enredo na teia asfixiante da incerteza. Bocejo, desta vez, para as incertezas, dúvidas, asfixias, questões, para mim próprio. O meu olhar fixou-se no velocímetro. Rolo a 15 km/h. Os números no mostrador terminam no 280.

De súbito, acordo para a histeria da música. Para dissonância, já me basta a realidade exterior. Mudo, uma vez mais, de estação. Silêncio… Até que, lentamente, começo a ver passado. Como se, cada acorde, correspondesse a uma pincelada de uma tela ainda por desvelar. Assisto à magia do alvor da memória, embalado pela melódica abertura deste sonhado Stairway to Heaven (da imortal banda inglesa). Há muito que não ouvia. Compreendo, com tristeza, que a felicidade é sempre retrospectiva. É sempre a estação deixada para trás. Toda a tristeza do mundo desenha-me no rosto a ténue linha de um sorriso compreensivo – aquele que provém do tempo.

Agora, sou um passageiro memória, e viajo à mercê do seu passo. E começo a sentir os odores, a cheirar as cores, e a rever as emoções daqueles dias, enquanto ascendo a azuis de outrora.

 

Viajar


VIII

A única luz que se escoava pelo quarto, provinha dos números vermelhos do rádio/despertador. Luís desligou o alarme. Ia tocar dali a cinco minutos. O mostrador anunciava 05:55. Dormira mal. Fruto, porventura, do entusiasmo pelo que se avizinhava. Rolara na cama ininterruptamente. Sabia que, nestes casos, nada havia a fazer. Apenas esperar pelo sono. Nunca se levantava antes da hora prevista. Não sabia porquê. Sempre gostou de dormir. E a horizontalidade tinha o condão de aligeirar os problemas. Como se ficassem suspensos nalgum cabide, à espera do movimento de algum corpo de saída para o mundo. Durante os trezentos segundos que lhe restavam, ouviu o silêncio da casa, que lhe devolvia eternidade.

Às 6:00 em ponto levantou-se. Dali a 45 minutos, Tiago estaria à porta do seu prédio. Luís tinha organizado a mochila na véspera. Não deixava nada ao acaso. Tomou o pequeno-almoço e arranjou-se. À hora marcada, fechou, atrás de si, a porta com cuidado, para não acordar a mãe e a irmã. Chamou o elevador e desceu. Aguardou por Tiago no patamar do prédio. Estava frio. Arrepiou-se ao pensar no cenário dos próximos dias. Se ali estava frio… Sabia da pontualidade do amigo. Pouco depois, ouvia um motor e, de seguida, as luzes de uma viatura iluminavam os seus passos. Tiago apontou-lhe para a bagageira, e aí Luís depositou a sua mochila, com cuidado, ao lado dos pertences do amigo. 

IX

O carro fora prenda dos pais aquando da sua entrada na faculdade. Tiago estava no segundo ano de engenharia. Vivia, com os pais e um irmão mais novo, num apartamento de três assoalhadas nos arredores de Lisboa. De uma forma menos eufemística, nos subúrbios. Com o 25 de Abril, e a consequente chegada dos retornados, deu-se a grande dinamização desses jardins de cimento coroados de infindáveis marquises. Os pais de Tiago não eram retornados. Provinham do agonizante interior do país, mais propriamente do Alto Alentejo. Vieram para a capital em busca de trabalho e mais oportunidades para os filhos. No fundo, as razões de todos aqueles que se mudam. O pai era carteiro e a mãe cabeleireira. Tiago, necessariamente, partilhava o quarto com o irmão. Apesar de não se darem mal, tinham diferença de três anos, a proximidade quotidiana agudizava as arestas. Tinham os seus momentos de trovoada. Sonhava com um quarto só para si. Mas os rendimentos dos pais não o permitiam. Assim, passou a encarar o carro como o seu oásis pessoal. Além de constituir um factor de afirmação face aos demais. Havia quem, talvez por maldade, dissesse que Sara aceitara o pedido de namoro por ele ter carro. Talvez fosse, de facto, por maldade… Tiago conhecera Sara ainda no liceu, através de um amigo comum. Ele frequentava o 12º ano, ela o 11º. Se lhe perguntassem pelo ideal de beleza feminino, ele, ainda hoje, descreveria Sara. Tiago sempre foi tímido. Demorou uns meses a declarar-se. Houve, também, quem dissesse, talvez por malícia, que se socorreu de uns copos para o efeito. Sara disse-lhe que tinha de pensar. A corte demorou ainda uns meses. Por fim, ela capitulou. O namoro marcou uma nova etapa na vida de Tiago. Por um lado, os amigos mais próximos afastaram-se, vencidos pela sua obsessão, por outro, o seu quotidiano passou a realizar-se em dois lares. Os pais de Sara eram um espelho dos valores tradicionais da sociedade portuguesa. O pai era polícia, a mãe doméstica. Várias foram as vezes em que Tiago se lamentou pela ocupação profissional da mãe da namorada. Certa noite, o pai de Sara, aproveitando uma distracção da filha, chamou Tiago para um canto, pôs-lhe a manápula no pescoço e, entre dentes, sussurrou-lhe ao ouvido: Sempre com muito respeitinho, está bem, o respeitinho sempre acima de tudo. Para continuarmos a ser bons amigos… Tiago jurava, anos depois, que a imagem de um seminário o acompanhou durante umas semanas. Sara era a típica menina do papá. Mantinha uma relação conflituosa com a mãe. Tinha vergonha do analfabetismo materno. Nunca o confessou a ninguém. O que Sara nunca percebeu é que analfabetismo e inteligência são duas coisas distintas. E, quanto à segunda, a mãe tinha para lhe oferecer. E grande parte dos conflitos provinha do adiantamento materno face às intenções caprichosas da menina. Dito de outra forma, a mãe sempre procurou fixar-lhe os pés na terra. Nem sempre é fácil para um jovem trocar a ilusão doce dos sonhos pela aspereza dos seixos da realidade. Para Sara, ainda menos. Escudava-se, para sua afirmação, na imagem de autoridade do uniforme paterno. Era filha única. Talvez houvesse mimos a mais na sua educação. Vivia numa praceta relativamente perto de Tiago, num apartamento também de três assoalhadas. Tiago invejava-lhe o espaço da individualidade do quarto. Os pais de Sara também haviam migrado do interior. Neste caso, do Baixo Alentejo. É compreensível, num país de marinheiros, esta sedução pelos ares marítimos.

X 

Era a primeira vez que Luís acampava. Nunca achou muita graça à privação de certos confortos considerados, por si, como essenciais: água potável e privacidade. Mas respeitava os fãs dos passarinhos, como lhes chamava. Tiago pertencia a este clube. Desde muito novo que era escuteiro. Encontrou aí, em primeiro lugar, uma forma de aligeirar a obrigatoriedade paterna da comunhão. Com o tempo, passou a apreciar a largueza de horizontes, em detrimento da exiguidade das assoalhadas do apartamento familiar. Afinal, proximidade e hostilidade são velhas companheiras. 

Tiago acolheu, como sempre fazia, o amigo de mão estendida. Luís gostava profundamente deste acolhimento, mas jamais se permitiu transparecê-lo. Porquê? Nunca o soube. Ou talvez soubesse. Admitir a nudez das nossas emoções é sempre uma ignomínia. E a espontaneidade afectiva de Tiago intimidava-o. Como se o obrigasse a desvelar-se, por retribuição, um pouco. Luís retribuía sempre o cumprimento com um sorriso. Mas evitava o brilho da amizade no olhar do amigo. Como se não se sentisse digno dele. Como se, mais tarde ou mais cedo, o fosse desiludir. Esta ambivalência de sentimentos diluía-se após as primeiras frases trocadas, e assim que a familiaridade era reposta, não passava de uma estranha névoa deixada algures pelo caminho.

Luís travara conhecimento com Tiago nos primeiros anos de Liceu. Foi aquilo a que se pode chamar de uma amizade natural. À primeira troca de palavras, estabeleceu-se aquela corrente que sela um entendimento profundo entre os homens de bem. A impetuosidade de Luís dava-se bem com a ponderação calculada de Tiago. Não foi por acaso que, na era pós Sara, Luís fora dos poucos sobreviventes. Embora disfarçasse mal a sua antipatia pela escolha do amigo. Lidava mal com máscaras, fruto, porventura, da sua própria biografia. Aprendeu, talvez demasiado cedo, que máscaras e circunstâncias têm a idade do homem. Entrou para Direito, talvez para agradar à mãe, embora não o admitisse para si mesmo. Nesta altura da sua vida, e como quase sempre acontece, é o vento a ditar os passos. 

Mas deve-se a Luís o facto de, nesta segunda-feira, de férias de Páscoa, aqui estarem. Fora ele o primeiro a falar, há cerca de um ano atrás, daquele estranho lugar. E das inquietantes histórias que se lhe associavam. Mas Luís tinha outras motivações, mais visíveis e menos insólitas: Bárbara.

Tiago estava eufórico. Era palpável. Há muito que aguardava por esta oportunidade: ele e Sara longe do radar paternal. Talvez, desse modo, conseguisse vencer a sua última réstia de timidez. E, assim, permitir-se a entrar na ambicionada maioridade dos afectos. 

Mas, simultaneamente, esta sua ambição estava eivada de inquietude. E, em alguma parte de si, uma voz clamava na tempestade do desejo que Sara há muito atingira essa meta. Tiago sufocava essa voz. Remetia-a para um silêncio pardacento. Mas de novo era atravessado pelo seu clamor. E, nessas alturas, perdia-se em busca de um coração caído nos trilhos da terra. Um coração que sabia ser o seu.

XI

Luís, por seu turno, vinha apenas para caminhar ao lado de Bárbara. Nada mais. Só existia esse objectivo na sua mente. Nunca fora dado a jogos, nem a tortuosos esquemas. Não que fosse um inocente. Longe disso. Mas, naquele momento, a sua única ambição era rever Bárbara. Falar-lhe e sobretudo ouvi-la. Dito de outra forma: Luís estava apaixonado. Embora não o admitisse. Sempre procurou pairar acima dessas manifestações sentimentais. Piegas, como chegou a apelidá-las. Nunca esqueceu a primeira vez que viu o seu amigo chorar. Chorar compulsivamente. Tinha ido a casa de Tiago. Dessa vez, não fora necessário tocar à campainha. Encontrara o amigo sentado no antepenúltimo degrau da escada de entrada do prédio. O rosto escondido pela mão direita. A esquerda caída numa viuvez soluçante. Foi através desses soluços que Luís leu a situação. Primeiro, veio-lhe a ira (sabia que Sara não era a certa para o amigo). Mas a compaixão acabou por imperar, e sentiu a frieza dos degraus ao partilhar as agruras alheias. Entre a solicitude da amizade e o embaraço pelo despudor do amigo, Luís lá encontrou uma forma de lhe amenizar a dor. Mas, no seu íntimo, havia um desdém pela fraqueza de Tiago. Como se não o sentisse digno da sua amizade. Como se… Por fim, Luís enfrentava o eterno desafio da paciência e refugiava-se no porvir, enquanto um lamento recorrente ecoava por um vão de escadas.

Luís sabia que Tiago não era correspondido. Mas nunca o verbalizou. Reconheceu, neste particular, a sua cobardia. No fundo, que provas tinha desta sua convicção? Apenas a leitura de quem está de fora e analisa o amargo correr do mundo. Nunca vira qualquer desvio em Sara. A única questão prendia-se com o seu olhar perante Tiago: em vez de paixão, derramava indulgência. E estas são relações com prazo de validade bem curto.

Havia outros aspectos que contribuíam sobremaneira para esta conclusão. A forma de Sara se posicionar face ao mundo. Numa atitude de permanente desafio. Escudada pelo mimo paterno. Ao contrário de Sara, Tiago sorria para a realidade, e, não raras vezes, preferia baixar os olhos, de forma a evitar a indigestão da vida. E quanto a cegueira, estamos elucidados…

XII

Nessa mesma tarde de pranto e soluços, Luís começou a vislumbrar os seus limites. Olhou o futuro e afastou de si, naquele preciso momento, o cálice salgado das lágrimas passionais. Já as vira antes e em abundância. Num rosto ainda mais próximo: o de sua mãe. Noite após noite, o menino que o tempo bebera, adormecia embalado pela melodia nocturna compassada pelo soluço maternal. Cada soluço escutado era um passo de afastamento do pai. Uma distância, hoje, irrecuperável.

Enquanto, de forma desajeitada, procurou aquietar o amigo, olhava a rua. Como se daí proviesse uma qualquer entidade salvífica. Sabia que não. Mas a fé do seu olhar, atraiçoava a razão das suas convicções. 

Sucederam-se outras tardes de choro. E como o cansaço tem origem no aborrecimento, Luís procurou despertar o amigo. Num sentido de esclarecimento. Como se… Enfim, como se lhe fosse possível, porventura, compreender que houvesse mais mulheres no mundo. Como se, alguma vez, o seu olhar pousasse noutra que não ela. Como se o seu rosto esboçasse alegria sem reconhecer Sara. Por fim, Luís compreendeu a distância entre amor e obsessão. Ou estariam relacionados? Seria um estádio do amor? Enquanto aconselhava Tiago, deparava-se com uma aporia interrogativa, que lhe iluminou as lonjuras da sua ignorância.

