Entra no carro, coloca a chave,
acende-se aquela multiplicidade de luzes, de seguida, o motor audível ao mesmo
tempo que um tremor percorre a viatura, antes das mudanças, olha aquela janela
com que se tem vindo a familiarizar (desde há quanto?), nisto, uma mão em
acenos e ele em sorrisos, afasta-se numa marcha lenta que transparece a sua
contrariedade, isto só sucede quando a vontade entra em asfixia, a mão, na
janela, ainda em acenos, ele a retribuir com os faróis enquanto se afasta,
àquela hora já poucos carros, a noite há muito que se instalara, liga o rádio
num intervalo de mudanças, mas não ouve a música, apenas a voz de si que lhe
repete, até à exaustão, a mesma pergunta, os candeeiros, na berma da estrada,
repetem-se numa cadência sem amanhã, como se a noite fosse o destino do mundo,
sabe que ela ainda estará acordada, sim, nunca adormece sem ele chegar, a
última desculpa para entrar a estas horas começa a estar fora de prazo,
primeiro foi o trabalho, ultimamente o desporto por causa da coluna, mas nenhum
clube fecha tão tarde, e ele sem resquícios de suor, a verdade, entre eles,
suspensa nos gritos abafados dos olhares, os movimentos tornam-se pesados, por
uma culpa jamais verbalizada, talvez a pior, por fim, deita-se, ela a seu lado,
mas um cenário de omoplatas, contudo, sabe-a acordada, talvez o ajude a suster
uma questão maior que ele, sim, é possível, no quarto ao lado, na distância
segura do continente infância, dormem as duas filhas, também elas, sem o
saberem, neste horizonte de insónias, quantas vezes, ainda nós na manhã do
mundo e já na noite do pensar dos nossos, de facto, há ocasiões em que a
ignorância é uma sombra reconfortante de Verão, quis dizer-lhe qualquer coisa,
palavra de honra que quis, não chegou a entreabrir os lábios, porque a ideia
não encontrou o som da palavra, talvez pelo horizonte de omoplatas, talvez pela
respiração das filhas no quarto ao lado, talvez por ele mesmo, afinal, a
dignidade ainda não caíra, e, todos sabem, que cada vez se trabalha mais para
se ser menos, sempre sofreu da coluna, a almofada sempre foi a melhor
conselheira, antes de se abandonar ao sempre caprichoso leme do sono, uma mão
em acenos perpassa-lhe o pensar, conheceu-a há uns meses, ela sempre com uma
atenção deferente, ele a apreciar a aurora de uma qualquer coisa, como uma
porta que se entreabre e compreende-se-lhe, naquela possibilidade, uma outra
existência, nisto, as omoplatas cedem lugar a um rosto já adormecido, ele, por
uns momentos, a caminhar por aquelas feições há tanto conhecidas, como quem passeia
pelo seu bairro, no entanto, não sorri, uma vez mais, nele, uma mão em acenos,
subitamente, o rosto adormecido, as filhas no quarto ao lado, o próprio
apartamento, de três assoalhadas, pago, todos os meses, esmeradamente, tudo se
dilui à vista daquele aceno encantatório, ele a compreender a exiguidade do seu
existir, embora, às vezes, o isto que é tão pouco, seja, no fundo, o tanto, os
dias que se sucedem numa monotonia de frases, gestos, e percursos, nem
vislumbres de uma qualquer porta que se entreabra e, aí, se lhe compreenda,
naquela possibilidade, uma outra existência, na caixa-de-correio, com aquela
fechadura de aparência demasiado frágil, mas que se obstina em resistir às
tentativas de abertura, apenas envelopes que anunciam futuras subtracções àquilo
que quase desconhece a soma, nem vislumbres de acenos, muito menos de encanto,
apenas frias subtracções àquilo que já tão pouco é, sabe que terá de partir,
decidiu esta noite, sob a luz daquela janela com que se tem vindo a
familiarizar (desde há quanto?), antes do carro, de colocar a chave, e da
multiplicidade de luzes, após a decisão, uma mão sensibilizada pousou-lhe no
rosto, ali, naquele instante, tudo tão longe, as omoplatas mudas, as filhas no
quarto ao lado, a mensalidade, paga com esmero, todos os meses, ao banco, a
caixa-de-correio, com aquela fechadura de aparência demasiado frágil, mas que
se obstina em resistir às tentativas de abertura, contendo apenas envelopes que
anunciam futuras subtracções àquilo que quase desconhece a soma, tudo à distância
de uma outra vida (quantas vidas cabem numa existência?), é possível que o
encanto resida na aurora de uma qualquer coisa, e numa porta que se entreabre,
sim, a almofada sempre foi a melhor conselheira, e, porventura, o sempre
caprichoso leme do sono, esta noite, o leve a um lugar onde o isto que é tão
pouco, seja, no fundo, o tanto. Talvez não seja um lugar assim tão longe…
Livros do Escritor
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
A dolorosa sombra de uma ave
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