Livros do Escritor

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segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Nuvens passeantes pelas águas

 


Desde criança sempre tive esta coisa de me perder a olhar horizontes, talvez o sonho de além conseguir pousar a bagagem da minha alma, os meus avós tinham um quintal rodeado de muros, quando por ali ficava, de imediato subia uma escada-de-madeira encostada num desses muros, ali ficava, o necessário, a olhar para Leste, hoje sei que essa escada-de-madeira estava encostada ao muro virado para Leste, à noite, pelo vidro da janela, pouco via para além dos muros, uma chaminé ali, o telhado de uma casa acolá, pouco mais, foi então que resolvi pegar numa enxada, apesar de pouco mais de dez anos, senti-me capaz de mudar o mundo, com uma década, o sonho acompanha-nos o respirar, e comecei a escavar o centro do quintal da casa dos meus avós, sabia, de antemão, que logo ecoaria um brado de minha avó, sempre atenta ao acontecer, apesar da dificuldade no manuseio da enxada, pelo comprimento associado ao peso para os bracitos de um miúdo de dez anos, não me demovi de a levantar aos céus para logo atingir  o terreno visado, logo à primeira investida percebi a dificuldade da empreitada, o terreno era duro, a enxada quase ricocheteava, porém, eu estava resoluto, nada me demoveria, senti a rudeza do cabo de madeira da enxada, de certa forma, a vida apresentava-se-me, continuei a levantar a enxada aos céus e a mergulhá-la na terra, repetidamente, até que o expectável brado de minha avó me chegou, tive de largar a enxada e correr ao seu encontro para me justificar, nada podia perigar o meu projecto, após lhe apresentar as minhas explicações, do que tinha idealizado para o centro do quintal, li-lhe, pelas expressões, primeiro, espanto, nunca havia pensado em tal coisa, depois, alegria, por ver o neto materializar a ideia, já nessa altura, sabia que, quando um adulto não verbalizava o “Não”, que era um “Sim” impronunciado, voltei a pegar no cabo da enxada e, uma vez mais, a trazê-la à terra, e outra, mais outra, não sei quanto tempo passou, ser-me-ia hoje impossível precisar, o tempo da meninice tem outro respirar, pena que o desaprendamos, sei que, boa parte do quintal já na sombra, parei para, com indesmentível orgulho, observar metade da minha obra, só faltava a outra, espalhei a terra revolvida, funcionalidade e estética sempre me nortearam, e a educação, claro, por fim, só faltava saber se… Balde após balde fui enchendo de água a vasta extensão de terra revolvida (Ou seria apenas uma cova? Uma singela poça d`água? A percepção da meninice tem outro respirar, pena que a desaprendamos…), para meu júbilo, a água ali se mantinha, com o queixo pousado na enxada, fiquei a admirar a minha obra, faltava algo, sim, claro, de que me adiantava ter um lago se não o podia atravessar? Logo procurei uma tábua suficientemente comprida para o atravessar, e tijolos onde pudessem assentar as extremidades, uma ponte sem altura não tem dignidade, olhando para trás, muito me admira a quantidade de critérios estéticos que me habitavam, assim foi erigida a ponte, que tão orgulhosamente atravessei múltiplas vezes, embora todas me parecessem a primeira, no entanto, a ideia do lago tinha um propósito mais recôndito, se à noite, pelo vidro da janela, pouco via para além dos muros, uma chaminé ali, o telhado de uma casa acolá, pouco mais, após o jantar, iluminado pela lareira (Há quanto não tenho jantares iluminados por lareiras? A comida não sabia a pressa… O verbo alongava-se sob aquela luz bruxuleante… O tempo, ali, não tinha por onde entrar… Sob aquela luz, alimentada por dois ou três toros, cadenciada por uma melodia de crepitares avulsos, a Eternidade foi-me apresentada…), corri para o vidro da mesma janela do ontem, mas não olhei para cima e sim para as águas, lá em baixo, que espelhavam, em verdade, sonhos por descobrir, volta e meia, uma nuvem passeante obscurecia uma estrela, a água turvava-se, o meu olhar, nem por um segundo, se desprendia das águas, a ponte lá estava, reflecti no facto de aguardar a nuvem passeante para reencontrar o brilho da estrela, pois, através daquele vidro, aprendi o que era viver.

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