Livros do Escritor

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

A matemática do destino

 


Percebi, muito a contragosto, que hoje ela vinha cá pôr a miúda, não foi preciso relembrar-me que dia este para um qualquer calendário, não, não foi nada disso, mas uma outra coisa, uma forma que as coisas têm de nos devolver o que por nós caminha, não sei porquê, no entanto, sempre que por mim sombras, percebo que as nuvens se alongam mais preguiçosamente lá pelas alturas, como se sempre adiassem uma extenuada partida, e, de facto, depois de abrir a janela, compreendo que só pelo meu pensar caminham sombras, pouco antes do almoço, a campainha, desço, optei assim, não sei porquê, às vezes, afirmamo-nos com o que temos mais à mão, talvez para criar a fantasia de que ainda temos algum controle sobre as coisas, não sei se para os outros se para nós mesmos, e há tanto que o destino deixou de ser minha pertença, foi dela que partiu a decisão de nos separarmos, eu, de início, incrédulo, as questões saíam-me sem o filtro do orgulho Mas porquê? Tens a certeza? O que te leva a isso? Falhei com alguma coisa? Diz-me, por favor, diz-me… Não compreendo, de todo, o porquê disto… Logo agora, que tudo parecia correr bem… Fazemos assim, vamos jantar fora, podemos ir àquele restaurante dos bifes, lembras-te da última vez que lá estivemos? Gostaste tanto! Depois podemos ir dar uma volta pelas lojas, pode ser que vejas alguma coisa de que gostes. Não querias uma carteira nova? Uma das piores sensações desta vida passa algures pela compreensão de que estivemos a falar sozinhos, isto geralmente sucede quando habitamos num tempo diferente do outro, eu falava sentado num passado ainda recente, para mim, claro, e desconhecia que ela já caminhava por um presente, de há pouco, é certo, mas que me fora vedado, às questões por mim derramadas, sem o filtro do orgulho, ela respondeu com uma longa expiração e com a frieza inclemente de omoplatas que procuram a distância, ainda para ali fiquei, a balbuciar qualquer coisa que nem eu percebia, enquanto se dava em mim a profunda compreensão da mendicidade, nos dias seguintes, ainda tive mãos pelos ombros a incentivar-me Esquece-a…Ela não te merece! Vais, não tarda nada, encontrar uma que te dê o devido valor. Alguém à tua altura, e eu que não queria nada com as alturas, apenas que as omoplatas se reaproximassem e dessem lugar àquele rosto que eu tão bem conhecia, ou julgava conhecer, se, ainda há tão pouco, ela feliz com o restaurante dos bifes, a volta pelas lojas, não compreendo o porquê das omoplatas se afastarem, e a filha, com os seus sete anos, devolvida quinzenalmente, aos Sábados, logo pelas dez da manhã, há sempre um momento em que a vida sai ao nosso caminho e pacientemente nos explica as coisas, uns chamam-lhe intuição, outros falam em pressentimentos, também há os que apelidam de bom senso, o grande problema é a nossa flagrante surdez para o óbvio que se senta diante de nós, o trabalho, as contas, planos para as férias, mais trabalho, quando não o há, corre-se incansavelmente por um, o que dá uma grande trabalheira, assim, passaram mais de sete anos, julgámo-nos conhecer e, no fim, partimos como dois estranhos, soube, sempre depois, que fui uma segunda escolha, quando o coração assume a forma de um rosto, dificilmente o pode esquecer, quando lhe disseram que ele se ia divorciar, ela, de imediato, procurou-o, eu sempre aquém de tudo, apesar da vida se sentar diante de mim e pacientemente me explicar as coisas, Não achas estranho que ela ultimamente ande sempre com o telemóvel desligado? Ficou sem bateria… Mas isto tornou-se um hábito?! E aquelas músicas que, de repente, pareceu desenterrar e não se cansa de as ouvir no carro? Nunca as partilharam, pois não? Recorda-te algum momento? Pois, calculei que não… E há quanto ela não te procura para… Além daquele súbito pudor, fechar-te a porta sempre que está no banho, como se, de repente, fosses granjeado com o título de intruso… Quantas vezes, nestes últimos meses, tiveste de ir buscar a miúda à escola? Também não estranhaste?! Não era uma incumbência dela? Sim, eu sei, o trabalho, as contas, planos para as férias, mais trabalho, quando não o há, corre-se incansavelmente por um, o que dá uma grande trabalheira, até que, numa noite, após um banho, a porta agora fechada, lia uma revista deitado na cama, um artigo acerca do índice médio de felicidade nos casais modernos, ela, de roupão, a sair da casa-de-banho, aquele renovado pudor e a minha flagrante cegueira, senta-se do seu lado da cama a pentear-se, a minha vista com os cabelos molhados entre as omoplatas, de repente ela Não achas que devíamos acabar com este triste equívoco? Eu, nesse momento, preocupado com o índice médio de felicidade nos casais modernos, aquém de tristes equívocos, porém, na manhã seguinte, o lado dela na cama já frio, nem vestígios de cabelos molhados entre as omoplatas, antes de me levantar, algo saiu-me ao caminho e pacientemente explicou o porquê de um triste equívoco com mais de sete anos…

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