Livros do Escritor

Livros do Escritor

sábado, 30 de dezembro de 2017






Pedro de Sá



HARMONIA






                      … não choreis por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos…
                                                  Lucas 23, 27-31

Sede prudentes como serpentes e inocentes como pombas.

                                                   Mateus 10:16





ÍNDICE



A página em branco………………………………………..5

A Ideia………………………………………………………50

A Escrita………………………………………….…………100





A página em branco




Se me perguntassem como ali cheguei, não saberia o que responder, afinal, tudo começou há muito. Mas, agora, ali na rua, sob aquele inclemente sol de Agosto, a tarde no seu auge, não havia tempo para considerações acerca da génese deste meu destino. Toquei à campainha, nem hesitei, o trinco da porta demorou o necessário a abrir-se, entrei, aproveitei para respirar fundo e fruir da frescura da entrada forrada a mármores, sempre apreciei a frescura das entradas dos prédios antigos, por vezes, reflectia se, com os tempos, não desaprendêramos de fazer as coisas… Subi a escada até ao primeiro-andar, enquanto ouvia uma porta a abrir-se, aí chegado, deparei-me com uma mulher, de estatura média, era agradável à vista, tinha uma beleza dissonante dos seus gestos e voz, como se um corpo que merecesse outra alma (quantas vezes tal sucede?), teria mais uns dois ou três anos que eu, sempre fui péssimo a estimar idades, porém, desta vez acho que acertara, até porque, de certa forma, estava contextualizado, cumprimentámo-nos, ela Chegou um pouco antes da hora. Não olhei para o relógio, achei que seria uma manifestação de fraqueza, optei por um sorriso, sempre a melhor forma de ocultar sentires e pensares, estendi-lhe a mão, ela retribuiu, cumprimentámo-nos, convidou-me para entrar, conduziu-me para a sala, enquanto Bom, depois do seu telefonema, confesso que dei voltas ao assunto, e não sei bem o que quer de mim… Afinal, não o conheci assim tão bem. Apontou-me para um cadeirão, sentei-me, ela sentou-se, num sofá barato, bem à minha frente, porém, lá prevaleceu um resquício de educação Desculpe, nem lhe perguntei se toma alguma coisa… Quer um café? Não sei porquê, mas nunca tive forças para recusar um café, aceitei, sinceramente, acho que ela esperava o contrário. Levantou-se, enquanto isso, olhei à minha volta, percebia-se que se tratava de um apartamentozito alugado, talvez com uma renda inversamente proporcional ao espaço disponibilizado, mobiliário só o necessário, como é natural nestes infelizes tempos de inconstância, além desta salita onde estávamos, pelas portas que vi, poucas mais divisões deveria ter, regressou com o café, vestia uma roupa de desporto, coçada em vários pontos, as cores esbatidas, uns ténis, apesar de serem de uma marca em voga, não me escapou que fossem o modelo mais básico, o que conferia ao quadro uma nota desagradável, pois, a tal ideia de dissonância, a sua dicção era sofrível e o esforço pelo verbo faziam-na salivar, felizmente ainda estava a alguma distância e eu não uso óculos, mas, assim que se silenciava, de novo, como se por milagre, diante de mim, aquela beleza de há pouco, discreta, é certo, mas tão longínqua daqueles gestos, salivares, roupas coçadas, enfim, houve outro pormenor que não me escapou, desde que ali entrei, não vi um único livro! Sempre achei que uma casa sem livros é um homem sem ideias. Como pôde ele relacionar-se com uma mulher assim? A minha curiosidade aumentava, de facto, ela evidenciava outros atributos, talvez fosse por aí… Como estava a dizer, estendeu-me a chávena e sentou-se no sofá barato, bem à minha frente, não percebo bem o que quer de mim. Já agora, é da família dele? Reparei que o salivar se adensava à medida que ela procurava acelerar o discurso, talvez houvesse também alguma nervoseira à mistura, procurei tranquilizá-la pausando as palavras, Não. Nada disso. Estou a recolher dados para um trabalho académico. Sabe, todos os seus livros são puramente autobiográficos. É esta a minha convicção e quero demonstrá-lo. Acredito que cada linha que escreveu corresponde a um instante vivido. E, como é natural, tenho esperança de encontrar resposta para a sua decisão… Percebe, não é? O que o levou a… Neste ponto, percebi-lhe algum desconforto, remexeu-se, por mais que uma vez, no sofá, Pois, compreendo, mas insisto: não sei como ajudá-lo. Saímos juntos algumas vezes. Nada mais… Compreendi que tinha de me socorrer rapidamente de uma questão, a seiva do diálogo, O que sentiu