Estas crises obedeciam a um guião há muito estabelecido. Tudo partia do virar de costas de Sara e de uma ameaça velada de rompimento. E Tiago ficava siderado, como se fosse um Job sem a âncora divina. No meio de tudo isto, não se pode dizer que Sara fosse pérfida ou algo de semelhante. Simplesmente, era uma garotelha imatura que se deliciava com um novo brinquedo: o poder. Chegava a fazer apostas com as amigas, acerca do tempo que Tiago demoraria a tocar à sua campainha. Neste particular, não há homem nenhum que se possa rir de Tiago. Porque todo o homem atravessa a fase do circo – e aí desempenha os mais variados papéis: trapezista, palhaço, malabarista… Afinal, há um momento na vida em que o coração dita os passos. E, neste particular, o coração de Tiago era tirânico. Por conseguinte, as economias de Sara andavam de boas cores.

Luís compreendera o malogro dos seus esforços. Como resposta aos seus conselhos, obtinha um contínuo anuir de cabeça. Como se Tiago, efectivamente, estivesse a assimilar a mensagem. Nada mais errado! O anuir de Tiago, permitia-lhe refugiar-se no insondável de si, surdo para o mundo, e olhar em redor na busca do caminho mais ligeiro para Sara.

Passadas umas horas, Luís encontrava-os, de mão dada, no café do costume, a lanchar. Como se tudo fosse harmonia. Nem um vislumbre da borrasca sucedida. Apenas risos e dedos entrelaçados. Não se podia falar de cumplicidade. Porque ela parecia representar um papel. Quanto a ele, dificilmente um cego representa, quando muito deixa-se conduzir. E, no café, já não havia vestígios do palhaço pobre das escadas. Antes parecia um atlético trapezista com os dedos firmados no objecto salvífico. Mas isto era o quadro que Luís via.

Por esta altura, os olhos de Luís caíram nas mãos, que lhe devolveram vazio. E uma imagem impôs-se no seu pensamento: uma imagem de luz: a imagem de um rosto… E quando um rosto domina o pensamento de um homem, a inquietude torna-se a sua senhora.

 

XIII

Luís, como sempre acontece no rés-do-chão do amor, não se recordava da primeira vez que vira Bárbara. Se lhe pedissem para a descrever, não o saberia. Era capaz, como é natural, de traçar linhas muito genéricas, mas de forma automática. Porque, a surgir uma questão assim, nesse mesmo instante a sua mente povoar-se-ia daqueles instantes indeléveis, que fazem um coração saltar do peito ao se pronunciar um nome. Sim, frequentaram a mesma escola. Sim, ter-se-ão cruzado centenas de vezes. Sim, tinham conhecidos em comum. Mas em que momento a sua ausência lhe amargou o rosto? E sentiu, pela primeira vez, o silêncio dos acordes da sua voz? E terá melodiado o seu nome?

Sem fazer um grande esforço, conseguia elencar quatro ou cinco situações que, a seus olhos, fizeram Bárbara ganhar cor ao mesmo tempo que o mundo empalidecia. E quando tal acontece, entramos numa via de sentido único. Como se renascêssemos. Sim, é um pouco isso. Deixamos definitivamente uma pele para incorporar uma outra. Afinal, abrimos portas em nós que desconhecíamos por completo. E algo nos sussurra em contínuo ao ouvido: doravante, tudo muda. E, sem o sabermos, já somos um outro. Um outro incompleto. Mais fraco. Frágil. Inconstante. Que carece de uma outra face para se harmonizar. Para sorrir. Para ter um Sentido. E, a partir daqui, rebobina-se a história mais repetida do mundo, para de novo a exibir. Mas há uma originalidade nesta saga face às demais: apesar de o guião ser conhecido, os actores entregam-se aos papéis sempre com uma abnegação virginal. Como se nunca tais personagens tivessem sido representadas. Há algo de estranho em tudo isto. Mas, para quem está em palco, cada instante é a Eternidade.

E Luís está em palco. Nesse instante, em cena dentro do carro, ao lado do amigo, numa madrugada de Abril.

L. – Quem vais buscar primeiro? (Acabada a questão, arrependeu-se. Isso só acontece, quando conhecemos a resposta. E esta Luís conhecia há algum tempo. Logo, cresceu em si, um certo desprezo pelo amigo. Não tanto por ele, mas sim pela atitude – imbuída de uma total subserviência. Mas, simultaneamente, a par do desprezo emergia uma certa compreensão. Afinal, dentro de si, prenunciava-se um alvorecer, similar àquele que alaranjava naquele momento os céus para os lados de leste, e assim a luz da compreensão amolecia a rigidez das suas convicções.) 

T. – A Sara, se não te importas. É que ela já deve estar à nossa espera. E, estou mesmo a ver, acompanhada dos pais. Nem sei como a deixaram vir!

L. – (De novo o desprezo a manifestar-se: e Bárbara, não estaria também acordada e à espera?) Sim, tudo bem. Mas não vais entrar e pôr-te na conversa?!

T. – A esta hora? Estás a gozar! E sabes como eu gosto do pai dela…

L. – Mas olha que ele gosta de ti.

T. – Porquê?

L. – Porque será? Ouve, não podes continuar a ser um tipo de vistas curtas. Afinal, já estás na faculdade. E depois vem o mercado de… (Aqui optou por fazer uma inflexão no discurso: a hora e o contexto a isso obrigavam. Mas sobretudo o bom-senso: nunca se ouviu falar de discursos paternalistas ao raiar do dia.) Esquece… Mas, pensa bem, achas que, se não gostasse de ti, deixava a querida filha ir acampar contigo? E, sinceramente, já te vê como um filho. Será que não te apercebes disso?! Além do mais, estás na faculdade. Que mais podiam querer para a filha? És um tipo simpático, sem vícios, e, ainda por cima, com um passado de escuteiro. Quem não te queria como genro?

T. – Bom, realmente, as minhas vistas são bem curtas comparadas com as tuas. Fazes cada filme! Tudo, para ti, exige logo uma análise psicossocial. Devias escrever enredos. Sinceramente… Ouve, grande filme!

L. – Antes não eras tão irónico com as minhas análises. (Esta frase saiu-lhe fria, como se adviesse da própria manhã.)

T. – (Tiago sentiu o arrefecimento. Não baixou o rosto devido à condução. Nunca se dera bem com o embaraço. Para ele, a eternidade residia aí: nesses momentos pétreos que se limitam a espelhar, de forma inclemente, a nossa infinita infelicidade. Optou pelo silêncio. Sabia que Luís acabaria por falar. Afinal, ele é que provinha de um lar de sal e soluços.)


XIV


Luís escudou-se num silêncio hostil. Teria as suas razões. Acima de tudo, tinha pressa em chegar ao local. Os seus pais haviam-se divorciado uns anos antes. Engrossaram a estatística pós 25 de Abril. É sempre difícil lidar com a novidade. E assim foi com os portugueses e a liberdade reconquistada. Não souberam o que fazer com ela. Como se fosse um brinquedo oferecido de surpresa a uma criança, sem manual de instruções. Muitos lares ruíram. Luís lidou mal com a situação. O pai era oficial do exército e a mãe professora primária. Tinha uma irmã dois anos mais velha. Ambos, após o divórcio, ficaram com a mãe. A alternativa pai também nunca se colocou. Tinha um génio difícil, dizia-se. Somara comissões atrás de comissões, durante a guerra colonial. Estivera no interior angolano. Havia quem falasse em diamantes. Ao certo, nada se sabia. Apenas que viviam muito desafogadamente, num apartamento de cinco assoalhadas, junto a uma das praias da linha do Estoril. O pai deixou-lhes a casa, que tinha sido paga a pronto, e foi viver para Cascais, para um apartamento novo, com uma jovem de rosto familiar. Mais tarde reconheceram-na: era uma das empregadas da messe dos oficiais, onde com frequência almoçavam. Passaram a visitar o pai quinzenalmente, num misto de desconforto e de obrigação. A mãe leccionava perto de casa. Encarou o divórcio como uma derrota. Estava definitivamente arredada do jogo das aparências. Mas aprendeu, a muito custo, que guerra e juventude são adversários a evitar. Ainda equacionou refazer a vida. Mas o espelho matinal furtava-lhe as esperanças. Por fim, entregou-se ao destino. Até ao presente momento, não havia novidades. Mas quem sobrevive a um casamento com um militar, a uma guerra, à educação dos filhos sozinha, supera com facilidade o reflexo de qualquer espelho.

 

XV

 

O súbito emudecimento do amigo constrangeu Tiago. Afinal, fora ele o causador desse embaraçado silêncio. No fundo, todo o silêncio é embaraçoso. Como se não fôssemos criaturas destinadas a essa total imobilidade de som. A uma suspensão de diálogo, de música, de mero ruído… O fito da música não é o silêncio? Não é a sua mais elementar aspiração? Sim, é. Então, qual o porquê de, nesta gélida manhã, estes dois amigos contemplarem o seu próprio vazio, enquanto se remexem nos bancos, após um deles cortar o diálogo com uma observação revestida da própria matinalidade? Nenhum deles, neste momento, procurava resposta para esta questão. Estavam muito longe disso. Tiago esperava que Luís corrigisse o seu erro. Não pela frase, mas sim pela frieza do tom. Não foram as palavras que o magoaram, mas sim a forma de as proferir. É curioso como uma palavra – reconhecida, enquanto tal, por todos – ganha uma acepção distinta pela forma de se pronunciar. Como se a palavra brotasse da essência do próprio sujeito. Como se lhe pertencesse desde sempre. Dito de outra forma: como se fosse sua criação naquele momento. É estranho, tudo isto. Mas, afinal há ruído! Não estivesse a viatura em andamento… Porém, eles nada ouvem, a não ser um lancinante grito interior, a exigir o ar da alma: a compreensão alheia.

Este não é, definitivamente, um mundo de silêncio. Estamos submersos de gritos, vozes, apelos, sinfonias, buzinas, uivos, ladrares, choros, risos, sussurros, confissões… Basta fecharmos os olhos, numa tentativa surda de repouso, para compreender a utopia jamais tangível do silêncio…

Por fim, Luís lá encontrou um caminho de palavras (através de uma questão trivial) e restaurou a normalidade, ao mesmo tempo que recuperavam o conceito de tempo. Estavam quase a entrar na sonolenta praceta de Sara. Tiago estava agradecido pela reposição do diálogo. Como se lhe abrissem uma janela, e mesmo que não assomasse lá, bastava-lhe o facto de a saber aberta.

Sara viu-os chegar. Nem acenou nem sorriu à aproximação da viatura. Limitou-se a recolher. Tiago, nesse momento, cingia-se a um sorriso aparvalhado. Embora Luís detectasse o aparecimento, ainda que de forma muito ténue, de um novo traço no seu rosto: o de uma desencantada vergonha. Luís alegrou-se. Afinal, havia esperança para o amigo. Quando ainda existe uma réstia de pudor, a palavra esperança ganha sentido. Neste entretanto, Tiago saíra do carro, cumprimentara os pais da namorada, sentira a sua mão desaparecer na gigantesca concha do pai dela, fora buscar as malas ao quarto, ouvira, sempre numa solicitude primária, as recomendações dos potenciais sogros, e, por fim, precedido de Sara, saíra do prédio. Luís, ao vê-los emergir da soturna entrada, apenas se pôde recordar das comédias italianas dessa altura, em que paquetes com malas, senhoras presunçosas, e hotéis, eram uma constante.

O desprezo de Sara crescia proporcionalmente ao encurtar da distância para o carro. Luís nem saiu para a cumprimentar. Aqui jogou-se o primeiro confronto: quem iria viajar no banco da frente? É curioso como, de uma forma inata, sabemos escolher os adversários. Sobretudo para confrontações directas. Como se houvesse, em nós, um sentido para além dos cinco, que nos alertasse se este ou aquele é apetecível ou evitável. No fundo, basta-nos pesar o olhar, ou o que emana dessa presença, para radiografarmos esse alguém. De seguida, como se de uma ciência exacta se tratasse, sabemos o grau de dificuldade que advém de um embate com determinada pessoa. Naturalmente que há surpresas. E são bem-vindas. Mas só acontecem àqueles que têm os sentidos primários embrutecidos por tanto investirem na aparência – pois é disso que se trata – de civilizados. Os outros, que mantêm os elos da ancestralidade, não se deixam surpreender por confrontos desnecessários. Basta-lhes as batalhas que imperativamente têm de travar. O demais gasta-se na contemplação de um céu estrelado que lhes devolve o olhar dos seus antepassados. 

