Sei que
foste tu! Só podia, mais ninguém teria audácia para tal, nem sequer tinha
acesso ao interior da casa, claro que, de início, negaste, com a veemência
necessária, o que me espanta, no meio de tudo isto, é que nem necessidade
tinhas… Para quê, então… Confesso a minha dificuldade em conceber uma razão
plausível para isto, sempre te demos tudo… Não, não compreendo de todo, ainda
levámos algum tempo para juntar aquelas poupanças, e, sabes, ninguém caminha
para novo, o mais irónico de tudo, é que juntámos no receio de qualquer ameaça
à nossa saúde, doença, operação, internamento, medicamentos, tanta coisa que
pode surgir num repente da vida, sabes como é, ainda se fosse por um luxo, a
viagem sonhada, uma jóia, um qualquer capricho, ou simplesmente por sovinice,
mesmo assim, era nosso, labor e regras são a fonte daquele pecúlio, duas
elementares questões que ainda desconheces e que, pelos vistos, duvido
seriamente que algum dia venham a fazer parte do teu léxico, mas não, o mais
elementar receio pela saúde, e, não sei bem porquê, no fundo, talvez já
desconfiasse, sabes, nesta vida, as pernas só nos levam onde temos de chegar, e
as tuas, pelos vistos, não te levam muito longe, naquele dia, não sei porquê,
algo em mim insistia para que fosse verificar aquela gaveta, premonições,
percebes, não é, mas há muito que abdicámos do andar de cima, neste momento, as
nossas pernas aguardam apenas pelo regresso à terra, daí a nossa circunscrita
rotina a este piso, contudo, algo em mim não se aquietava, como se já visualizasse
aquele envelope vazio e amarrotado, e não foi só o seu conteúdo que levaste,
tiraste-nos também os anos que levámos a juntar o que ali estava, as madrugadas
que conhecemos para pegar a horas, nem sonhas o que isso é, quando outros ainda
na horizontal, no leve galope de um sono despreocupado, já o nosso rosto
açoitado pelo frio demasiado lúcido de um qualquer Inverno, aquele mesmo frio
que nos obrigava a descer com demasiada rapidez os degraus de nós, para nos
sentarmos a um canto, recolhidos e a tremer, na esperança faminta de um
resquício de luz a que nos pudéssemos agarrar, sabes lá o que isso é, e a fome,
as horas seguidas, tantas, que o estômago, coitado, acho que se encolhia por
pudor, a certa altura, cheguei a pensar que, antes de me pedir comida, olhava
primeiro para os meus bolsos, para não falar das roupas, pensas que nos
regíamos por modas ou tendências, longe disso, havia em nós o sentido do
essencial, como se perdeu, sabes, quando se perde um sentido destes, a porta
fica escancarada para toda a angústia do mundo, nesta casa, nunca se comprou o
que não coubesse à mesa, duvido que percebas isto, no fundo, tens um molde
muito diferente do nosso, e não vale a pena virem com doutrinas de pontes do
hoje para o ontem ou vice-versa, há margens que se limitam a olhar na
permanente incompreensão por um caudal demasiado entre si, e como as nossas
caudalosas ideias obedeciam a correntes tão distintas, como dizia, não sei
porquê, algo em mim insistia para que fosse verificar aquela gaveta,
premonições, percebes, não é, mas há muito que abdicámos do andar de cima,
mesmo assim, lá iniciei a escalada, não deixa de ter a sua graça a nossa
relação com o mundo, há uns anos, não percebia um degrau, hoje, se o vencer,
compreendo a vida, mas fazes lá tu ideia do que estou para aqui a falar, e
quantos degraus venci para chegar ao piso de cima, sempre critiquei a
inclinação daquela escada, agora é tarde, em verdade, já é tarde há muito, nós
já somos noite, tu nem amanheceste, chegaste a este lado das coisas já com a alma
tão escurecida, se me perguntassem quanto tempo levei a vencer as duas
inclinadas dezenas de degraus, confesso que não saberia o que responder, porém,
lá cheguei acima, respirei o suficiente para me recompor, olhei em volta, nada
fora do lugar, tudo estava conforme a minha ideia, lá fora compreendi os sons
da tarde, avancei para o móvel, junto da janela, ao centro duas portas de
vidro, ladeado por quatro gavetas, depositámos aqueles anos todos na última
gaveta, do lado esquerdo, quando me abeirei do móvel, o meu olhar procurou a
tarde que se espreguiçava lá fora, como se tudo estivesse no seu lugar,
percebi, no passeio em frente, uma jovem mãe com a filha pela mão, não teria
mais de seis anos a criança, sorriam-se, parecia que a mãe lhe explicava
qualquer coisa, continuei a olhá-las, passeio fora, aquele quadro despertou-me
uma ternura sorridente, há muito que não acontecia, por fim, diluíram-se do meu
olhar, nesse instante, nasceu em mim uma súplica, desejei que a noite do mundo
fosse um lugar muito longe…
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.