Livros do Escritor

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sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

A mão que eu escolhi segurar esta vida

 


Sei que foste tu! Só podia, mais ninguém teria audácia para tal, nem sequer tinha acesso ao interior da casa, claro que, de início, negaste, com a veemência necessária, o que me espanta, no meio de tudo isto, é que nem necessidade tinhas… Para quê, então… Confesso a minha dificuldade em conceber uma razão plausível para isto, sempre te demos tudo… Não, não compreendo de todo, ainda levámos algum tempo para juntar aquelas poupanças, e, sabes, ninguém caminha para novo, o mais irónico de tudo, é que juntámos no receio de qualquer ameaça à nossa saúde, doença, operação, internamento, medicamentos, tanta coisa que pode surgir num repente da vida, sabes como é, ainda se fosse por um luxo, a viagem sonhada, uma jóia, um qualquer capricho, ou simplesmente por sovinice, mesmo assim, era nosso, labor e regras são a fonte daquele pecúlio, duas elementares questões que ainda desconheces e que, pelos vistos, duvido seriamente que algum dia venham a fazer parte do teu léxico, mas não, o mais elementar receio pela saúde, e, não sei bem porquê, no fundo, talvez já desconfiasse, sabes, nesta vida, as pernas só nos levam onde temos de chegar, e as tuas, pelos vistos, não te levam muito longe, naquele dia, não sei porquê, algo em mim insistia para que fosse verificar aquela gaveta, premonições, percebes, não é, mas há muito que abdicámos do andar de cima, neste momento, as nossas pernas aguardam apenas pelo regresso à terra, daí a nossa circunscrita rotina a este piso, contudo, algo em mim não se aquietava, como se já visualizasse aquele envelope vazio e amarrotado, e não foi só o seu conteúdo que levaste, tiraste-nos também os anos que levámos a juntar o que ali estava, as madrugadas que conhecemos para pegar a horas, nem sonhas o que isso é, quando outros ainda na horizontal, no leve galope de um sono despreocupado, já o nosso rosto açoitado pelo frio demasiado lúcido de um qualquer Inverno, aquele mesmo frio que nos obrigava a descer com demasiada rapidez os degraus de nós, para nos sentarmos a um canto, recolhidos e a tremer, na esperança faminta de um resquício de luz a que nos pudéssemos agarrar, sabes lá o que isso é, e a fome, as horas seguidas, tantas, que o estômago, coitado, acho que se encolhia por pudor, a certa altura, cheguei a pensar que, antes de me pedir comida, olhava primeiro para os meus bolsos, para não falar das roupas, pensas que nos regíamos por modas ou tendências, longe disso, havia em nós o sentido do essencial, como se perdeu, sabes, quando se perde um sentido destes, a porta fica escancarada para toda a angústia do mundo, nesta casa, nunca se comprou o que não coubesse à mesa, duvido que percebas isto, no fundo, tens um molde muito diferente do nosso, e não vale a pena virem com doutrinas de pontes do hoje para o ontem ou vice-versa, há margens que se limitam a olhar na permanente incompreensão por um caudal demasiado entre si, e como as nossas caudalosas ideias obedeciam a correntes tão distintas, como dizia, não sei porquê, algo em mim insistia para que fosse verificar aquela gaveta, premonições, percebes, não é, mas há muito que abdicámos do andar de cima, mesmo assim, lá iniciei a escalada, não deixa de ter a sua graça a nossa relação com o mundo, há uns anos, não percebia um degrau, hoje, se o vencer, compreendo a vida, mas fazes lá tu ideia do que estou para aqui a falar, e quantos degraus venci para chegar ao piso de cima, sempre critiquei a inclinação daquela escada, agora é tarde, em verdade, já é tarde há muito, nós já somos noite, tu nem amanheceste, chegaste a este lado das coisas já com a alma tão escurecida, se me perguntassem quanto tempo levei a vencer as duas inclinadas dezenas de degraus, confesso que não saberia o que responder, porém, lá cheguei acima, respirei o suficiente para me recompor, olhei em volta, nada fora do lugar, tudo estava conforme a minha ideia, lá fora compreendi os sons da tarde, avancei para o móvel, junto da janela, ao centro duas portas de vidro, ladeado por quatro gavetas, depositámos aqueles anos todos na última gaveta, do lado esquerdo, quando me abeirei do móvel, o meu olhar procurou a tarde que se espreguiçava lá fora, como se tudo estivesse no seu lugar, percebi, no passeio em frente, uma jovem mãe com a filha pela mão, não teria mais de seis anos a criança, sorriam-se, parecia que a mãe lhe explicava qualquer coisa, continuei a olhá-las, passeio fora, aquele quadro despertou-me uma ternura sorridente, há muito que não acontecia, por fim, diluíram-se do meu olhar, nesse instante, nasceu em mim uma súplica, desejei que a noite do mundo fosse um lugar muito longe…

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