quando soube da sua morte? A mudança tão repentina, na geografia da conversa, deixou-a perplexa, demorou o seu tempo a recompor-se, Bom, foi terrível, não acha? E naquelas circunstâncias… Não estava nada à espera! Foi um amigo comum que me contou. É curioso, agora que falo nisto, uma parte de mim não ficou surpreendida. Ele falava recorrentemente da morte. Eu até lhe dizia para afastar tais pensamentos. Mas parecia uma obsessão. Começava a achar que, afinal, não tinha perdido o meu tempo! Recostei-me no cadeirão, acho que este gesto a incentivou à palavra, pareceu-me que também ela precisava de reorganizar este acontecimento em si, Certa tarde, estávamos num café, ele andava inquieto, isto sucedia quando não tinha matéria para a escrita, este ponto, claro, não me passou despercebido, se ela, há pouco, afirmou não o conhecer assim tão bem, como é possível saber a génese da sua inquietude? Optei pelo silêncio e deixei-a prosseguir, Começava a perguntar-me pelos meus pais, irmã, se nos dávamos bem, a minha infância, amores passados, eu respondia-lhe, claro, mas, ao mesmo tempo, percebia-lhe esta inclinação vampiresca, afinal, ele precisava de temáticas para escrever, agora que me lembro disto, sabe que chegou a escrever sobre mim e um antigo namorado? Mandou-me o texto e perguntou se correspondia, li-o, mas confesso-lhe a minha dificuldade com aquela prosa, não sei porquê, parecia-me que ele escrevia ao contrário do suceder das coisas. Como hei-de dizer? Parecia que estava a assistir ao desenrolar da história, mas sob um outro ponto de vista, ou mesmo de vários pontos de vista, na altura, optei por discordar da sua descrição demasiado suburbana da casa dos meus pais, ele refugiou-se, de imediato, na liberdade criativa. Anuí, claro está, para disfarçar o meu desconforto com o rótulo de suburbanos. Neste ponto, quase não disfarcei um sorriso, relanceei, uma vez mais, a roupa de desporto, coçada em vários pontos, com as cores esbatidas, e o modelo básico dos ténis, a dicção, como é óbvio, só servia para coroar o quadro geral, porém, uma questão impunha-se Mas achava-o elitista? Acho que ficou, de novo, surpreendida com a minha frontalidade, Elitista? Bom, como hei-de dizer? Sabe, quando li aquele texto sobre mim e um antigo namorado, no fundo, foi a única coisa que li dele, não sou muito de leituras, então, literatura, não tenho mesmo paciência! Gosto de coisas mais práticas, mais palpáveis, mas voltando àquele texto, ele pegou na história que lhe contei e trabalhou-a como quis, não o reconheci naquelas linhas. Se me dissessem que tinha sido escrito por um desconhecido, eu acreditava, porque o texto era muito sério, muito erudito, bom, eu sabia que ele tinha todas essas qualidades, porém, no dia-a-dia, não era nada assim, acho, inclusive, que o procurava disfarçar, talvez para não se distanciar em demasia de nós... Por outro lado, às vezes, roçava a extrema má educação e chegava a ser agressivo, no trânsito, então, nem lhe digo nada… Agora, elitista, não creio que fosse. Bom, era um bocado snobe, quer dizer, tinha os seus momentos, sobretudo, lá está, quando tinha de demonstrar a sua erudição, no entanto, quando a coisa virava, parecia que estávamos diante de um autêntico cavador. Não me escapou um pormenor, resolvi jogar um trunfo na mesa, Falou-me há pouco do trânsito. Afinal, pressuponho que saíram várias vezes, certo? Como sempre sucede nestas situações, percebo-lhe desconforto pelo desvelar da mentira, Sim, tem razão. Mas não é meu costume falar da minha vida a estranhos, como deve imaginar. E, já agora, o senhor anda a investigar a vida privada dele ou a sua obra? Tentativa de inverter os papéis, um clássico, sorri-lhe de novo, neste momento, acho que ela estava mais ansiosa por falar do que eu por ouvi-la, não me pareceu que fosse adiantar muito ao que já sabia, contudo, deixei-a prosseguir, Ao contrário do que possa julgar, eu também tenho faculdade, e muito antes de si. Noutra área, é certo, daí a minha distância das letras. Não pude reter a imagem daquela dicção, diante de um auditório, a dissertar sobre a mais singela temática. Dei o meu melhor para liquidar, de imediato, a gargalhada que me nascia. Consegui restabelecer-me, assumi uma expressão de interesse pelas suas palavras, enquanto anuía com insistência, para que ela levantasse o passado, Corremos vários cafés e esplanadas. Quase sempre junto a praias. Percebia-se que ele amava o mar. Acho que o tranquilizava (...)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Pouso Feliz