Sara não padecia deste mal. Apesar de ser uma menina da cidade, sabia, há muito, que objectivos e sobrevivência são vizinhos. Daí que, para si, no jogo da vida, todas as ferramentas fossem poucas. Desse modo, e apesar do seu asco visceral, sabia que Luís era um daqueles a evitar. Mal o via, desenhava-se-lhe no rosto um sorriso de distanciamento, que funcionava como um muro face ao intruso. Curioso como, na sua expressão, sorriso e distância fossem peças íntimas. Luís, por seu turno, disfarçava mal as emoções. Quase tudo estava à vista. Quanto a emoções, Luís era como o esqueleto de um edifício em obras. Assim, nunca careceu de máscaras para cada eventualidade. Ainda menos de sorrisos: de proximidade ou de distância. Entregava-se ao momento, e à leitura que o seu olhar fazia a cada instante da realidade. E, à vista de Sara, o azedume que pintou o seu rosto apenas se esbateu pela sua educação, que o impeliu a pronunciar um audível Bom dia, tudo bem?

Tiago olhava-os enquanto organizava a bagageira. Embora, no fundo, organizasse mais as suas emoções quanto à tristeza de não conseguir conciliar, no mesmo espaço e de forma saudável, a namorada e o melhor amigo. Sentia-se um estrangeiro perante aquele quadro. Como se aquele azedume fosse uma questão íntima entre eles. Quiçá algo mal resolvido no passado. Mal estes pensamentos afluíam, logo tratava de fincar os pés na terra, inspirar fundo, para logo expirar, e aumentar a velocidade dos movimentos, como se, por correspondência, a Terra acelerasse o curso das coisas.


XVI

 

Puseram-se a caminho da casa de Bárbara, que ficava relativamente próxima. Tiago e Sara falavam, enquanto Luís pensava no que dizer. Não via Bárbara há umas semanas. Foram Tiago e Sara a tratar dos pormenores finais deste passeio. Enquanto pensava em Bárbara, era acometido de uma estranha vertigem. Só por uma vez, padecera de tal sintomatologia. E saíra magoado. Desde aí, soube anestesiar-se, passando a somar apenas alegrias breves. Até que o mundo, de novo, se sintetizou num rosto. Num olhar. Numa voz. Numa forma de andar. De se movimentar. De dizer as coisas. De expor as ideias. De sorrir. E quando um homem precisa de tudo isto, como de oxigénio, está perdido. Luís sabia-o. Não estava feliz. Considerava esse sentimento como uma derrota. Uma derrota muito particular. Como se falhasse um objectivo nuclear de vida. Neste momento, de rosto encostado à janela, olhava para as suas ideias, que desfilavam diante de si, sob a nitidez da manhã. Sabia-se impotente de parar tal desfile. Deixara de ser senhor dos seus pensamentos. Eu amo-a, era esta conclusão a que não queria aportar. Obnubilava esta certeza. Talvez por orgulho… Talvez por… Como alguém que acaba de bater no veículo da frente, e não quer crer no sucedido. Sim, é um pouco isso. Assim continua ele, a sentir o frio do vidro madrugador, surdo para o circundante. Mas uma questão se impõe. Porquê tanta relutância face ao amor? Desde já, não podemos descurar a sua biografia. Afinal, foi criado com um náufrago dos sentimentos. Mas há mais factores. Um desgosto em idade muito precoce, por exemplo. A namoradinha que mudou de terra. Ainda se escreveram uns meses. Até que o tempo e a distância acabaram por esbater as poucas memórias contidas num jovem coração. E as últimas cartas, escritas quase como um imperativo ético, e cada vez com menos linhas, eram já dirigidas a uma quase estranha, que ele não tinha bem a certeza de ter conhecido. A própria relação do amigo também não ajudava. Por motivos óbvios. Há, no entanto, algo de muito subterrâneo, e que concorre sobremaneira para o seu cepticismo. O amor coloca-nos na dependência do outro. Se eu amo, logo careço do objecto desse amor. Numa outra perspectiva: abro, em mim, portas que apenas me vão fragilizar enquanto sujeito. Como se ficasse numa posição subalterna. Aguardasse o veredicto do outro como uma proclamação dos céus: serei ou não correspondido? E a seguir? De que forma se desenvolve o sentimento? Como a dependência de um vício? Poder-se-á comparar a nobreza do sentimento do amor, ao viciante opróbrio de um toxicodependente? Nesse momento, Luís concluía que sim. De súbito, uma lomba na estrada fez com que a sua testa embatesse no vidro. Não é, de todo, aconselhável viajar, nas estradas portuguesas, com a cabeça apoiada num vidro. Porque, em Portugal, as estradas são único e sério concorrente aos buracos financeiros. É curioso como um país é pródigo nesta analogia entre alcatrão e finanças. Mas este embate fez com que Luís despertasse da sua letargia. A realidade apresentou-se-lhe fria e sólida testa dentro. Primeiro, estremeceu. Sentiu a pancada como uma negação do real face às suas inferências. Como se, por vias enviesadas do destino, a vida lhe dissesse que estava errado. Não, o amor… Só que as suas convicções têm subcave. E, neste momento, lembra-se de uma conversa com Tiago, tida no café de sempre, em que se começou a aperceber do abismo existente entre ambos, e, depois desse dia, perdeu parte de um espelho, mas, em contrapartida, assimilou, por inteiro, o conceito de alteridade, e toda a estranheza que a vida lhe viria a oferecer, desde aí, seria recebida com uma sorridente compreensão.

T. – A Sara está quase a chegar.

L. – Não te preocupes, mal ela dê sinal de vida, eu piro-me.

T. – Nunca percebi essa tua atitude. Parece, não sei… Parece que não suportas a felicidade dos outros.

L. – Ouve, não me venhas com tretas. Desde quando alguém pode chamar felicidade a uma relação como a tua. Mas estás a falar com algum estranho ou quê?

T. – Não precisas de levantar a voz. E onde é que já viste relações perfeitas? Por acaso tens alguma? Ou já a viveste?

L. – Não vi e sei que não vou ver. Simplesmente, por que não acredito nisso. Agora, de uma coisa estou certo: a tua relaçãozinha está muito longe da perfeição.

T. – Tu, às vezes, és deprimente.

L. – Ah, eu é que sou deprimente! Sinceramente… Pensa, antes de falares! Pareces um cãozinho atrás dela. Toda a gente vê! Já reparaste quantos amigos perdeste? Já ninguém te convida para nada. E é melhor pararmos por aqui…

T. – Não, continua. Se começaste, acaba. O que mais queres acrescentar? Vá, força… Vocês têm é inveja de nós!

L. – Ouve, ao menos não percas a vergonha. E não sejas ridículo! O único sentimento que tu provocas é pena! Toda a gente vê como ela te controla. És uma autêntica marioneta nas mãos dela. Além, claro, do dinheiro em prendas, etc… Já te avisei para mudarmos de assunto.

T. – Porquê? Pensas que eu sou burro ou quê? Sei muito bem, o que esse bando de frustrados diz nas minhas costas. Já agora, acrescenta o carro. Vá, força! Pensas que eu sou assim tão tapado?

L. – Acho que estamos a ir demasiado longe. Vamos mudar de assunto.

T. – Porquê? Estou a gostar bastante. Qual é o vosso problema? É eu preferir estar com a Sara do que com vocês? É o facto de nós já termos planos para o futuro?

L. – O quê? Essa é nova! Estás a falar a sério ou estás no gozo? Pensas mesmo em… Com ela? (Neste ponto, recorda-se, com nitidez, não ter conseguido proferir o nome de Sara. Era demasiado, para si. Quando há um sentimento como a amizade, é sempre doloroso assistirmos impotentes aos erros alheios. Mas não é correcto falarmos de erros. Nem de futuro. Porque o amor, por essência, é presente. Luís estava aquém deste sentir. Tiago estava demasiado submerso para o compreender. Um casal apaixonado só fala de futuro, para tentar aprisionar o fugidio presente de cada instante. Afinal, o futuro é sempre uma projecção das nossas aspirações. Ou dos nossos temores. Só assim a sua existência tem sentido. Mas, Luís e Tiago estavam, ainda, nas faldas destas verdades. A vida ainda só lhes soprara, embora por vezes desagradáveis, brisas no rosto. Neste momento, eles não tinham qualquer percepção das tempestades vindouras. Afinal, nesta fase da vida, horizonte e imediato são sinónimos. Só começamos a alargar as vistas após atravessar a primeira intempérie.)

T. – Claro que sim. É das poucas certezas que tenho. Será que não podes respeitar?

L. – Não se trata de respeito. Para já, deixaste-me completamente atónito. Ouve… Nem sei o que dizer… Bom, o que vale é que ainda têm muito para crescer. (Outro erro: a doce perspectiva da longevidade. Olhar o devir como um difuso e longínquo ponto no horizonte. Como se padecesse de uma total imobilidade. Quem não compreende o saber do rio do tempo, desde muito cedo, arrisca-se a encalhar em escolhos anacrónicos, onde o azedume é sublinhado nos rostos e o olhar ganha o brilho esbatido da desesperança.)

T. – Ouve Luís, essa tua mania de te julgares mais crescidinho que os outros, já não irrita ninguém. E sabes porquê? Porque já é motivo de piada. Nunca te esqueças de uma coisa: todos temos costas.

L. – (Aqui chegados, Luís apercebeu-se de que as palavras lhe fugiam. Refugiou-se numa onomatopeia…)

T. – Sempre tão crítico, a olhar tudo e todos de cima. Mas quem tu julgas que és? Só por seres filho de pais divorciados, pensas que percebes mais da vida que os outros? É por isso que a Sara não te suporta. Essa tua irritante mania de, antes de falares com toda a gente, procurares um degrau. (Infelizmente, Tiago enganava-se. Pelo menos em parte. E logo na que mais lhe tocava. A cegueira é sempre particular. A desempatia entre Luís e Sara tem outras funduras. Que remonta aos idos do próprio homem. Por outras palavras: há pessoas a quem basta um fugidio trocar de olhares, para logo os acordes da desarmonia ecoarem em si, e as palavras secarem na boca. Apenas isso: um vislumbre do outro. Nem o nome se conhece. E logo a repulsa está na ponte das emoções. Sara, como é natural, não era o único receptor destes sentimentos. Neste campo, a explicação ainda não encontrou porta para entrar. E pelo natural evoluir das coisas, não é crível que algum dia o consiga. Tiago, por seu turno, valia-se daquelas explicações que, tal como os adesivos, são utilidades momentâneas, mas apenas relevam a existência de uma ferida por sarar. Luís intuía que este era um sentir com génese distante e anónima. E quando os sentimentos falam uma outra linguagem, o único eco audível denomina-se silêncio.)

L. – (Tiago atingira-o. Ambos o sabiam. Se fosse outro, Luís embrenhar-se-ia na senda da violência. Há quem diga que é o caminho mais fácil. Depende da perspectiva. Por vezes, este é definitivamente o mais difícil, e o único que nos permite sair de palco a coberto do manto da dignidade. Mas a amizade refreou-lhe o sangue. Em sinceridade, não foi tanto a amizade, mas sim o respeito. De alguma forma, Luís nutria um respeito muito particular por Tiago. Ele próprio desconhecia o porquê. É algo que brota em nós, quase que de forma espontânea, e, na maior parte das vezes, o receptor pouco fez para merecer tal desígnio.) Eu nunca precisei de degraus para falar fosse com quem fosse. E sabes porquê? Porque, antes de mais, dou-me ao respeito. E se, por acaso, na tua linguagem respeito chama-se degrau, então estamos conversados. Bom, talvez seja pela tua recorrente convivência com as escadas do teu prédio… Ah, e quanto a divórcios, aprende, porque talvez ainda vás a tempo, que não deves falar daquilo que desconheces. (É velha a similitude entre palavras e punhos. Uma aprendizagem da vida. Luís, pelo que se vê, já tinha umas boas luzes. Nesse momento, concluiu que só lhe restava virar costas ao amigo. E foi o que fez. Tiago nada balbuciou… A resposta de Luís fora devastadora. Teve que se sentar. Afinal, nunca se fez uma boa análise de pé. Sentiu-se arrasado. Também havia remorsos à mistura. Luís tinha razão. Ele sabia alguma coisa de divórcios? Porque enveredara por ali? Que sabia ele de um lar em que a omnipresença de uma ausência é uma constante? Nada. Porém, Luís tudo sabia. Tinha um conhecimento profundo e vastíssimo da matéria – estava-lhe gravado na carne. Ainda hoje, recorda que, quando a mãe o abraçava, antes de se deitar, o seu olhar buscava a porta, numa desamparada esperança de que o pai daí emergisse, e, desse modo, os enleasse a ambos, porque, em algum lugar da sua meninice, algo lhe gritava que, aquele abraço maternal, era um efémero abraçar por dois. E, noite após noite, o seu quarto povoava-se de desalento e os seus sonhos despiam-se de alegria. Como se aquele lar fosse uma obra inacabada. Mas a pior altura sempre foi à saída da escola. Não pelo facto de os outros terem o pai e a mãe à sua espera. Não era isso que mais o feria. Nem quando ambos se ajoelhavam para receber, como tantas vezes acontecia, num abraço de família, o colega que aí aportava. O que, de facto, lhe envenenou o coração, foi a contemplação repetida do olhar misericordioso dos colegas e familiares, ao entrar nos carros, porque o dele sempre fora conduzido apenas pela mãe…)

 

