Não era tanto eu estar para aqui sentado,
nem o facto de, claro, eles de pé, mas o olhar deles que me sentava ainda mais,
em verdade, esmagava-me de encontro à calçada que nos sustentava a todos,
aquela compaixão velada, por outras palavras, o “coitadinho” impronunciado,
bastava atentar um pouco nas suas expressões, nos olhares que cruzavam
julgando-me longe de tais desígnios, para perceber um veredicto sentimental (o
“coitadinho” impronunciado), nesses momentos optava por regressar a uma outra
vida, é isso mesmo, regressar a uma outra vida, que foi minha, e há tão pouco,
mais propriamente há três semanas e cinco dias, há tão pouco e hoje sou já um
qualquer despojo do ontem, era uma dessas noites de Verão que lançava os seus
longos braços para onde quer que nos recolhêssemos, daí eu me ter deitado,
janela do quarto aberta, respirava com a dificuldade própria de quem compreende
a escassez de uma qualquer coisa, o telefone, estico o braço, apenas, o resto
de mim imóvel, na cama, a janela do quarto sempre aberta, recordo o final,
talvez pela insistência, “Anda, vais ver que gostas. Não sejas
desmancha-prazeres. Estou-te a pedir… Sabes, ela já nos convidou tantas vezes.
Para além disso, tenho a certeza de que vais gostar…”, já um pé se aventurava
em busca do soalho, cedi, a insistência dela geralmente terminava com a minha
capitulação, e como como ela o sabia, quando dei por mim, já íamos, sob aquele
véu imemorial onde se espelham as dores e os sonhos de cada um de nós, a
caminho de uma insistência dela, se bem que, no fundo, a janela aberta não
fosse um acaso, talvez eu gostasse de sentir os longos braços de uma noite de
Verão, estrada fora, olhava a lua nas águas, como gostava de ali a encontrar,
parecia-me que a noite sabia mais noite, não sei porquê, já nem o som do motor
ouvia, estávamos sós e esquecidos num canto estrelado do mundo, pareceu-me, e
que bem me soube, estarmos para além do tempo, nem passado, presente ou futuro,
só um estar, supliquei, num desejo sem verbo, que sem o prenúncio do amanhã,
tantas vezes por aquela estrada, mas sempre nova para mim, agora com a lua nas
águas, lembro-me de parar, ela a acompanhar os longos braços daquela noite de
Verão que também me abraçavam, a sussurrar-me “nem passado, presente ou futuro,
só um estar”, acompanhava-lhe os desejos, só a lua nas águas nos iluminava,
momentos suficientes depois, regressámos à estrada, ela insistiu, mas não a
culpo, “Anda, vais ver que gostas. Não sejas desmancha-prazeres. Estou-te a
pedir… Sabes, ela já nos convidou tantas vezes. Para além disso, tenho a
certeza de que vais gostar…”, e não me lembro de muito mais, se dissesse que
sim, seria mentira, só de renegar o que se me afigurou um pesadelo durante dias
suficientes até perceber o quarto de um branco inexpressivo, uma cama que não a
minha, vultos apressados à minha volta que me tocavam com a frieza como se não
fosse uma história viva, e as vozes, nem uma para me levantar a memória, até
compreender que as minhas pernas já não eram as minhas pernas…
Muito se disse, à minha volta, por aqueles
dias, e depois, e agora continua a dizer-se, “Ao menos estás vivo, pá!”, “Podia
ainda ter sido pior”, outros muniam-se da religião “Deus está-te a testar… Ele
nunca nos abandona”, eu a pensar como seria bom que Deus testasse as pernas de
outro, as dele, as dela, ou, já agora, as daquele, e melhor seria se, por
exemplo, eu, sentado a um canto dos seus leitos, a não conseguir disfarçar uma
lágrima mal-amanhada num canto do olho, a soletrar emotivamente “Enquanto há vida,
há esperança” ou “Deus nunca nos atribui um fardo que não consigamos suportar”,
a primeira vez que vi o resto da minha existência, personificada naquele
objecto, símbolo maior de quem já não caminha sobre a terra, confesso a minha
insuficiência com as palavras, o sentir engoliu-me de tal forma que demorei a
recuperar os sentidos que nos retêm ao aqui, hoje, passadas três semanas e
cinco dias, continua a ser o olhar deles que me senta ainda mais, em verdade,
esmaga-me de encontro à calçada que nos sustenta a todos, às vezes, durante a
noite, por brevíssimos instantes, parece que as minhas pernas voltam a ser as
minhas pernas, nesses momentos, uma voz em mim, com os seus longos braços de
uma noite de Verão, a dizer que me espera, o tempo necessário, num lugar onde a
lua sonha repousada nas águas.
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