Apercebi-me de que trazia maresia comigo, assim que entro, dela só as costas, nem vestígios do rosto, àquela hora ocupava-se do jantar, enquanto os miúdos algures perdidos por algum écran, nem se apercebeu da minha entrada ou preferiu olhar noutra direcção, quedei-me pela dúvida, se bem que não por muito tempo, afinal, trazia maresia comigo, pouso a chave de forma audível, o suficiente que a fizesse olhar-me, ainda assim, ela não descurou a sua actividade, permaneceu de costas, por momentos, pensei que sentisse a maresia que trazia comigo...

domingo, 10 de dezembro de 2017

A dificílima arte desta coisa de nome viver



E, de repente, compreendo que já percorri mais de metade do meu caminho. Resolvo sentar-me e reflectir nisto. Olho para trás e tudo se me afigura uma irrealidade, como se uma névoa turvasse a minha estadia por aqueles lugares, apenas as cicatrizes como testemunho da autenticidade do ido. Tão estranho: já percorri mais de metade do meu caminho… E continuo à procura de uma razão para caminhar, como se, em grande parte, me tivesse deixado conduzir, ao sabor de uma corrente de velada fonte, por vezes, vislumbro um sentido para as coisas, contudo, logo de seguida desvanece-se do meu horizonte, no seu lugar apenas um desdenhoso absurdo, que me atomiza de encontro aos meus mais turvos receios...

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017


"Entretanto, descera um silêncio de adeus no parque. Começou, também, a mover harmonia sob as águas, ao mesmo tempo que olhava as impressões do movimento. As impressões nascidas de si. Cada vez menos gente no parque. As janelas, dali avistadas, iluminavam-se. Olhou ainda as águas. E o crescente silêncio do carrinho. Já era tarde. Estava na hora de voltar. Levantou-se. Inicia um regresso vazio. Estava a ficar fresco, pensou. É melhor estugar o passo. Não vá o bebé acordar. Mas ainda a fonte. Detém-se num último olhar. A rapariga… Onde? Sim, é isso, onde nos perdemos? A mão no ventre, o olhar nas águas, e a incompreensão do silêncio."
in A alma reflecte-se num espelho d´água

domingo, 3 de dezembro de 2017



"... volvida hora e meia, o estacionamento de terra, a distribuição dos sacos, a mãe à frente, a brancura publicitava ainda mais o efeito gelatina, seguia-se o pai, o azul-choque da tanga a contrastar com a alvura descarnada dos membros inferiores, o irmão aos saltos com a bola e mais qualquer coisa, a uns quantos passos atrás, a irmã, sempre nas faldas deste quadro, a olhar como se de uma janela, demoraram o seu tempo a instalar-se, após o guarda-sol, as toalhas, abrir as cadeiras, ligar o rádio, pô-lo audível em relação às ondas, fechar os sacos onde havia comida por causa da areia, ele deliciado a pôr protector nas costas da mulher, ela nem precisou de o verbalizar, já a aguardava de frasco na mão, o filho entretinha-se a jogar raquetas com um vizinho de um guarda-sol próximo, só a rapariga da janela se encaminhou para a água, assim que uma onda lhe cobriu os pés, respirou fundo, avançou mais uns passos, achou curioso, o único som advinha das águas, olhou para trás, parecia tudo  tão longe…"
in "Um dia de praia"

sábado, 25 de novembro de 2017

A arqueologia de mim



Ultimamente uma questão acompanha a minha sombra: o que perdurará de mim quando partir? Volto do trabalho, ainda na escada, percebo que a casa cheira a jantar, entro, cumprimento-a enquanto tiro o casaco, começa, de imediato, a narrar-me as vicissitudes do seu dia, as peripécias do bairro, finjo atenção e simultaneamente dirijo-me para a janela, acompanha-me os passos e preenche-me os ouvidos até a um certo ponto, mais ou menos até à mesa da televisão, que demarca a sala da marquise, aí chegados, não sei porquê, regressa de imediato para as suas lides, enquanto eu, grato pela devolução do silêncio, puxo de um cigarro e por ali fico, não a olhar este cenário extenuado, mas à espera dos passos do pensar, nestes últimos tempos têm-me levado a um lugar lá atrás, quando o agora apenas um sorriso confiante no rosto, talvez se lá regressar volte a ostentar um sorriso confiante no rosto...