XVII

Bárbara estava à porta do prédio. Não, não estava bem à porta do prédio. Deambulava, num compasso pensante, como se não estivesse ali por inteiro. Parecia estar além do cenário. Era uma daquelas pessoas que caminharia sempre da mesma forma, independentes, alheadas, do circundante. Trazia a mochila apenas por uma alça. Não levantou logo os olhos para o carro. Luís sorvia cada gesto. Como se fruísse de um espectáculo. E há espectáculo maior que a contemplação da mulher amada? A resposta é óbvia. Há muito que se endireitara no assento. Temia que a tempestade interior ecoasse. Odiava a possibilidade de Sara se aperceber do seu estado. Sim, parte de si já admitia. É espantosa a nossa complexidade. A quantidade de divisórias, arrumos, despensas, que possuímos. Neste preciso momento, Luís era só olhar. Tudo aí se concentrava. Bárbara era relativamente alta e esguia. Envolvia-a um recato muito particular. Como se fosse imbuída por uma áurea de inacessibilidade (este era um dos seus traços que mais o apaixonava). Tinha o cabelo comprido, a atirar para o castanho claro, que a maior parte das vezes usava solto (Luís preferia vê-la assim). Era daquelas pessoas que, apesar de se notar que acompanham as correntes da moda, têm a capacidade de criar um estilo muito próprio. Desse modo, salvaguardam a sua originalidade sem descurar os imperativos estilísticos. Apesar do recato transparecido, Bárbara tinha uma particularidade rara: a de emanar o precioso e raro brilho da inteligência. Bastava, para o efeito, sentir, por uns instantes, a singular intensidade do seu olhar. Não era um olhar de desafio, nem de compaixão… Não, nada disso. Era uma outra coisa. Luís sabia do que se tratava, mas as palavras fugiam-lhe. Não, não lhe fugiam, porque ele nem sequer as encontrara. Bárbara, no fundo, não nos olhava. Bárbara lia-nos! E como ele carecia dessa leitura. De alguém que abraçasse a sua essência por inteiro, e, talvez nesse momento, o seu olhar deixasse de procurar memórias latejantes numa porta entreaberta…

Temos, neste momento, três jovens dentro de um carro, numa fria manhã de Primavera. E há uma jovem, com uma mochila, de andar pensante, que os aguarda. O jovem que guia, não obstante estas funções, vai com os olhos centrados no retrovisor, a contemplar a rapariga sentada no banco de trás. O amigo que viaja a seu lado, só olha em frente, para a rapariga da mochila, que destila pensar a cada passada, e que os aguarda no passeio. Eles olham em direcções opostas, mas para destinos idênticos. 

Tiago parou o carro. Seguiu-se o ritual do depositar da mochila e dos cumprimentos. Luís não saiu. Foi Tiago quem a acolheu, na sua solicitude característica. Sara também permaneceu sentada, mas por motivos distintos de Luís, e bem mais orgânicos: ainda estava ensonada. Bárbara entrou com um sonoro Bom dia, que se revestia, simultaneamente, tanto de genuína simpatia como de formalismo. Deixava no ar a impressão de que, se houvesse outras pessoas dentro do carro, o seu cumprimento seria aquele. Isto irritou Luís, que lhe retribuiu com um Bom dia seco. Há que salientar aqui um pormenor: a irritação dele não se prende tanto com o cumprimento. Mas sim com o efeito que aquela voz provocou em si. Aquele prenúncio de distância, imbuído no singelo Bom dia, atomizava-o. E, ao mesmo tempo, seduzia-o. Era a primeira vez, na sua vida, que conhecera alguém com a capacidade de se colocar, por inteiro, na entoação de um cumprimento. Ele sabia que Tiago e Sara estavam aquém destas inferências. De alguma forma, porventura inexplicável e muito particular, achava-se o destinatário daquela entoação. Como se ela aí procurasse desvelar-se. Neste preciso ponto, Luís respirou fundo. E pensou como é curioso sempre ter ouvido falar apenas em fantasias de mulheres. A sua imaginação já o havia naufragado em ilhas nunca antes sonhadas. Era pródigo nestas navegações. Receava, naquele preciso momento, deixar-se arrastar por essas correntes. Atentou na conversa à sua volta, que se centrava nos aspectos práticos da viagem. Olhou para Tiago com um sorriso. Estava-lhe reconhecido, por ele ter saído prontamente do carro para acolher Bárbara. Isso permitira-lhe salvaguardar a sua identidade (somos tão complexos!). Ainda hoje, desconhece se o gesto do amigo foi intencional. Mas nunca ousou questioná-lo. Embora, lá no fundo, algo lhe murmurasse que sim. Porque só um amigo tem o dom de se nos antecipar face ao embaraço da vida. E, desse modo, remover o escolho anunciado. Recorda, neste particular, um episódio. Tinham ido ambos, com um grupo, a um bar. Como a fanfarronice é uma inevitável companheira dos passos do homem, a dada altura todos tinham um copo, com a bebida da maioridade, diante de si. Só restava saber quem seria o mais rápido a acolher em si o néctar do amadurecimento. A rapidez de Tiago destacou-se. Contudo, ao aperceber-se de que, a seu lado, o copo do amigo estava intacto, e este permanecia com as mãos em cima do balcão, numa evidência de derrota, por lhe ser impossível ingerir uma bebida que o seu olfacto recusava, num passe de prestidigitador trocou os copos, e descoloriu o de Luís antes que algum juízo se formasse. Nunca, entre eles, se falou deste episódio. Talvez por pudor. Luís limitou-se a levantar uma das mãos do balcão e a apertar o ombro do amigo. Apenas isso. Nada mais.


XVIII 

A presença de Bárbara harmonizou o ambiente. Talvez por restaurar o equilíbrio entre géneros. O diálogo passou a fluir com naturalidade. Rumaram à turística ou laboriosa, depende do destino, estrada que ladeia o mar, e que, no fim, abraça a serra. Viam-se, ainda, poucos carros. Talvez devido à hora ou por ser sábado. O dia crescia nas suas costas. O horizonte deles ainda se pintava de azul-escuro, pontuado por estrelas irreverentes. Eles repararam, do seu lado esquerdo, na abundância de esguias sombras, que desafiavam, em simultâneo, o abismo e as águas, num equilíbrio precário, como se não pertencessem a nenhum dos mundos, ou talvez pertencessem a ambos, porque das suas mãos saía o elo da abnegação.

Luís também se debruçava, neste momento, sobre um abismo: perscrutava as diferenças entre Bárbara e Sara. E regozijava-se! Desconhecia, ainda, o carácter particular da beleza. Embora seja uma questão sempre discutível. Mas sejamos honestos. Ele detinha uma argúcia muito particular, que alguns de nós possuem, e que lhe permitia transcender a omnipresente barreira da aparência. E quanto à beleza da interioridade, lamentamos, mas já não se pode falar com tanta facilidade do seu carácter particular. É curioso como, neste momento, já não havia olhares em direcções opostas. Tiago e Luís, em total sintonia, olhavam para trás. De Bárbara, já falámos. Mas, se nos cruzássemos com Sara numa qualquer rua, teríamos, neste momento, dificuldade em reconhecê-la. Sara era loura de olhos azuis. O suficiente para estontear a cabeça de qualquer latino. Sim, poder-se-á afirmar. Sara, todavia, não era bonita. Sim, nem todas as louras são bonitas! E ela pertencia a esta última classe. Embora Tiago não o admitisse. Mas também não se podia afirmar, com convicção, que fosse feia. Sara era de estatura média. A largura das suas ancas prometia facilidades maternais, e futuras dificuldades em encontrar cintos. O seu rosto possuía o indelével e irritante traço, visível em alguns adultos, do mimo. Tinha, também, uma cara demasiado redonda. Luís recordava-se sempre dos anúncios ao campeonato do mundo. O seu timbre de voz não era dos mais agradáveis, algures entre a cozinha de um restaurante e a casa dos pássaros do zoológico. E se acrescentarmos o vácuo do seu discurso, pontuadíssimo de lugares-comuns e de laivos caprichosos, conseguimos, neste momento, e com toda a certeza, reconhecê-la da próxima vez que se cruzar connosco. Eis o antagonismo que deliciava o olhar crítico do espirituoso Luís. Convém, desde já, sublinhar um aspecto crucial para não cairmos em falsos juízos: Luís respeitava Sara. Errado! Desculpem, Luís respeitava a namorada de Tiago. Agora sim, está correcto. Por conseguinte, várias vezes teve de elevar a voz na ausência do amigo, para silenciar maledicências que sempre ocupam os lugares vazios. E, com o tempo, aquela história dos pólos opostos começou a fazer-lhe algum sentido. E havia um aspecto que ele admirava em Sara: nunca se ouvira falar de confianças desnecessárias na ausência de Tiago. E se estamos a falar de carácter, e de relações humanas, aqui está a sua coluna vertebral: o respeito!

Embora o ambiente estivesse suavizado, a fria manhã sentia-se no interior do Renault. O frio tem o condão de nos recolher sobre nós próprios. Como se nos tornasse, ao mesmo tempo, em criaturas ensimesmadas. Com a excepção de Tiago, por motivos óbvios, todos estavam de mãos nos bolsos. Mas com um sorriso nos lábios. Afinal, havia um prenúncio de aventura no ar. Bárbara, ao contrário de Sara, que apenas olhava para a frente e alimentava a questão dos aspectos técnicos, de vez em quando, alienava-se do diálogo, absorvida pelo espectáculo do mundo que contemplava da janela. Luís seguia-lhe cada pestanejar. E apercebeu-se de que a contribuição dela para o diálogo intensificava-se mais nos semáforos (sempre vermelhos) ou sempre que o mar se ausentava. Mas ela silenciou-se, por completo, durante uns sete ou oito minutos. Assim que a serra se anunciou no horizonte, com um grito de majestade e uma promessa de aventura, e a palavra oceano começou a fazer-lhes sentido, perante aquele inesgotável mar verde que relembrava, em cada investida, desilusões e saudade, cada um deles, no silêncio interior, compreendeu vida… A certa altura, Bárbara abriu ligeiramente o vidro, de forma a sentir aquela revigorante maresia, emergida das escarpas. Ninguém obstou. Todos se aperceberam de que ela, nesse momento, estava muito longe. Imperceptivelmente, começaram a falar mais baixo. Assim que lhes surgiu a última e ventosa praia, antes do abraço à serra, Tiago reduziu a marcha e acabou por imobilizar o carro, na berma da estrada. Aquele era um espectáculo sentido. Sem tradução linguística. Bárbara, naturalmente, foi a primeira a sair do carro, e trocou a sua passada pensante, por um passo tímido e lento. Luís secundou-a. Tiago e Sara, por fim, também saíram. Bárbara parou, ao lado da escada de madeira de acesso à praia, no cimo da falésia. Luís aproximou-se. Ao vê-la ali, de costas, estranhou não crescer em si o desejo de abraçá-la. Abstraiu-se, por breves momentos, do espectáculo da natureza, e matutou na questão: afinal, que sentia ele por Bárbara? Nas suas, ainda, fugazes e verdes relações, a marcha dos afectos iniciava-se, precisamente, por esse sentido gesto do abraçar. Que transmitia toda uma mensagem sublimada de ternura e protecção. Mas Bárbara não lhe despertava estes sentimentos. Ele sentia-se perdido. Como se lhe tivessem roubado um guião, neste caso dos sentimentos, que ele sempre cumpriu. Neste momento, ele estava três ou quatro passos atrás dela. Ela permanecia de mãos nos bolsos. Mas de uma forma que só ela podia estar. E ele sabia que expressão o seu rosto agora assumia. Uma expressão de distância. Como se, para ela, o acto de contemplação estivesse eivado de uma religiosidade que preconizava silêncio e interioridade. Se houvesse mais pessoas assim naquele momento, Luís tinha a certeza de saber identificar Bárbara. Não nos esqueçamos de que ele se mantém, curtos passos, atrás dela. Luís deleitava-se sempre que ouvia o nome dela. Ou quando lhe afluía à mente. Perdia-se, vezes sem fim, a soletrá-lo. No fundo, não era um nome que apreciasse por aí além. Mas concordava, em absoluto, que ela só podia ter aquele nome. Como se ambos, mutuamente, se transfigurassem. É evidente que, agora, ele amava aquele nome. E, pela sua vida fora, sempre que o ouvir, o sorriso da memória será turvado pelo vazio da saudade.

 

XIX

Tiago e Sara acabaram por ladeá-lo. Nada disseram. Assim que os viu, Luís avançou para Bárbara. Eles seguiram-no. Desse modo, ficaram os quatro sobre a falésia, aquém verbo, a olhar a praia que, a seus pés, se estendia até ao opulento e desafiador promontório, num incessante baile de ares, areias e águas. Movimento, foi a palavra que adveio ao espírito de Luís, e que traduzia, na perfeição, aquele cenário. Nada era estático. Tudo se mobilizava, a começar nas incessantes colinas de água das vagas, que se diluíam na areia, para logo ressurgirem no zénite líquido, tudo pautado pelo contínuo silvar do vento, passageiro das ondas, intemporal escultor dos caminhos do homem.

