Livros do Escritor

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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Um definitivo adeus

 



Quantas vezes o passado visita o presente? Esta questão ainda estava longe de mim, quando decidi entrar naquela loja. Não sei bem porquê, nem sequer precisava de qualquer produto dali, mas já tinha almoçado, faltava uma meia hora para entrar (como é estranho, quando dispomos de tempo, não sabemos o que lhe fazer…), perdia-me com qualquer coisa, não me lembro o quê, tal a sua importância, de súbito, num incessante vai e vem de vultos, um rosto, algo me levantou o olhar, sempre me espantou esta mão invisível que nos pousa a atenção naquilo que ainda grita em nós, os incessantes vultos a turvarem-me a visão, contorno a prateleira, o rosto, agora, imóvel, qualquer coisa na mão, nisto, duas crianças correm na sua direcção, também seguram objectos, deixo-me estar, também sob o pretexto de um objecto e da sua análise, ela acolhe, como só uma mãe pode fazer, a corrida das crianças, gesticulam pela atenção materna, eu, afinal, não me perdia com objectos e pretextos, mas sim com a indulgência desenhada numa face, nisto, uma mão percorre-lhe o braço, percebi que um gesto não cansado, mas seguro pela familiaridade, um incómodo despertou-me algures, os olhos dela saúdam o gesto recente, se me perguntassem, neste momento, que objecto tenho na mão, não saberia que responder, é compreensível, há muito que me abandonei ali para caminhar entre aqueles quatro seres, ele não é muito alto, talvez tenha a mesma estatura que ela, revela uma fisionomia de sofá, um rosto nutrido a ecrãs e cigarros, curioso, imaginava-a com uma antítese, as crianças rodeiam-no com a sua espontaneidade inata, ele em gestos vagarosos, como se o ontem da infância fosse um bolso vazio, nesta altura, eu já era compaixão por aquela figura apenas do hoje, ela deteve-lhe a atenção por ali, ele numa solicitude demasiada, como se não contivesse uma gaveta para a reflexão, parecia desconhecer que nos definimos não pelo que fazemos aos olhos dos outros, mas perante os nossos, continuei a acompanhar-lhes os passos, procurava nela um vestígio de mim, se bem que de há muito, esforcei-me, nada, até nos gestos, ela uma outra, o pensar sempre a sobrepor-se ao movimento, não bem o pensar, antes o que é expectável, um pouco isso, parece que temos uma dívida inextinguível com o mundo, talvez pela existência, daí o papel que nos é imposto, e a exigência que o cumpramos na perfeição, há muito que eu virara costas a dívidas e papéis, certo dia, encontrei uma bússola num bolso de mim, por várias vezes, muita gente tentou-me oferecê-las, umas até muito bonitas, sempre declinei, aquela, que encontrei num bolso de mim, sempre me indicou as direcções necessárias a cada momento do existir, pelo que percebo, ela aceitou, a dado momento, uma dessas bússolas muito bonitas, que vêm em lindos embrulhos, talvez, por isso, a minha dificuldade em encontrar vestígios de mim, começam a encaminhar-se para a saída, por momentos, os nossos olhares tocam-se sem, no entanto, nos reconhecermos, isto só acontece quando nem vestígios restam para uma arqueologia dos sentimentos, enquanto ele paga, ela orienta crianças e casacos, nunca lhe divisei estes gestos, tantas vezes, naquelas longas tardes de suspiros e murmúrios, ela desenhou-me um amanhã distinto (quantos amanhãs por cumprir suporta um coração?), sem descendência, falava de tempo, parecia, não sei bem porquê, que receava perdê-lo, para agora, aos meus olhos, caminhar ao lado de uma antítese, baixar-se, por duas vezes, para abotoar casacos, eu, sem compras, sem ter de me baixar, quanto mais por duas vezes,  para abotoar casacos, saio antes deles, disponho de uns escassos minutos para regressar, atravesso a rua, um vento frio relembra-me o calendário, levo instintivamente as mãos aos bolsos, talvez, por isso, algo me dite a direcção do olhar, viro-me para trás, estão, neste momento, a sair da loja, ela à frente, depois os miúdos, por fim, ele, com dois sacos, da compaixão inicial derivei para uma certa simpatia por aquela figura, é bem possível que até viesse a gostar dele, ela também leva as mãos aos bolsos, fico a vê-los, por uns segundos, caminharem na direcção oposta, antes de me virar, palavra de honra, pareceu-me ouvir suspiros e murmúrios, talvez alguém tenha revisitado uma gaveta de si, onde guarde os desenhos do amanhã.

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