quinta-feira, 16 de novembro de 2017


"... por ali andavam muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, vencia um monte, naquele cume pensei repousar, mas, ali  chegado, só encontrei a sombra de um outro ainda mais alto, logo iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas meu..."

in "Não te esqueças de trazer um sonho contigo"

terça-feira, 7 de novembro de 2017


"Numa noite ida de província, em vez de pratos, talheres, copos, a mesa povoou-se de cor. Era uma mesa de madeira enegrecida. Talvez pela vizinhança com o lume. Comprida. Mas, nessa noite, era o coração do mundo. A noite estava fria. As mãos estendiam-se para a lareira, enquanto os olhos, ávidos, percorriam o festival de cores sobre a mesa, que encerrava uma indizível promessa de alegria. Adultos cirandavam, numa indiferença inexplicável às cores, falavam e falavam, e ele, teria perto de oito anos, vislumbrava o abismo que o separava daquelas criaturas mais altas, algumas com a cabeça prateada, cheias de certezas, convicções… Tudo uma frágil aparência, porque só o olhar de uma criança apreende o véu desiludido que lhes turva o olhar.
 Sente-se na pele que esta é uma noite diferente das outras. Porquê? Sim, não se explica, sente-se. E quando as coisas enveredam pela via dos sentimentos, o verbo torna-se supérfluo, porque compreendemos no outro uma essência irmanada. Mas voltemos à criança. Aos oito anos. Ouve-se o sino. Um sino tem voz de alma. Todos se encaminham para a saída. A mãe veste-lhe o sobretudo. Saem para a noite. O frio arrefece as conversas, mas não o passo. Apesar da crescente distância em relação à mesa, às cores, à promessa de alegria, de mãos nos bolsos, segue os familiares, afinal, ainda havia uma obrigação a cumprir. Em algum lugar de si, sentia que a palavra obrigação era desajustada. Porque cada passo seu proclamava agradecimento. Recorda-se de, antes de entrar no templo, olhar o céu. Estava um céu de natal. Os seus pensamentos, nesse momento, oscilaram entre o menino Jesus e o Pai Natal. Gostava de ambos. Em ambos repousava também uma promessa de alegria. Embora de alegrias distintas. E começava a compreender isso. Porque só uma criança pobre, ornamentada de trapos, nascida sem tecto, era capaz de reunir uma aldeia aquela hora da noite. E o seu coração de oito anos acreditava que aquela não seria a única aldeia. "
in "Natal rima com criança"

quinta-feira, 2 de novembro de 2017



Até que, lentamente, começo a ver passado. Como se, cada acorde, correspondesse a uma pincelada de uma tela ainda por desvelar. Assisto à magia do alvor da memória, embalado pela melódica abertura deste sonhado Stairway to Heaven (da imortal banda inglesa). Há muito que não ouvia. Compreendo, com tristeza, que a felicidade é sempre retrospectiva. É sempre a estação deixada para trás. Toda a tristeza do mundo desenha-me no rosto a ténue linha de um sorriso compreensivo – aquele que provém do tempo.

Agora, sou um passageiro memória, e viajo à mercê do seu passo. E começo a sentir os odores, a cheirar as cores, e a rever as emoções daqueles dias, enquanto ascendo a azuis de outrora.
in Queria rever o teu rosto ao entardecer




terça-feira, 24 de outubro de 2017


"... a 27 de Maio de 1987, na capital da ópera, contra todas as previsões, desde uma arrogância boçal aos favores dos média, familiarizados com nomes e marcas, e com uma traumática experiência 3 anos antes, com uma inglória final perdida, fruto de mais um que teve o seu preço, assisti ao mais belo bailado sobre um tapete verde, digno da capital que acolheu tal espectáculo, só vi camisolas azuis e brancas, de listas verticais, por todo o lado, até que, já se entrara no último quarto de hora, após tantas bolas perdidas, o magnífico argelino faz o impensável, aqueles singulares momentos em que a realidade se suspende para ver no que dá… Nem um respirar se ouve… Nada! Para mim, por muito que busquem argumentos coxos e desajustados, só o futebol tem este condão, de suspender o respirar do mundo para se ver se uma bola entra, e, felizmente, naquela noite de Maio, a bola entrou, e de calcanhar! O bailado fundia-se com uma justiça poética, e, nesse momento, sabia que o meu Porto ia ganhar..."
in "Quando a magia decidiu partir"

