"Numa noite ida de província, em vez
de pratos, talheres, copos, a mesa povoou-se de cor. Era uma mesa de madeira
enegrecida. Talvez pela vizinhança com o lume. Comprida. Mas, nessa noite, era
o coração do mundo. A noite estava fria. As mãos estendiam-se para a lareira,
enquanto os olhos, ávidos, percorriam o festival de cores sobre a mesa, que
encerrava uma indizível promessa de alegria. Adultos cirandavam, numa
indiferença inexplicável às cores, falavam e falavam, e ele, teria perto de
oito anos, vislumbrava o abismo que o separava daquelas criaturas mais altas,
algumas com a cabeça prateada, cheias de certezas, convicções… Tudo uma frágil
aparência, porque só o olhar de uma criança apreende o véu desiludido que lhes
turva o olhar.
Sente-se na pele que esta é uma noite
diferente das outras. Porquê? Sim, não se explica, sente-se. E quando as coisas
enveredam pela via dos sentimentos, o verbo torna-se supérfluo, porque
compreendemos no outro uma essência irmanada. Mas voltemos à criança. Aos oito
anos. Ouve-se o sino. Um sino tem voz de alma. Todos se encaminham para a
saída. A mãe veste-lhe o sobretudo. Saem para a noite. O frio arrefece as
conversas, mas não o passo. Apesar da crescente distância em relação à mesa, às
cores, à promessa de alegria, de mãos nos bolsos, segue os familiares, afinal,
ainda havia uma obrigação a cumprir. Em algum lugar de si, sentia que a palavra
obrigação era desajustada. Porque cada passo seu proclamava agradecimento.
Recorda-se de, antes de entrar no templo, olhar o céu. Estava um céu de natal.
Os seus pensamentos, nesse momento, oscilaram entre o menino Jesus e o Pai
Natal. Gostava de ambos. Em ambos repousava também uma promessa de alegria.
Embora de alegrias distintas. E começava a compreender isso. Porque só uma
criança pobre, ornamentada de trapos, nascida sem tecto, era capaz de reunir
uma aldeia aquela hora da noite. E o seu coração de oito anos acreditava que
aquela não seria a única aldeia. "
in "Natal rima com criança"
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