Ainda ficaram mais algum tempo, inebriados de sal e horizonte. Por cima deles, o voo desdenhoso das gaivotas. Não nos esqueçamos de que estes jovens provêm dos recém-erigidos subúrbios da capital portuguesa, construções de qualidade duvidosa, férteis em sombras e escassez de espaços. Bebiam, com avidez, qualquer vislumbre de distâncias. O som da morte das vagas, no amanhecido areal, ecoava de forma diferente no interior de cada um. De certa forma, definia-os. Sim, o eco que damos aos sons do mundo indicia a vibração da invisível mão da alma, a tanger os acordes hárpicos da nossa essência. Sara estremecia, embora disfarçasse; Tiago inquietava-se, sim, de certa forma, tratava-se de uma inquietação respeitosa; Luís fascinava-se pela opulenta manifestação de poder de uma natureza gloriosa; Bárbara era espanto, porque o seu olhar revestia-se de um brilho de primeira vez, e dela emanavam infindáveis questões, inspiradas pelo eterno abismo divisor de realidades. Mas, no alto daquela falésia, alumiada por um sol da manhã, todos comungaram, indizivelmente, de um sentir virginal. Como se na multiplicidade de cores, sons, cheiros, sensações, ecoasse um Sentido, dito de outra forma, perpassou-os a ideia de Unidade, e, no íntimo de cada um, surgiu a imagem de um distante lugar de regresso. Nada foi dito. Nem expressado. Isto só sucede quando percorremos as mesmas paisagens interiores.

Por fim, regressaram ao carro. Iniciavam, agora, a subida da serra, o azul do céu cobria-se de verde, e, de novo, viveu-se silêncio entre eles. À medida que o dia ia ganhando forma, a paisagem ia-se despindo de casas. Após as primeiras curvas da serra, só a estrada como vestígio humano. Cada um olhava para a sua serra. Tiago manifestava aquela concentração própria dos condutores inaptos, onde é tangível o esforço de cada gesto. Lia-se arrependimento na sua face, perante a sucessão de curvas, e os abismos perscrutados. Sara revelava uma expressão de curiosidade, que podia exibir numa outra qualquer situação, perante uma montra que lhe suscitasse interesse, por exemplo. Luís procurava olhar a serra de Bárbara. E via um rosto por vezes à sombra, outras vezes amarelecido, mas sempre em busca de um invisível que só aqueles olhos conheciam. Luís gostou daquela paisagem. Detinha a beleza do seu encantamento. E prometia compreensivas sombras, sob as quais brotavam diálogos ociosos – sempre os mais revigorantes –, e clareiras de luz, onde o riso poder-se-ia espraiar até ecoar nos cantos da memória. 

Quando se familiarizaram com o verde, as curvas, e a vertigem, o diálogo reencontrou uma porta. Sara, a dado momento, pediu a Luís para colocar uma cassete. Hesitantemente, ele acedeu. E o habitáculo do Renault foi invadido por uma erudição de nome Modern Talking. Sara exultava; Tiago optava pelo disfarce, mas, com um pouco de atenção, divisava-se o compasso dos dedos no volante, e a prolongada distensão dos cantos da boca; Luís estava aterrorizado; Bárbara sorria indulgência. Se atentarmos um pouco, compreendemos, com facilidade, o terror de Luís. Ele percepcionava claramente um problema de descontextualização. E isso afectava-o. Aquela piroseira tinha o condão de destituir aquele exuberante cenário de qualquer vestígio encantatório. No fundo, soterrava-o. Apercebeu-se, assim, do poder da música. À custa dos Modern Talking. Abriu ligeiramente a janela. Enquanto o fazia, o vidro devolveu-lhe o rosto. Olhou-se. Mas não era bem o seu rosto que via. Mas sim, o rosto da criança que fora. Um rosto sorridente, com qualquer coisa de temeroso, pareceu-lhe, de alguma forma, contemplar o indelével traço da maturidade, embora o olhar ainda fosse de luz. Perdeu-se. Como era possível a criança de ontem trazer a indisfarçável marca do tempo? Talvez beijasse rostos com leitos de lágrimas… Talvez contemplasse, vezes de mais, durante as refeições, uma cadeira vazia… Talvez se apercebesse, demasiado cedo, da surdez do silêncio… Talvez fosse do seu temperamento… Talvez… Olhou-a, de novo. Ali estava ela. A olhá-lo do vidro. Estava do lado de fora do carro. Nas suas costas corriam árvores. Ele, de dentro, sorriu-lhe. A criança não reagiu. Permaneceu com o mesmo semblante. Percebeu-lhe algo numa das mãos. Um brinquedo qualquer. Talvez… Não, não conseguia descortinar. Continuou a olhá-la. Subitamente, apercebeu-se de um turvar nos seus olhos. Como se de uma acusação se tratasse. Perscrutou aquele rosto. E apercebeu-se, com uma dor profunda, que ele a desiludira. Fechou os olhos. Não conseguia suster aquele olhar desiludido. Quando, por fim, os reabriu, de novo árvores a sucederem-se. Da criança, nem vislumbre. Apenas uma dor latejante, nas suas raízes, testemunhava a veracidade dos factos. A dor de alguém que, de repente, descobre que se desiludiu a si mesmo. Esta será, porventura, a mais amarga das descobertas: quando nos apercebemos ter desiludido o eu passado. É sinal de que nos desviámos em demasia da rota traçada.

 

 

XX

Pensaram ter chegado onde queriam. Talvez se enganassem. Mas, por enquanto, não tinham dúvidas: era ali que queriam estar. Era uma manhã de Abril, com um frio de Dezembro. Saíram do carro numa comunhão em êxtase pela beleza indesmentível do lugar. Passava pouco das onze da manhã. Inspiraram o momento. Assim ficaram durante algum tempo. A voz de Sara quebrou o encanto, ao relembrar os afazeres. Luís virou-se e derramou desprezo. Tiago, no entanto, seguiu-a. Luís aproximou-se de Bárbara, que, de mãos nos bolsos, permanecia numa imobilidade contemplativa. Como lhe era habitual. Olhava as coisas como se lhes descortinasse o seu mistério último. No fundo, estava sempre com o longe…

L. – Esperavas isto?

B. – Não sei. Acho que superou a minha imaginação.

L. – (Sem encontrar outras palavras, optou pela praxis.) É melhor irmos ajudá-los.

B. – Em que direcção fica aquilo?

L. – Vamos seguir pela margem direita, e fica, mais ou menos, num vale próximo daquele monte além.

É curioso como Luís não era tão contemplativo como Bárbara. Embora lhe apreciasse, sobremaneira, essa característica. Um pouco como aquelas pessoas casadas com alguém bastante devoto, que sentem as obrigações piedosas cumpridas através das orações do outro. Neste caso, tratava-se das obrigações estéticas. Luís virou-se e foi ajudar os outros a descarregar as mochilas do carro. Bárbara permaneceu imóvel de olhos na distância. Já nada via, apenas sentia. Assim ficou ainda mais alguns segundos, até que uma estranha sensação lhe despertou a urgência de companhia.

Sempre que se altera o contexto das relações humanas, há uma necessidade premente de se readquirir a familiaridade. Como se esta fosse intrínseca a um lugar efectivo. Quantas vezes não evitamos cumprimentar alguém conhecido, por exemplo, quando inesperadamente o avistamos no local onde estamos de férias? Como se esse alguém ali não pertencesse. Estivesse a mais. Ou nos devolvesse um espelho que, naquele momento, nos é indesejado. E se não podemos evitar as obrigações da educação, caso estejamos mesmo diante da pessoa, gera-se, inquietantemente, um sentimento de estranheza, como se as palavras não afluíssem à boca, como se nos descobrissem uma faceta privada, íntima. E entre a timidez do sorriso e as palavras de ocasião, procuramos um espaço de fuga, para de novo reorganizarmos o nosso pequeno mundo. E, refeitos do percalço, seguimos em frente, imbuídos na oxigenante alienação da existência… 

Eles, neste momento, experimentavam emoções similares. Tinham que readaptar os elos emocionais que os uniam à novidade do cenário. Uma aprendizagem que se iniciava sempre pelo degrau da espontaneidade – não fossem eles jovens!

T. – Então Bárbara, é lindo ou não é?

B. – É extraordinário. Superou as minhas melhores expectativas.

S. – O que se passa Bárbara?

B. – Nada. O que é que foi?

S. – Não sei. Pareces assustada!

B. – Que disparate. É do frio.

Luís não deixou de notar a observação de Sara, enquanto arrumavam o material, e dividiam as mochilas a transportar.

L. – Achas que vai haver problemas com o carro?

T. – Espero bem que não.

L. – Não preferes deixá-lo num sítio mais escondido?

T. – A acontecer alguma coisa, acontece em qualquer lado. Ao menos aqui está visível. E pode ser que pensem que estamos por perto.

L. – És capaz de ter razão. Estão prontos?

De mochila ao ombro, viraram costas ao último vestígio de civilização, o Renault 5 (Laureate) branco de Tiago, e embrenharam-se na serra. Tiago ainda se virou, para dar um último vislumbre à sua afirmação social. Como se, através do olhar, lhe lançasse um véu protector. Entristeceu-o a solidão da viatura no meio de todo aquele verde.

Ainda sob o efeito da inebriante beleza do lugar, caminhavam contemplativamente. Ninguém ousava desafiar a música da natureza. Pontuada por cânticos alados e pela intemporal melodia, que só os mais atentos escutam, do rumorejar do vento por entre as árvores. É uma melodia apaziguante, mas pode também prenunciar inquietantes mudanças. Como as marés dos oceanos. Foi com um Não caias!, dito por Tiago a Sara, que finalmente se recompusera a espontaneidade da juventude.

S. – Ia-me espalhando bem. Não querem fazer uma pausa?

B. – Acho bem. Também não estou habituada a andar tanto. Ainda para mais, com uma mochila destas. (Luís apercebeu-se do carácter diplomático desta afirmação.)

T. – Bom, então o melhor é comermos alguma coisa.

L. – Se começamos a parar desta forma, nunca mais lá chegamos. Acho que viemos com um propósito, e não em turismo. 

Esta afirmação, de Luís, teve o condão de despertar neles uma súbita noção de dever, até então adormecida. Mas este despertar afluiu às consciências em tons esbatidos, dissipou-lhes o brilho do espanto e, em troca, consubstanciou-lhes um temor indizível.

S. – Tudo bem, mas podes acalmar-te um bocado. Acho que não estamos na tropa! (Terminada a frase, o arrependimento precipitou-se sobre ela. Não pela expressão de Luís, por si só bastante ilustrativa. Mas pela dor invocada. Todos conheciam a fragmentação familiar, a história do militar, o divórcio, a menina da messe… Afinal, os portugueses têm a língua muito próxima dos ouvidos. Pela primeira vez, a expressão de Bárbara transpareceu aquém, no olhar reprovador dirigido a Sara. Não escapou a Luís. Tiago, uma vez mais, revelava-se um malabarista das emoções.)

T. – Acalma-te lá Luís, ainda agora praticamente chegámos, e já estás todo stressado.


XXI 

A contragosto, Luís cedeu à maioria. Sentaram-se em círculo, na margem do rio, e saborearam a primeira refeição na casa da natureza. Todos sentiram um apetite inabitual, mas o pudor derrotou-os. Regressamos, de novo, à questão contexto/relações humanas. Como se o simples facto de saciar o apetite, constituísse uma ignomínia aos olhos de outrem. A questão que mais se repetiu (Não queres mais?), durante a refeição, revestia-se da efemeridade omnipresente de uma resposta interiormente partilhada. É estranho este pudor que desce sobre os nossos gestos quando receamos certos olhos. Como se tudo se jogasse nessa imagem que julgamos emitir. Se ali estivessem apenas Luís e Bárbara, a parcimónia seria a mesma. Tudo mudaria ligeiramente com Tiago e Sara, por motivos óbvios. Mas até um casal, como é o seu caso, cumpre o rito cerimonial diante de terceiros. E ali estavam os quatro, com o apetite ampliado pela respiração da natureza, mas com o sorriso da educação desenhado no rosto, olhos nos ténis enquanto mastigam, e desejosos de aquietar o estômago rapidamente. Embaraço foi o saldo da primeira refeição. No fundo, talvez seja o de todas. Há sempre um desvelar quando se assiste ao mastigar de alguém. Como se o orgânico rompesse a imagem almejada – modas, tiques, manias… – e relembrasse apenas bílis e tripas. Ao longo da refeição, falaram de trivialidades. Havia, bem latente entre eles, um clima de desconforto à medida que se afastavam de cenários familiares. Embora, talvez fruto da idade, o desconhecido ainda fosse um cântico sedutor. E assim se preenchiam os seus pensamentos, entre paradoxos insolúveis, mas que moldavam os seus estados de humor.