domingo, 22 de outubro de 2017

Rua do Sol



Hoje vi-o, passeio fora, orgulhoso, com uma bicicleta pela mão, percebia-se-lhe o tempo, mas, ainda assim, apresentável, percebi, de imediato, o destinatário, a essa hora olharia o quadro, verde, diante de si, talvez com uma frase para decompor ou uma conta de multiplicar, uma mão suportava os sonhos que lhe enchiam o pensar, enquanto a outra (com um lápis? Uma caneta?) fingia interesse pelo que se passava no quadro, àquela hora (aproximava-se o regresso a qualquer coisa de nome lar) as escassas refeições do dia empurravam-no para um sono crescente, andava por aqui há pouco mais de meia dúzia de anos, porém, aprendera que o encolher do estômago é proporcional ao alargar dos sonhos, nisto uma frase estridente fá-lo regressar-se e estremecer Perceberam, meninos? Ele a formular uma surda questão para si Perceber o quê? Os sapatos que, de tão apertados, mal lhe permitiam caminhar, quanto mais correr atrás de uma bola (...)

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Os mortos não sonham


Sempre que aquela música na rádio, ele assumia um ar circunspecto, como se não a ouvisse, ou lhe fosse indiferente, porém, era precisamente esse véu de gravidade a denunciar-lhe os passos do sentir, isto sucedia com mais frequência no carro (afinal, em que outro lugar, do hoje, se ouve rádio?), nesses momentos, olhava a minha vida de uma qualquer janela, como se de uma ilusão se tratasse, tão estranho, ele ali, a meu lado, a conduzir a caminho de casa, e a canção, interminável, a povoar o silêncio que, de súbito, se abriu entre nós, enquanto os melosos acordes ecoavam, eu a olhar calçadas e transeuntes, como se tal me interessasse, logo eu que tão pouco reparava nos outros, e a canção, interminável, a certa altura, já nem posição tinha, de tanto me obrigar a olhar a janela do meu lado, nunca soube se ele se apercebia do meu esforço (pela janela), do meu súbito desconforto, do silêncio que a música nos legou, eu persistia a olhar, através do vidro, gentes, passeios, montras esconsas, creio, em verdade, que, assim que os acordes se repercutiam no interior silenciado do carro, ele desacelerava, como se quisesse eternizar o momento (...)

segunda-feira, 16 de outubro de 2017


"Porém, quando a noite entra na nossa vida, é quase impossível perceber quão fugaz é a sombra do dia. "

in "É preciso morrer para ser visto"

domingo, 15 de outubro de 2017


"Bem sei que ele queria um filho que nadasse como Johnny Weissmuller. Investi largas centenas de piscinas na satisfação do seu desejo. Acompanhou cada passo da evolução aquática. Creio que, neste aspecto, não o desiludi. Nos verões de praia, ainda hoje desconfio, que ele sustinha a respiração cada vez que me lançava à água, e bracejava com estrépito rumo à heroicidade, como se nele estivesse contida toda uma plateia cinematográfica ansiando pelos feitos do seu herói.
 Mas aconteceu-me algo que acontece a todos os filhos: cresci. E este fenómeno não se dissocia do refinamento do espírito crítico. E é aí que olhamos os nossos progenitores, do alto das nossas convicções inabaláveis próprias da então desconhecida efemeridade da juventude, e os desvelamos na radiografia das suas fraquezas e iniquidades. E então pensamos: como querem estes ensinar-nos algo? Eles próprios nada aprenderam. Hoje, já não penso assim. Hoje já não tenho convicções tão profundas. Hoje, de modo muito particular, sinto falta do seu sorriso de luz. Tinha uma forma única de conciliar tudo à volta do seu sorriso. E esta é uma qualidade muito rara."
in "Crónica ao Johnny Weissmuller"


domingo, 8 de outubro de 2017



"Noites de hospital, noites de gritos de uma dor só. Num momento de pausa, ela atravessa corredores de desespero, até à enfermaria onde ele se encontrava, uma desculpa profissional para se justificar por ali, mas ele ausente, a sua pausa a expirar, regressava quando o vê sair de um gabinete, num esforço patético de naturalidade, acompanhado de outra enfermeira, que se digladiava com uma chuva de cabelos para repor a touca, ela cola-se à parede do lado oposto do corredor, numa ânsia de invisibilidade, passa por eles, nada é dito, nem um cumprimento, de novo, uma questão cansada lhe surge A que sítio pertencemos?"

