Livros do Escritor

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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A dolorosa sombra de uma ave


 

Entra no carro, coloca a chave, acende-se aquela multiplicidade de luzes, de seguida, o motor audível ao mesmo tempo que um tremor percorre a viatura, antes das mudanças, olha aquela janela com que se tem vindo a familiarizar (desde há quanto?), nisto, uma mão em acenos e ele em sorrisos, afasta-se numa marcha lenta que transparece a sua contrariedade, isto só sucede quando a vontade entra em asfixia, a mão, na janela, ainda em acenos, ele a retribuir com os faróis enquanto se afasta, àquela hora já poucos carros, a noite há muito que se instalara, liga o rádio num intervalo de mudanças, mas não ouve a música, apenas a voz de si que lhe repete, até à exaustão, a mesma pergunta, os candeeiros, na berma da estrada, repetem-se numa cadência sem amanhã, como se a noite fosse o destino do mundo, sabe que ela ainda estará acordada, sim, nunca adormece sem ele chegar, a última desculpa para entrar a estas horas começa a estar fora de prazo, primeiro foi o trabalho, ultimamente o desporto por causa da coluna, mas nenhum clube fecha tão tarde, e ele sem resquícios de suor, a verdade, entre eles, suspensa nos gritos abafados dos olhares, os movimentos tornam-se pesados, por uma culpa jamais verbalizada, talvez a pior, por fim, deita-se, ela a seu lado, mas um cenário de omoplatas, contudo, sabe-a acordada, talvez o ajude a suster uma questão maior que ele, sim, é possível, no quarto ao lado, na distância segura do continente infância, dormem as duas filhas, também elas, sem o saberem, neste horizonte de insónias, quantas vezes, ainda nós na manhã do mundo e já na noite do pensar dos nossos, de facto, há ocasiões em que a ignorância é uma sombra reconfortante de Verão, quis dizer-lhe qualquer coisa, palavra de honra que quis, não chegou a entreabrir os lábios, porque a ideia não encontrou o som da palavra, talvez pelo horizonte de omoplatas, talvez pela respiração das filhas no quarto ao lado, talvez por ele mesmo, afinal, a dignidade ainda não caíra, e, todos sabem, que cada vez se trabalha mais para se ser menos, sempre sofreu da coluna, a almofada sempre foi a melhor conselheira, antes de se abandonar ao sempre caprichoso leme do sono, uma mão em acenos perpassa-lhe o pensar, conheceu-a há uns meses, ela sempre com uma atenção deferente, ele a apreciar a aurora de uma qualquer coisa, como uma porta que se entreabre e compreende-se-lhe, naquela possibilidade, uma outra existência, nisto, as omoplatas cedem lugar a um rosto já adormecido, ele, por uns momentos, a caminhar por aquelas feições há tanto conhecidas, como quem passeia pelo seu bairro, no entanto, não sorri, uma vez mais, nele, uma mão em acenos, subitamente, o rosto adormecido, as filhas no quarto ao lado, o próprio apartamento, de três assoalhadas, pago, todos os meses, esmeradamente, tudo se dilui à vista daquele aceno encantatório, ele a compreender a exiguidade do seu existir, embora, às vezes, o isto que é tão pouco, seja, no fundo, o tanto, os dias que se sucedem numa monotonia de frases, gestos, e percursos, nem vislumbres de uma qualquer porta que se entreabra e, aí, se lhe compreenda, naquela possibilidade, uma outra existência, na caixa-de-correio, com aquela fechadura de aparência demasiado frágil, mas que se obstina em resistir às tentativas de abertura, apenas envelopes que anunciam futuras subtracções àquilo que quase desconhece a soma, nem vislumbres de acenos, muito menos de encanto, apenas frias subtracções àquilo que já tão pouco é, sabe que terá de partir, decidiu esta noite, sob a luz daquela janela com que se tem vindo a familiarizar (desde há quanto?), antes do carro, de colocar a chave, e da multiplicidade de luzes, após a decisão, uma mão sensibilizada pousou-lhe no rosto, ali, naquele instante, tudo tão longe, as omoplatas mudas, as filhas no quarto ao lado, a mensalidade, paga com esmero, todos os meses, ao banco, a caixa-de-correio, com aquela fechadura de aparência demasiado frágil, mas que se obstina em resistir às tentativas de abertura, contendo apenas envelopes que anunciam futuras subtracções àquilo que quase desconhece a soma, tudo à distância de uma outra vida (quantas vidas cabem numa existência?), é possível que o encanto resida na aurora de uma qualquer coisa, e numa porta que se entreabre, sim, a almofada sempre foi a melhor conselheira, e, porventura, o sempre caprichoso leme do sono, esta noite, o leve a um lugar onde o isto que é tão pouco, seja, no fundo, o tanto. Talvez não seja um lugar assim tão longe…   

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