Todo o entardecer é um glorificar do fim, como se nos relembrasse repetidamente que nascemos para morrer. E aquele final de tarde não constituiu excepção… Caminhavam, agora, numa contemplação inquieta. A inquietude é parente próxima dos nossos objectivos. E neste momento, pontuado por profundas inspirações e longas expirações, após uma sempre longa subida, cada um revia os seus objectivos e, acima de tudo, se ainda eram alcançáveis. E começavam a perceber, com alguma amargura, que a inquietude não é mais que o descolorir de um sonho. Tiago apercebia-se da crescente distância de Sara. Talvez nem fosse propositada. De alguma forma, muito recôndita, a presença de Bárbara feria-a. Incomodava-a. É uma situação recorrente nas mulheres. Elas apercebem-se com bastante facilidade quando o sol se debruça com mais prazer sobre uma delas. E isto não tem que ver com ciúmes. Trata-se apenas de um estado natural do elemento feminino. A ânsia de luz. O masculino, neste particular, é distinto. Caracteriza-se, para sua afirmação, pelo protagonismo, dito de outra forma, anseia também por uma luz, no entanto, uma luz sempre artificial. Porque a par do protagonismo anda sempre o efémero. E a esta verdade o masculino chega sempre na noite da vida. Se é que lá chega. Enquanto o feminino, sempre mais clarividente, com o tempo, vai maquilhando o rosto com um desesperançado véu, para dar uma ilusão de cor. Sabe, há muito, que o espelho só lhe oferece, como reflexo, um continente de sombras.

Regressemos a Tiago, e às suas intenções bastante claras e naturais. Apercebeu-se, assim que Bárbara entrou no carro, que estavam condenadas ao malogro. Sara estava inquieta. Ainda mais desagradável. Como se andasse em busca do seu lugar natural. No fundo, Sara estava hoje aqui, como poderia estar numa praia do Sul, ou numa aldeia do interior. Desde que longe de casa. E da mãe que lhe relembrava, vezes sem fim, a diferença entre sonhos e devaneios. O problema da mãe de Sara é que a vida se apresentara demasiado cedo, e, quando isso sucede, a cabeça não se reclina o tempo suficiente para conhecer o sonho. Infância de interior. A troca sempre prematura dos livros pela enxada, a mãe sempre deitada, a apresentar-lhe mais um irmão, enquanto o regimento já existente aguardava, à mesa, que ela servisse a janta, as ausências paternas, talvez mais irmãos noutra aldeia, quando presente ampliava o silêncio aos cantos da casa, nunca um sorriso, ainda menos um diálogo, o rosto do pai, ainda hoje, um cabeçalho de jornal. Só no velório lhe foi possível ir além do cabeçalho. Descobriu um rosto pintado por muitos sóis, endurecido por muitas intempéries, mas que revelava, simultaneamente, um cansaço de prazer. Como se regressasse, para fugir às agruras, a um lugar só seu. Nada mais pôde ler naquele rosto. Era feito de mármore à sombra.

Sara cresceu no extremo oposto da vida em relação à mãe. O pai de rosto demasiado sorridente, por vezes apatetado, para os caprichos da menina. Filha única. Sua mãe havia lavado demasiadas fraldas e demasiados narizes. Uma bastou-lhe. A vida sugara-lhe a paciência. Mas dá-se bem com os irmãos. Embora, por vezes, lhes note uma indulgência com raízes na gratidão. Mas talvez seja uma impressão sua. Assim, procura, e por imperativo maternal, acinzentar um pouco os horizontes da filha. Não fosse o cinzento a cor da maturidade. Sara fugia-lhe… É compreensível. Que jovem trocaria a doçura tépida da ilusão pela sombra pardacenta de uma certeza?

Os objectivos de Luís conhecemos há muito. E os de Bárbara? Porque veio? Estará hoje aqui, apenas, para conhecer o lugar onde se deram os factos? É uma possibilidade… Bárbara provém de um lar onde nada está fora do lugar. Desde o sorriso da mãe, à entrada, somos confrontados com uma artificialidade asséptica. É uma daquelas casas onde, pouco depois de entrarmos, somos invadidos por um desejo irresistível de levantar o canto de uma carpete e espreitar. Porque talvez aí se esconda um vestígio de vida. O pai é contabilista, a mãe funcionária pública. Tem uma irmã, mais velha três anos, a cursar veterinária. Moram num 2º andar. As irmãs partilham o mesmo quarto – sempre as exiguidades dos subúrbios –, cada uma com a sua cama, de ferro branco, ornamentadas com colchas de um rosa demasiado rosa, e coroadas com uma boneca de louça, sentada, vigilante, de um pálido fantasmagórico, com um vestido antepassado. Havia quem falasse na vontade maternal. Havia quem dissesse que a irmã encolhia os ombros. Havia quem jurasse que, a boneca da cama de Bárbara, só ocupava o seu posto, muito depois de ouvir a porta da rua. E, não raras vezes, a mãe apanhou-a do chão após o regresso da filha. A eucaristia, ao domingo, é de consumo obrigatório. Assim como as visitas aos avós. E outros entusiasmantes programas familiares. Tudo pontuado por cumprimentos e saudações, a caminho do carro, aos vizinhos. Não se ouviam as vozes naquela casa. Mesmo a televisão, bastante digerida por sinal, um dos poucos traços em comum com os outros lares, sempre baixa, quase inaudível… Quando a idade lhe permitiu compreender que nada iria alterar, Bárbara resolveu crescer de costas voltadas para aquela casa. Percebeu, muito cedo, que o amadurecer é a compreensão dos avós.

 

XXII

O ar expirava ocaso. O laranja indefinia as cores da vegetação em volta. As sombras emagreciam em prolongamentos esquálidos. Eles, neste momento, olhavam o céu nas águas langorosas do rio, e recebiam o entardecer, nos seus corações, como a esperança de uma promessa por cumprir. Estavam sentados. Sara encostada a Tiago. Apenas… Embora um ombro aguardasse pelo reclinar de um rosto. Luís e Bárbara, uns metros imperceptíveis a jusante. Tiago sentia Sara. Sara, nesse momento, apreciava a compreensão dele e agradecia o seu calor, por outras palavras, o seu coração iniciava os preparativos de uma longa viagem… Ambos, sem o saberem, inspiravam, de olhos fechados, entardecer. Luís e Bárbara, por sua vez, ouviam aquela repousante melodia líquida, de olhos no indefinido. Nenhum deles desafiou o silêncio do verbo.

De repente, Bárbara levanta-se e dirige-se às tendas. Regressa, pouco depois, com o seu Sony Sports amarelo. Antes de se sentar, sorri para Luís. Ele retribui com o rosto, questiona com a razão, e agradece com a emoção. Por fim, ela estende-lhe o auricular direito. Aos primeiros acordes da música, ele aproxima-se um pouco mais dela, os ombros já se tocam, e assim permanecem, numa comunhão de sonhos e melodias, embalados por uma canção só sua, que lhes relembraria, para sempre, a eternidade do momento. Nada disseram. Assim permaneceram enquanto durou a música. E um pouco depois…

 Tinham escolhido, para pernoitar, uma clareira aprazível próxima da margem. As tendas aguardavam já as estrelas. O costume de se sentar à volta de uma fogueira é imemorial. Eles também se sentaram em redor do elemento luminoso e quente. Tal como os seus antepassados longínquos. Havia uma expectativa muda nos seus gestos e olhares. Uma ansiedade indizível – ou seja, que a noite desse lugar ao dia. Mas a ansiedade humana retarda sempre o normal fluir do tempo, e na altura todos desconheciam este singelo facto. E esta primeira noite ia ser longa, muito longa…

 

XXIII

Se os observarmos cuidadosamente e de uma certa distância, apercebemo-nos, apesar do diálogo, em volta da fogueira, decorrer com bastante animação, de um indizível temor. Mas o que temiam eles? É uma questão que só pode ser respondida por quem, efectivamente, experienciou a noite na sua essência. Não será por acaso que, em qualquer publicidade turística, as paisagens são-nos sempre apresentadas de dia. Como se, de alguma maneira, tal facto nos aquietasse. O almejado controlo do espaço. Eles, neste momento, olhavam em volta e não reconheciam o aprazível lugar escolhido, escassas horas antes, para montar as tendas. Como se tivesse sofrido uma metamorfose. Afinal, fosse outro. E era-o, de facto. Eles não conseguiam tanger esta verdade. Estavam ainda aquém destes saberes: basta a luz para multiplicar uma só paisagem. A noite confunde. Ressoa no seu abraço um apelo ao sonho, ao desregramento… E no íntimo de cada um, lateja, de forma imperceptível, mas insistente, o clamor pelo limite: génese da confiança intrínseca na relação com o mundo.

E ali estavam eles, sob o manto ancestral dos sonhos, no coração verde de uma serra, a mais de uma dezena de quilómetros da alcatroada civilização. A refeição obedeceu, uma vez mais, aos preceitos da etiqueta jovem e do pudor. Mastigares cautelosos e horizontes de solo. Neste particular, Luís familiarizava-se com o chão do mundo. Relembremos que ele não tinha passado de escuteiro. A sua natureza era a praia. Fascinava-o a irregularidade daquele solo: raízes deformadoras, pedras, ondulações de génese profunda, formigueiros, troncos caídos, ervas, arbustos espontâneos, mais pedras, pedregulhos… Porque seriam os espaços humanos tão lisos? Os seus pés aprendiam o caminhar da natureza, enquanto a sua mente se enleava em porquês de sabor tardio. Curiosamente, todos evitavam olhar as tendas. Como se não existissem. Talvez por simbolizarem uma fronteira de géneros que, intimamente, procuravam transpor. Mas ali estavam elas, alumiadas pela prata luar, majestosas, a proclamar valores com outras paisagens. Mas tão presentes ali, naquele preciso momento, como se fossem próximos àquelas árvores, àquele céu, àquele nocturno cântico líquido… Havia uma impronunciável revolta interior neles. Porque, ao mesmo tempo, seduzia-os a doçura do esquecimento, e compreendiam que o destino de qualquer viagem é o regresso. Como se um regresso fosse uma capitulação. O proclamar de uma derrota. Talvez por já conhecer o caminho. Talvez pelo cansaço de tanto o percorrer. Talvez, no fundo, por não querer regressar… E almejar um partir sempre adiado pelo desencanto regresso a um cansaço do conforto conhecido.

Sempre souberam o resultado daquele confronto. No fim, cada tenda iria acolher apenas elementos do mesmo género. Compreendiam, com tristeza, que as suas raízes eram mais profundas e tortuosas. Talvez por isso, não houvesse almas lisas.

O diálogo exterior contrastava com o monólogo interior. No fundo, contrasta sempre: o pensamento é sempre mais rápido que as palavras. Talvez por falar uma outra linguagem…

B. – Isto é fantástico. Nunca sonhei passar uma noite assim. Parece que estamos num filme. É completamente diferente estar assim, aqui, do que ver nos filmes. (Luís percepcionou o tom afectado de Bárbara. Como se acabasse de emitir a fala de uma personagem teatral que lhe coubera em sorte.)

S.- Podes crer. Mas estou com um bocado de frio. (A imagem das tendas emergiu, de novo, no horizonte estrelado. Sobretudo na mente dos rapazes. Seria uma indirecta, de Sara? Tiago quis acreditar que sim. Luís, por sua vez, compreendia que não. Sabia, há muito, que ela padecia, de entre outras coisas, de desnutrição de subtileza.)

L.- Para mim, está óptimo.

T.- Alguém quer mais comida? (De novo, a diplomacia.)

S.- Estou saciada.

L.- E tu, Bárbara?

B.- Também estou cheia.

L.- Mas não comeste quase nada…

T.- O que estarão os nossos pais a fazer a esta hora? (Muito tempo depois, Luís ainda questionava o porquê desta súbita e descontextualizada intervenção do amigo. Na altura, quis confrontá-lo. Mas a sucessão de instantes é o alimento da hesitação.)

S.- Estou interessadíssima. A minha mãe a lavar louça e o meu velho já a dormir, depois de ter anunciado, pelo menos vinte vezes, que pega às cinco. Já não o posso ouvir. (Sara tornava-se mais audível pelo tom do que, propriamente, pelas palavras. Comunicava emoções em detrimento de ideias. Há muita gente assim. Regra geral, são os mais felizes: a vida basta-lhes…)

L.- Estás a ser injusta, Sara. Certamente, se não fosses tu, o teu pai não teria de trabalhar tanto. (A indignação vencia-o sempre.)

S.- Não pedi para vir…

B.- Essa é velha! Já te imaginaste com a idade dele? (Uma aliada para Luís. O bom-senso não nasceu para o silêncio.)

S.- De certeza que vou ser diferente!

B.- Isso é o que todos dizem. A minha mãe… (As palavras silenciaram-se ainda no seu interior. Um silêncio de mágoa. E de vergonha. Porém, a vergonha era mais profunda. E Bárbara, nesta altura, ainda não o compreendia. É natural: a compreensão chega sempre depois do sentimento.)

 

XXIV

…E a conversa prolongou-se madrugada dentro. Enquanto as trevas cobriam a terra dos homens, os sonhos permaneciam coloridos. Com o tempo descobrimos que as cores dos sonhos se vão esbatendo...E as cores das memórias intensificando-se…Há quem chame a este fenómeno envelhecimento, e há quem o denomine por resignação.