in "Do outro lado do rio, há uma margem"

terça-feira, 3 de outubro de 2017



"Sempre que me falam de cinema, é a cena final, deste maravilhoso filme, que me povoa, não sei porquê, ou talvez saiba, afinal, não há questões sem resposta, teria os meus doze anos quando, lá por casa, meu pai Tens de ver este filme! Ouvi-o e, de imediato, assenti, regra geral, sempre que meu pai (Tens de ver este filme!), acertava, neste caso, foi mais além…"


"Se algum dia me sentir só com as minhas convicções, sempre posso ligar a televisão, agarrar num certo dvd, ouvir o eco de uma voz (Tens de ver este filme!), e rever Shane, e quando, no final, assistir à sua partida, rumo às montanhas anoitecidas, resta-me acompanhar o miúdo no seu grito final: Adeus, Shane!"
in "Adeus, Shane"

terça-feira, 26 de setembro de 2017

quinta-feira, 21 de setembro de 2017


"E agora, minha filha? Sei que tiveste de ser sedada já por duas vezes. Dizem que, por vezes, acontece. Não te preocupes, ainda não há falatório. Ele, lá fora sentado, só está preocupado contigo. Agora, a mim preocupa-me o inocente que ainda nem a mãe conhece. Vais alimentá-lo enquanto conseguires. Chegou a altura de representares um papel deveras difícil. Depois, alegas o que quiseres, que eu cuido dele. Não te esqueças: só se aprende ao olhar para cima. Mas disto, és incapaz! Sabes, serás sempre infeliz, porque viverás sempre contigo. Exactamente de onde foges a cada instante. Talvez seja esse o bálsamo da morte: libertarmo-nos de nós."

in "Do outro lado do rio, há uma margem"

segunda-feira, 18 de setembro de 2017


"Ela, neste momento, a ver-se, ali, parada, numa imobilidade expectante, na margem da estrada. A figura continua a cavar. Vestia um daqueles pares de calças que ostentava a geografia do tempo, uma outrora branca camisa desabotoada, e na cabeça pontificava uma boina que cheirava a sal e a terra. Raros são os objectos que comportam estes odores: sal e terra: o sonho e a realidade."

in "Do outro lado do rio, há uma margem"

quarta-feira, 13 de setembro de 2017




"No fundo, vivemos condenados a dois mundos: o nosso e o dos outros: e os nossos dias vivem-se nesta ténue fronteira: sonhamos em nós: mas ferimo-nos no dos outros… Há quem lhe chame vida."
in "Do outro lado do rio, há uma margem"



"Havia ali um qualquer desamparo de passeio sob a chuva. Bastava perscrutar-lhe o rosto por um instante demorado. Aí residem todas as respostas. Não fosse o rosto a entrada da alma. Em que outro lado se grava cada biografia?"

in "Do outro lado do rio, há uma margem"

domingo, 10 de setembro de 2017


"E era fácil aí perder-se, naquele labirinto de veias e sulcos. Imaginava os anos que foram necessários à edificação daquele labirinto. As gerações que nele trabalharam, o arrojo da construção, o esforço, as alegrias, as derrotas… Eram mãos com sabedoria, dizia para si, enquanto as olhava. Como se esta qualidade pudesse ser aplicável a uma extensão do corpo. De alguma forma, ele sabia que aquelas mãos eram sábias. Por vezes, quando a velha se silenciava, as mãos exprimiam-se no seu lugar: Meu filho, meu filho, estou cansada, tão cansada. Já não espero nada, e não há nada pior que isto."
in "Olhei para trás e sorri..."

