Sempre que aquela música na rádio, ele assumia um ar
circunspecto, como se não a ouvisse, ou lhe fosse indiferente, porém, era
precisamente esse véu de gravidade a denunciar-lhe os passos do sentir, isto
sucedia com mais frequência no carro (afinal, em que outro lugar, do hoje, se
ouve rádio?), nesses momentos, olhava a minha vida de uma qualquer janela, como
se de uma ilusão se tratasse, tão estranho, ele ali, a meu lado, a conduzir a caminho
de casa, e a canção, interminável, a povoar o silêncio que, de súbito, se abriu
entre nós, enquanto os melosos acordes ecoavam, eu a olhar calçadas e
transeuntes, como se tal me interessasse, logo eu que tão pouco reparava nos
outros, e a canção, interminável, a certa altura, já nem posição tinha, de
tanto me obrigar a olhar a janela do meu lado, nunca soube se ele se apercebia
do meu esforço (pela janela), do meu súbito desconforto, do silêncio que a
música nos legou, eu persistia a olhar, através do vidro, gentes, passeios,
montras esconsas, creio, em verdade, que, assim que os acordes se repercutiam
no interior silenciado do carro, ele desacelerava, como se quisesse eternizar o
momento (...)
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