Sara foi quem primeiro anunciou a retirada. De imediato, olhou Bárbara. Esperava, como é natural, solidariedade de valores. Bárbara lia-lhe os gestos. Por fim, e um pouco a contragosto, levantou-se. Luís e Tiago olhavam, agora, cinzas. Havia, entre eles, uma atmosfera de derrota. Ilustrada por um emudecimento que se prolongou em demasia. Nenhum deles, nesse entretanto, ousou levantar os olhos para o destino dos seus pensamentos. Assim ficaram, por mais algum tempo… Luís revolvia cinzas, numa rapidez crescente, talvez a mão acompanhasse as emoções… O rosto de Tiago alumiava-se de vermelho, volta e meia, perdido que estava entre as cinzas e o gesto do amigo. Por fim, Luís declarou sono. Tiago levantou-se de imediato, com o intuito de olhar a tenda já habitada. Sentara-se de costas para o objectivo. Percebia-se luz, lá dentro. Provavelmente, as lanternas. À medida que caminhavam, para o frio desolador da sua tenda, nascia entre eles uma repulsa, talvez por se espelharem derrota… Dessa noite, eles apenas guardaram a imagem das cinzas incandescentes. Não houve mais frases. Cada um, no seu saco-cama, revivia cada momento, cada frase, desse ansiado dia, numa tentativa de compreensão, que desaguou em malogro. Só anos mais tarde, é que compreenderam a sapiência das cinzas. A compreensão alarga-se com os anos. Mas, nessa noite, sem o saberem, perderam algo mais. Irrepetível. A possibilidade de alguém os ouvir. Ouvir, em verdade. No fundo, somos os principais obreiros da nossa solidão. E o problema da aprendizagem da vida é que chega – quando chega – sempre tarde… Demasiado tarde…

Elas ainda conversaram um pouco. Embora Sara assumisse, quase sempre, o papel de emissor. Mas Bárbara conseguia, em simultâneo, responder-lhe e focar-se nas suas questões. Só uma mulher é capaz de tal feito. E Sara falou, falou… Por fim, exausta do dia, e cansada de tanta superficialidade, Bárbara mergulhou:

B. – Amas o Tiago?

S. – (O rosto atónito, deformado pela surpresa da questão, foi a única resposta. E o mais, silêncio…)

B. – Então, qual é o teu problema? Ama-lo ou não?

S. – Bom, eu… Não sei… Quer dizer, nunca me colocaram o problema assim…

B. – Ouve, é muito simples: ou sim, ou não. Aqui, não há meio-termo. (Bárbara objectivava a questão. No fundo, conhecia a resposta há muito. Só queria despertar consciências. Talvez se, neste último entardecer, não estivesse tão alheada com walkmans e melodias, e tivesse olhado ligeiramente para montante, fosse menos contundente no tom emprestado à questão.)

S. – Mas porque é que queres saber? (A questão/resposta estava eivada de uma certa indignação e de algum pudor.)

B. – (Bárbara detectou-o. Não carecia de perspicácia, como sabemos. Deteve-se, por instantes, a observar-lhe o rosto. Cada uma no seu saco-cama. Estavam deitadas de lado. Mas, em vez de uma intimidade conspiradora de amigas, havia uma deferência resultante de um facto do destino. Crescia em Bárbara a convicção de que aquele rosto apenas lhe suscitava distância. Sim, apenas isso: distância. Nada de antipatias. Como se olhasse alguém proveniente de um lugar remoto, e adivinhasse uma comunicação deficitária. Porém, esgotava todas as possibilidades de lançar pontes comunicacionais, como se pretendesse atingir uma margem com ecos de naufrágio. Ainda assim, persistia nos seus intentos. Em algum recanto do seu ser, percebia-se a razão daquele esforço. O óbvio, no humano, tem sempre como destino alguma despensa. Talvez por anunciar um desconforto indesejado. Bárbara continuava a analisar-lhe o rosto. O olhar pisco que anunciava curtas distâncias, a deformação do mimo, as linhas de imaturidade, a ausência de sofrimento… Todas estas características não a irritavam, muito pelo contrário: suscitavam-lhe compaixão. Ela sabia que o sofrimento bate a todas as portas: ou entra num hesitante vagar até se alojar por inteiro, ou numa invasão repentina… Esta última possibilidade é dramática: instantes transformam-se, dolorosamente, em anos. Para Bárbara, aquele rosto iria beber o cálice do instante. Lamentava-o… Respondeu-lhe qualquer coisa, que pouco depois esqueceu. Bárbara compreendia, com tristeza, a distância que as separava. Uma distância inultrapassável por palavras. Esta sensação iria tornar-se, com o decorrer dos anos, familiar. Não é fácil, na vida, encontrar espíritos capazes de inspirar ideias e mergulhar na vertiginosa espiral do velho diálogo. Disse um fugidio Até amanhã, virou-lhe costas e apelou ao sono, enquanto aguardava, com paciência, os famintos pensamentos dos últimos instantes de vigília, que apenas relembram, em cada dia de existência, que, no fim de tudo, a eternidade acolhe-nos em solidão.)


XXV

Um despertar é sempre uma violência. Foi Luís que, naquela manhã de serra, primeiro abriu os olhos. Despertara-o um irritante e rouco cantar de uma rola. Ele despertava com facilidade. Afinal, tinha um sono povoado de sons. Basta recordar os anos de suspiros e sal maternais. Não é cântico para uma meninice. Em Luís, o sofrimento, pé ante pé, foi-se apresentando, até se tornar num velho conhecido. E ele ainda não completou duas décadas de vida. Há casos assim. São aqueles que, verdadeiramente, mudam.

Tiago ainda dormia. Luís saiu da tenda sem olhar o amigo. O mundo aguardava-o no seu esplendor matinal. A luz ajudou-o, pouco a pouco, a reconhecer o que as trevas haviam ocultado. Uma neblina desprendia-se da terra. Ainda não deviam ser oito da manhã. Havia uma multiplicidade de sons no ar. E nas árvores mais próximas ao rio. Ele inspirou longamente. O único que se lhe gravou na memória. Talvez por ter sido o mais longo. O mais desejado. Não, nada disso. O que se lhe gravava para sempre era o momento: um alvor recortado por montes, emoldurado por árvores, e cantado pelos seres.

De repente, sentiu leves passos atrás de si. A atenção retirou-o do torpor. Um nome ecoou em si: Bárbara! Virou-se, na ânsia do repente. A desilusão equilibrou o fascínio do inspirar de há pouco. Sara sorria-lhe, com um aspecto ainda mais apatetado, fruto do despertar. Luís olhou a tenda de onde ela emergira, num olhar de socorro por Bárbara. Nada… Entre o clássico Bom-dia e o típico Dormiste bem?, assim se desenrolou a conversa. Decidiram ir buscar água ao rio, para o pequeno-almoço. A actividade é a melhor terapia para o embaraço. À medida que caminhavam, Luís apercebia-se de espontaneidade em Sara. Nada lhe saía teatralizado. Cada gesto, passo, palavra, mesmo o olhar, entre o ensonado e a admiração. Afinal, ela também comportava estética. Nunca estivera, antes, cinco minutos a sós com ela. Sempre o evitara. Admirava-se, agora, de se enternecer com aquele ar despenteado, os bocejos regulares, e a humildade singular de um rosto recém-acordado. Aproveitaram, igualmente, para encher os cantis. A caminhada ia ser longa, e o dia amanhecia ameno. Parecia que o frio sentido na véspera não passava de uma impressão longínqua, quase irreal. O presente é uma ditadura. Tiago surpreendeu-os na vinda. Sara ria, com vida, de uma qualquer piada de Luís. Tiago passou do espanto para o azedume, pouco antes de eles se aproximarem. O seu rosto testemunhava-o. Embora procurasse escondê-lo através de um plástico Bom-dia. Luís não desvelou pelo rosto, mas pelos arames da saudação. Aquele instante marcaria, indelevelmente, as suas vidas. A desconfiança e o ciúme aportaram entre os amigos. Sem aviso. Algo se quebrara. Talvez os ingénuos laços da espontaneidade. Abria-se a porta à obsessão, ao interior. Luís soube-o, de imediato. Tiago e Sara levariam o seu tempo. O olhar de Luís, imperceptivelmente, pousou na tenda que acolhia Bárbara. Como se buscasse, em si, vestígios desta mudança intuída. A tenda respirava imobilidade. Entretanto, no exterior, tudo se metamorfoseara. A questão de sempre: a realidade não sonha, é sonhada. E o tempo do sonho não é o tempo do homem. É uma outra coisa. Daí a dor do acordar…

  

XXVI

Luís furtou-se ao pequeno-almoço com Tiago e Sara. Precisava de tempo e espaço. Ao afastar-se, escudado por uma desculpa circunstancial, reparou que Sara subira de novo ao palco. Ou seria a de há pouco, aquela que o enterneceu, a actriz? Não, não podia ser. É impossível representar no desvelo de um sono. Esta sim, é que representa um papel. Porquê? Esta questão acompanhou-lhe os passos. Se a outra, envolta no fresco manto da humildade, lhe suscitou simpatia, porquê a assumpção desta patética figura? À medida que se distanciava, subindo um dos montes próximos, outra luz descia sobre os acontecimentos. No fundo, a compreensão das coisas advém com a distância. 

Sorria, interiormente, para Sara. Porque sorrir é compreender. Ela representava a personagem por quem Tiago se apaixonara. E, no fundo, ela receava perdê-lo. Daí o receio do desvelo. Daí a arrogância. Daí a infelicidade… De se perder nos escombros de uma imagem.

A meio da encosta Luís parou, e inspirou, de novo, a leveza fresca daquele ar serrano, e sentou-se encostado a uma árvore. De onde estava, podia observar parte do caudal cintilante do rio, mais em baixo, e com mais amplitude os montes circundantes, trajados de árvores e mais árvores… Reparou que o céu estava mais próximo. Desencostou-se do tronco, e deitou-se de costas. Ficou a olhar um céu primaveril que ostentava o azul. Um azul perpassado por umas fímbrias brancas. Desconhecia o facto. Apurou a visão. Sim, de novo o azul acompanhado por uns ténues filamentos brancos. E tudo se movia. Sim, afinal era o céu que se movia. Os livros estavam errados, e com eles todas aquelas teorias. Quem poderia contradizer a visão? E, subitamente, ao olhar aquela eternidade azul, sentiu Bárbara longe. De facto, tudo ficava longe… 

Por fim, o sol obrigou-o a desviar-se. Olhou um ramo próximo. Admirava, agora, a graça com que se alongava, em contínuas multiplicações, numa harmonia de matéria e céu. Como se abraçasse o todo, e tangesse a impossibilidade. De súbito, levou a mão ao rosto. Contemplou as inscrições gravadas na palma. E, então sim, compreendeu…


XXVII

 

Bárbara já estava a pé, quando ele regressou. Arrumavam as coisas. Assim que a vislumbrou, ouviu o convite da vida. Ela viu-o a aproximar-se. Não sorriu. Cumprimentou-o, laconicamente. Ele retribuiu. Quem os visse, lia indiferença. Quem os sentisse, compreendia a promessa…

E assim partiram. Na vida há sempre sinais, avisos, para se mudar de rumo. É lastimável que só com o avançar da idade estes outros ouvidos sejam apurados. A surdez da juventude é flagrante! Caminhavam, de novo, pela margem, em direcção a montante. Como se desafiassem a ordem da natureza, o próprio curso das águas. Luís evitou Tiago. A sua presença, agora, fazia-lhe o sangue descer para as mãos. Mau princípio… Daí o seu afastamento. Tiago começava, nesta altura, a avaliar as consequências do momento. A sua durabilidade. Como se, aleatoriamente, certos momentos tivessem o condão de se projectar no futuro. Por outras palavras: transpor o fugidio presente e abraçar a eternidade: por constituírem um contínuo presente: revivido até à exaustão pelas atormentadas almas terrenas.

À medida que subiam, a vegetação intensificava o povoamento das margens. Foram obrigados a desviar-se um pouco para o interior. Nesta fase, o sol não encontrava caminho por entre o manto verde. A inquietude sussurrante das sombras contribuiu, ainda mais, para a crispação. Não se ouvia um pássaro, há muito. Apenas os seus passos, intervalados pelo constante estalar de ramos caídos, pisados ao longo do caminho. Bárbara aproxima-se de Luís, que seguia ligeiramente mais à frente. Afinal, ainda havia questões por responder…

B.- Ouve, Luís, conta-me lá mais pormenores do que realmente aconteceu.

L.- Bom… não sei muito mais coisas. Então… Ele estava como guarda-florestal há vários anos por aqui. A família vivia lá em cima. E diz-se que…

B.- Mas o que é que o levou a…

L.- Diz-se que foi do lugar.

B.- Do lugar como? Ficou possuído?

L.- É uma forma de se colocar a questão. O grande problema foi a solidão. Enlouqueceu-o.

B.- Parece que o desculpas?!

L.- Não julgo ninguém.

B.- Bom, se não julgas, é porque aceitas… E pior, compreendes!

L.- Ouve, Bárbara. Estou noutra. (Neste momento, ele cai em si. E compreende que não queria ter dito metade das coisas que disse, nem usado aquele tom, a caminhar para a altivez distante. Sempre a inultrapassável fronteira entre pensamento e acto. Não ousa olhá-la. Sabia, de antemão, a facilidade feminina em perscrutar os espelhos da alma.)

B.- Parece que, de certa forma, cada vez mais te identificas com tudo isto.