terça-feira, 5 de setembro de 2017




"... nesse momento, em que deixei definitivamente a tua mão pendurada a olhar o passeio, percebi que teria de fazer as pazes comigo própria, afinal, teria de passar mais tempo na minha companhia, se aprender a fazer isto, talvez aí, é possível que sim, talvez não tenha de regressar à rua dos meus pais ao mesmo tempo que a camioneta do lixo."
in "Há quanto não sei o azul do céu"

segunda-feira, 4 de setembro de 2017



"Hoje chove lá fora. É daqueles dias em que o mundo nos vira as costas. Sem direito a porquês. Como se não tivéssemos importância. E, de facto, não temos. Porque, na realidade, só somos insubstituíveis para nós mesmos..."
 in "Um balouço chora ao vento"

segunda-feira, 28 de agosto de 2017


"Agora, apenas um espelho de pedra. E as datas. E ele, em si, a memorizá-las, como se precisasse, mais com o olhar, ao mesmo tempo que se irava contra os balizamentos do social. Duas datas: parecia um bilhete tornado epitáfio; e da viagem, nem um vislumbre…"

in "Do outro lado do rio, há uma margem"

sexta-feira, 25 de agosto de 2017


"Por fim, o sol obrigou-o a desviar-se. Olhou um ramo próximo. Admirava, agora, a graça com que se alongava, em contínuas multiplicações, numa harmonia de matéria e céu. Como se abraçasse o todo, e tangesse a impossibilidade. De súbito, levou a mão ao rosto. Contemplou as inscrições gravadas na palma. E, então sim, compreendeu…"

in "Queria rever o teu rosto ao entardecer"


terça-feira, 22 de agosto de 2017


"A questão de sempre: a realidade não sonha, é sonhada. E o tempo do sonho não é o tempo do homem. É uma outra coisa. Daí a dor do acordar…"
in "Queria rever o teu rosto ao entardecer"

quarta-feira, 16 de agosto de 2017


O mito é o respirar do sentido.

in Queria rever o teu rosto ao entardecer

quarta-feira, 9 de agosto de 2017


"... ficaram os quatro sobre a falésia, aquém verbo, a olhar a praia que, a seus pés, se estendia até ao opulento e desafiador promontório, num incessante baile de ares, areias e águas. Movimento, foi a palavra que adveio ao espírito de Luís, e que traduzia, na perfeição, aquele cenário. Nada era estático. Tudo se mobilizava, a começar nas incessantes colinas de água das vagas, que se diluíam na areia, para logo ressurgirem no zénite líquido, tudo pautado pelo contínuo silvar do vento, passageiro das ondas, intemporal escultor dos caminhos do homem."

in "Queria rever o teu rosto ao entardecer"

segunda-feira, 7 de agosto de 2017


"Trouxe consigo, no regresso, apenas o possível. Como há muito aprendera a fazer. Afinal, a maior jornada não era a ida ao supermercado, mas a odisseia mensal da sobrevivência. Havia, de facto, naquela cidade, e em muitas outras do país que a vira nascer, muitos milagres da multiplicação. E só um país onde há fome é pródigo em taumaturgos.
Ao chegar, não houve o canto da sua ave. Também ela se silenciara. Sobe as escadas num esforço indizível. A dor é sempre incomunicável. Mete a chave à porta, e o seu coração aquece-se. Ouve o som familiar de alguém que a espera. Em breve, estará aos saltos a seu lado, a pedir comida, a lamber-lhe as mãos na singularidade de uma ternura desmedida. Sim, é a sua única companhia. É quem se senta a seu lado a olhar as fotografias."

in "Com a idade aprende-se a dizer Adeus"

sábado, 5 de agosto de 2017



"Neste momento, olha à sua volta, ao mesmo tempo que embala o carrinho. Talvez a criança ainda durma. Casais de idosos aqui e acolá, num passo em sintonia com o tempo. Ela olha-os com a inevitável distância da idade, mas na crescente compreensão de uma indesejada meta próxima. Outras mães e filhos aproveitam o precioso verde da urbe. Em bancos próximos, grupos de velhotes discutem temáticas próprias de quem enfrenta o vazio do tempo. Uma das mais duras batalhas da vida! Como resultado, sempre a derrota… Nada mais. Ou se sai louco, ou na amargura de quem bebeu o absurdo de ser…"
in "A alma reflecte-se num espelho d´água"


quinta-feira, 3 de agosto de 2017


"Há questões, de tão repetidas, que se sabe o tempo da resposta, assim que o NIF a chegar-lhe pelo auscultador, logo os seus dedos a iluminar o ecrã, o BI era apenas um pretexto, nunca o chegava a apontar, por ali, nada de novo, mais alguém que perdeu a corrida com os números, de novo, como se emitida por uma voz demasiado distante da sua, a frase já no mundo, Lamento informá-la, mas não nos vai ser possível conceder-lhe qualquer crédito… Tem aqui vencido…"

in "A Compreensão do Inverno"



segunda-feira, 31 de julho de 2017



"... certa noite, o amigo mais próximo deposita-lhe uma sugestão, pertinho do ouvido, e remata: Vais ver que não custa nada… A seguir, uma beira de estrada, um carro a desacelerar, o vidro baixa, o sujeito anafado, com uma calvície suada, mais velho que o pai, de sorriso suíno, três frases e negócio firmado, ela com a urgência renovada de retomar a fuga, a dignidade já nem nos bolsos..."

in "O silêncio do verbo"

sábado, 29 de julho de 2017


"Nem dei pela passagem da reunião. Mas sei que a vivi. As marcas ficam. Ficam sempre: um contínuo subtrair de entusiasmo. O seu equivalente traduz-se na crescente compreensão dos velhos, que ruminam incessantemente, com as suas bocas desertas, sonhos inconclusivos. Seduzimo-nos por brindar ao que foi, e esquecemo-nos de brindar ao que poderia ter sido. Hoje, neste regresso a casa, uma vez mais na auto-estrada da monotonia, vejo, à minha direita, a serra que se oculta na névoa do entardecer, e, à minha esquerda, o mar de sempre. Nasce, em mim, o desejo de um rosto pintado de promessa." 

in "Queria rever o teu rosto ao entardecer"                             

segunda-feira, 24 de julho de 2017


Naquela estação, não houve beijos, longos abraços, dedos que se tocam, nada… Isso é para os filmes! Assim que a marcha se iniciou, nem os olhos se reencontraram mais. Nada! Ela inicia o regresso. Talvez cambaleie, afinal, quem conhece a sua geografia interior daquele momento? Cabeça baixa, uma mão no bolso, a outra segura um objecto (qual?), e o passo incerto de quem só possui pretérito. Quantas vezes na vida apenas temos pretérito? Porventura, vezes a mais… Mas quem o reconhece?
in "Um encantado e lento entardecer"

sexta-feira, 21 de julho de 2017



 "... com o tempo, o sorriso foi estreitando enquanto os braços empalideciam, aquela vozita filha da espontaneidade foi ficando arrastada, curioso, nunca quis nada que lhe ocultasse o roubo da coroa, apenas uma frase para atenuar o efeito, Assim pareço o Avô, talvez compreendesse que há vazios intangíveis, talvez por gritarem para além da rouquidão, ainda ontem, ao telefone, falava-lhe de natais por nascer e de aniversários por cumprir, os braços lívidos ajudaram-no a pousar o telefone, percebeu-lhes a dificuldade, afinal, ninguém ilumina um universo para assistir ao seu sono."
in "Os anjos não caminham"

terça-feira, 18 de julho de 2017



"Nessa noite, a nossa amizade viu a luz do dia. Uma amizade sem exigências: no fundo, a verdadeira. Minto, ele apenas me pedia que o levasse a passear duas vezes por dia. De manhã, para me mostrar a leveza do ar e a nitidez das coisas; e à noite, para me ensinar a distância das estrelas e sentir a respiração da terra. Em verdade, não pedia muito. Quantos não pedem mais, e não nos ensinam nada?"

in "Só espero que encontres um lugar onde reclinar a cabeça"



sábado, 15 de julho de 2017



"Afinal, tudo não passa de uma enorme desilusão pelo nada que foi dito, e pelo tudo que ficou por dizer. As falanges a serenar enquanto os olhares agora repousam naquele silêncio de fim. Ela acrescenta Esta é a tua história. Cheguei a meio. Porém, conheceste-me no cinzento e trouxeste-me para o azul. Ele sorri. Vira-se para ela e beija-lhe a face. Assim ficaram, até que um ligeiro frio lhes relembrou noite. As águas silenciosas agora em prata. Regressam ao quarto ainda de sentires entrelaçados. Fecham a porta de vidro. Acendem um candeeiro. O mundo, lá fora, já uma noite imensa. Enquanto eles se sorriem sob uma luz."
in "Do outro lado do rio, há uma margem"

quarta-feira, 12 de julho de 2017

sexta-feira, 7 de julho de 2017



"Pela segunda vez, nessa noite, ele beijou-a e murmurou-lhe amor e perdão, enquanto ela o silenciava com um gesto sentido. Assim ficaram, abraçados, sob o silêncio da madrugada."
in "Olhei para trás e sorri..."