L.- Longe disso. Mas, não sei… Há uma parte em mim, que sim, que compreende a loucura daquele homem. Vejo o amor e a morte muito ligados… (De novo, o arrependimento das palavras.)

B.- Andas muito trágico! Acho que o amor pertence à vida. De certa forma, celebra-a…

L.- Estás muito filósofa!

B.- E tu, muito estranho. (Ele não gostou desta frase. E apercebeu-se, lentamente, de que também estava a representar um papel. Um papel que desconhecia. Navegava, neste momento, ao sabor das palavras.) Mas voltando à questão. Ele amava a mulher?

L.- Era louco por ela. Segundo consta, era lindíssima. Foi cortejada durante muito tempo por um colega de escola, que chegou a pedi-la em casamento. Ela recusou. Esse colega seguiu diplomacia, e chegou a ser embaixador no Brasil.

B.- Como é que sabes tudo isso?

L.- Pelo meu avô. Ele conhece essas histórias todas.

B.- E ele sabe que viemos ao local onde aconteceu…

L.- Claro que não! Achas que sou doido?! É outra mentalidade.

B.- Coitada! Podia ter acabado embaixatriz, e, em vez disso, mulher de um guarda-florestal que enlouquece e… Realmente… O amor é tão estranho. Parece que as pessoas estão destinadas sempre a apaixonarem-se pela pessoa errada.

(Durante algum tempo, só ouviram natureza…)

L.- É o destino, Bárbara, é o destino. Nunca tinha pensado nesses termos, mas agora que o dizes… Porque será?

B.- Não sei! Mas não faz qualquer sentido. Vejam bem, ela ainda podia estar viva, ser feliz, se…Pois, se…

L.- O embaixador veio ao enterro e quis ser testemunha de acusação no julgamento.

B.- Amava-a, de facto…

L.- Pagou todas as despesas dos funerais.

B.- Bem, o teu avô deve viver numa biblioteca!

L.- Não. Vive aqui perto e frequenta o mesmo café há muito tempo, e, ainda por cima, tem a mesma empregada há décadas. São três bons motivos para se estar bem informado.

B.- No meio do horror ainda há lugar para a beleza!

L. - Andam sempre lado a lado.

B.- Estou aqui a pensar se será pior a solidão ou estar com a pessoa errada?

L.- Ambas são péssimas. Mas antes só do que… (Ele não conseguiu concluir a frase. O pensar travou-lhe a língua.)

B.- Não sei, mas estar só é… Imagina certos dias do ano… Ir almoçar só… Chegar à noite a casa e não haver ninguém à nossa espera… Deve ser… Venha a pessoa errada! (Esta última observação desiludiu-o. Afinal, ela brilha mais à distância. Coitado! Desconhecia, ainda, esta lei universal…)

L.- Venha a solidão.

B.- Não sei…

 

XXVIII

 

Os sonhos são a voz e a cor da memória do homem. Devíamos aprender a ouvi-los… Ainda hoje, talvez nenhum deles tenha aprendido essa lição. Na altura, nada sabiam disto. No fundo, sabiam muito pouca coisa… ou quase nenhuma. Bárbara, contudo, já aprendera a ouvi-los… É curioso como amadurecemos com ritmos tão distintos. 

Avistaram a mãe-d’água ao início da tarde. A luz continuava ausente dos seus passos. Pousaram as mochilas. Permaneceram, por algum tempo, numa imobilidade silenciosa. Como se, por algum motivo, qualquer som constituísse um sacrilégio. Foi Luís quem rompeu o estatismo. Avançou para aquela construção, redonda, cinzenta, completamente descontextualizada, como se ali tivesse aterrado, num prenúncio de outras vidas, mas, ao mesmo tempo, havia nela um clamor radical, inerente a qualquer fruto da terra. Luís contornou-a, enquanto os outros assistiam, algures entre o espanto e o herético. Bárbara compreendeu, instintivamente, o círculo de Luís. Não foi um assomo de coragem. Muito pelo contrário, foi uma declaração de medo. Medo talvez não seja o mais correcto. Tratava-se, digamos, de uma inibição respeitosa. Assim que avançou, ele deparou-se com a abertura da edificação, e, por não lhe ser permitido recuar – o ancestral orgulho masculino, sempre! –, optou, sagazmente, por contorná-la. Por fim, os outros avançaram. Uma muda exclamação irradiava dos seus rostos: Então, é isto! Como se esta conclusão encerrasse o seu declarado desapontamento. Mas, simultaneamente, havia um desconforto sentido, mas nunca verbalizado. Como se aquela mãe-d’água correspondesse a uma anciã, que os olhava com desdém, por pressentir questões acerca das armadilhas da vida, que responderia numa mudez obstinada. Foi Bárbara quem ousou, em primeiro lugar, perscrutar os ecos sombrios da construção. Avançou decidida, em direcção ao desconhecido de pedra. Majestosa. De certa forma, arrogante. Como se obedecesse a um inaudível chamamento. Mas, ao mesmo tempo, havia na sua decisão e no seu passo uma naturalidade tal, que parecia uma encenação previamente estabelecida. Apenas trevas e um ténue canto de uma linha de água. E um gotejar omnipresente, que apenas evocava tempo e memórias. Aberto o caminho, outros seguiram-se. Regressaram, para junto das mochilas, numa perturbação controlada. A juventude, talvez pela frescura dos juízos, intui, com celeridade, os paradoxos da realidade. Como pode, um lugar de nascença, acolher nos seus braços um múltiplo fim? Pode, uma mãe, simultaneamente, ser princípio e fim?

O mito é o respirar do sentido. Estas verdades ainda não lhes eram tangíveis. Mas Luís, ao aperceber-se da desilusão generalizada, recuperou o mito: e, assim, o local começou a transfigurar-se a seus olhos. Por outras palavras: a realidade passava a ser vista pela lente do mito: fértil em cor e ruído…

L.- Dizem que tudo sucedeu de noite. Trouxe para aqui os corpos e…

S.- Chega! Não precisas de explicar mais nada.

L.- É só para que percebam. Como deves calcular, não pretendo assustar ninguém! Só me estou a cingir aos factos.

B.- Não sei se é por conhecer a história, mas este lugar tem qualquer coisa. Já repararam, é que nem se ouve um pássaro. E esta construção… Já viram a data? 1910. (O ano era irrelevante. Bárbara sabia-o. Para eles, aquela construção tinha a idade do mundo.)

T.- Sim, tens razão. Está visto. Regressemos.

B.- Eu acho que ele matou por amor.

S.- A família toda?!

B.- É difícil explicar. Mas, de certa forma, compreendo-o. Ele foi vencido pela solidão e…

S.- Ouve, acho que te estás a passar com esta história toda. Para mim, chega! Vou-me embora, e é já.

B.- Eles não se deviam falar muito: pai, mãe e filhos… Algo de irreversível ter-se-á instalado. E vencera-os. O silêncio, por vezes, é um insaciável devorador de palavras. Acho que, para ele, foi como se os protegesse. Ele devia ser muito sofrido. E tu, Sara, sempre com juízos mais rápidos que a língua! Bom, mas nunca o irias compreender…

S.- Talvez se tu, inteligência, o explicasses, eu tivesse alguma possibilidade.

B.- (Desta vez, Bárbara já não respondeu. Sempre a distância. O seu olhar, que elucidava fim de diálogo, recaiu na mãe-d’água e nas árvores circundantes.)

T. e S.- (Pegaram nas mochilas e afastaram-se ligeiramente, numa expectativa de partida. Era Tiago quem refreava as ânsias de regresso a Sara. Sempre a diplomacia! Embora, interiormente, se visse, já dentro do seu carro, apenas com Sara. Mas o exterior é um tirano inclemente.)

L.- (Luís perdia-se em Bárbara. Como se aquele lugar aguardasse, desde sempre, por ela. Como se ela conhecesse cada sombra daquela estranha história. Como se, a seus olhos, se purificasse um pouco a sordidez dos acontecimentos. No fundo, parecia um lugar carente de compreensão. E só um habitante da solidão, seria capaz de tal gesto.)

Ainda demorou algum tempo, mas, por fim, regressaram…

 

 

Regressar

 


XXIX

 

Li uma vez, já não me lembro onde, que para fazermos Deus rir devemos contar-lhe os nossos planos. Mas, naquele tempo, nós éramos os próprios deuses. E ríamos bem alto… Até que os risos se tornaram um eco longínquo. Até o tempo o silenciar por completo. Até que, por fim, nos alimentamos de memórias do que fomos para nos esquecermos daquilo em que nos tornámos. Porque só olha para o passado quem sente o desconforto do presente.

Do regresso, apenas guardo vagas impressões de silêncio e incómodo. E a neblina que caiu dos picos, pintada de ocaso, no último entardecer. Como se velasse os pecados da terra. Ainda hoje retenho a sua textura, o seu odor. Foi-nos impossível prosseguir. Pernoitámos por ali. E compreendemos que, entre nós, já não havia laços. Tudo se diluíra. Como se, cada casal, naquele curto espaço de tempo, tivesse construído o seu próprio mundo. Com linguagem, regras, valores, distintos… Apenas Sara pisara as duas realidades. Mas, no fim, optara pela segurança da familiaridade. Talvez por saber com o que contar…

Sim, ainda se parou na praia. Talvez para respirar. Eu e Bárbara afastámo-nos, num desamparo de incerteza. Por fim, cedemos à fadiga enquanto o nosso olhar repousava no horizonte. Na minha memória, só ecoa o final…

 L.- Acabámos por não chegar onde queríamos…

B.- Enganas-te, Luís. Só chegamos onde podemos.

L.- Pareces uma velha a falar.

B.- E sinto-me uma, acredita… (Nisto, Bárbara vira-se para Luís e beija-o na face, enquanto lhe dá a mão sob a areia.) Obrigado…


XXX

 Do passado regressa sempre connosco um passageiro indesejado: a melancolia. E somos vazio… Foi assim, num arrastar sofrível de pés, que entrei no banco. Aí chegado, iniciei um jogo, que disputo há muito, mas onde nunca pedi para entrar; ao certo, não sei como acaba; mas há jogadores que vão sendo desqualificados; as regras são, mais ou menos, estas: ver quem se arranja melhor, quem se ri mais, quem aguenta mais humilhações, quem está disposto a regressar a casa mais tarde, quem não se importa de juntar cada vez menos moedas… É, de facto, um jogo estranho. Ainda hoje, não percebo o porquê de o disputar. E, pasme-se, ainda não o perdi…

A meio da manhã, as filas do costume, e, de novo, rostos crispados, ansiosos, suplicantes… A maioria das imagens uma perfeita antítese dos famintos pecúlios. Como trapezistas entre o palco do mundo e as misérias pessoais. E, de dia para dia, cada vez mais candidatos ao céu dos circos… A hora de almoço é uma corrida até ao balcão do café mais próximo, uma sopa sorvida entre alguns encontrões, raramente seguidos de um singelo desculpe, uma sandes de ovo e salsicha a contemplar o calcorreado passeio, vultos num contínuo movimento, em direcções opostas, mas, de alguma forma, aquele movimento ajuda-me a engolir a indigesta sandes, talvez por me recordar a urgência de destino…

A tarde é sempre mais vagarosa que a manhã. Nunca percebi o porquê. Passou numa lentidão de sombras espreguiçantes. Fechadas as portas, ouvem-se as piadas agrestes dos colegas, algumas recebidas numa indulgência olímpica, tal a sua exaustão, confidências masculinas, de fins-de-semana estrepitantes, que são, no fundo, ruínas de ilusões para ocultar lares cambaleantes, por divórcios, fadiga e desencanto.

Durante a reunião, no final do dia – sempre me questionei acerca da intimidade entre reuniões e finais de dia –, remeti-me ao silêncio, primeiro passo para a divagação… Pensei em Tiago… E Sara. Acabaram por casar. Era previsível. Sempre os limitados horizontes suburbanos a acompanhá-los. Ouvi dizer, que vão para o quinto filho. Nunca imaginei, aquela palerma mimada, a cumprir abnegadamente as funções da natureza. Parece que se converteram em papa-hóstias. Não sei o que os influenciou. Talvez a necessidade de uma pousada, onde reclinar a cabeça, no meio da odisseia das dúvidas. E, convenhamos, no reino da batina e da estola a diplomacia é um excelente cartão-de-visita. Nunca mais nos falámos. E, ainda hoje, não sei bem porquê. 

Enfrento, agora, a fila do regresso. Ainda mais lenta. Ainda mais cansada. Nem dei pela passagem da reunião. Mas sei que a vivi. As marcas ficam. Ficam sempre: um contínuo subtrair de entusiasmo. O seu equivalente traduz-se na crescente compreensão dos velhos, que ruminam incessantemente, com as suas bocas desertas, sonhos inconclusivos. Seduzimo-nos por brindar ao que foi, e esquecemo-nos de brindar ao que poderia ter sido. Hoje, neste regresso a casa, uma vez mais na auto-estrada da monotonia, vejo, à minha direita, a serra que se oculta na névoa do entardecer, e, à minha esquerda, o mar de sempre. Nasce, em mim, o desejo de um rosto pintado de promessa.                                                                                                                                             

Pedro de Sá 

(30/03/11)


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