Há uns
dias, quando cheguei a um lugar da minha geografia diária, resolvi simplesmente
observar, na entrada há, pelo menos, oito mesas, todas ocupadas, um sujeito
idoso numa, um casal noutra, mais à frente, uma jovem num excesso de decotes, embora um aspecto transversal a todos estes estranhos:
todos voltados para baixo, aprisionados a um écran; vários sentimentos me
percorreram: espanto, piedade, asco, repulsa, a angústia acabou por prevalecer;
instintivamente olhei o exterior, pelas largadas vidraças o sol no auge, ia
entrar, mas acabei por sair, fechei os olhos para olhar o sol, ali me deixei
estar o suficiente para esquecer todos voltados para baixo, aprisionados a um
écran, como era possível, o sol no auge, e só eu me aperceber de tal? Mais
ninguém fecha os olhos para olhar o sol? Há muito me sinto anacrónico, atirado
para uma qualquer margem, assisto a estes despojos serem inclementemente
arrastados, pelas águas dos tempos, para o derradeiro precipício… Vem-me à
memória um casal, as primeiras férias no exterior, conseguiram-no após bem mais
de uma década de casamento, ela ciosa, primeiro, de cumprir com a maternidade, ele
nunca se opôs a tal desígnio, a ideia de uma vozita lhe chamar “pai”
sempre lhe aqueceu o sentir, não foi preciso esperar muito, três meses após a
troca de alianças e juras de amor, diante de um altar, ela deu-lhe a notícia, a incredulidade inicial, no entanto, a ideia já se lhes
alojara, num repente, já um berço, habitado, ao lado da sua cama, concordaram,
para primeiro, ser melhor menino, é velho que o destino prima pela ironia, ali
estava a primogénita a centrar-lhes as atenções, já dava os primeiros passos,
quando, num final de tarde, ela abre a porta antes de a mão dele alcançar a
campainha, e lhe dá a notícia, a incredulidade inicial, no entanto, a ideia já
se lhes alojara, num repente, já o berço, de novo, habitado, ao lado da sua
cama, a carteira aconselhou-os que o melhor seria, no futuro, desmontar o
berço, desta vez chegou o ansiado rapaz, com tantas solicitações o sentir deles
atirado para um qualquer desvão poeirento, passados uns meses, lá ressurgia, em
lentos passos, nas manhãs indolentes dos fins-de-semana, aquando das férias
seguiam na direcção da casa dos pais de um, ora de outro, e o calendário lá
seguia no seu carácter inflexível, já a filha entrara na primária, quando certa
frase, emitida por uma colega, durante a hora de almoço, se lhe alojou no
pensar, “Olha
lá, há muito mais destinos, para férias, no mundo, do que as aldeias de pais ou
sogros,” não encontrou resposta para esta observação, nem chegou a
tentar, compreendeu a crueza da verdade inerente à frase “Olha lá, há muito
mais destinos, para férias, no mundo, do que as aldeias de pais ou sogros,” ao
final da tarde, ainda pensou em relatar-lhe o sucedido, só que os deveres da
filha, pôr a mesa para jantar, as birras do filho, ajudá-la na cozinha, tudo
somado, não encontrou espaço para “Olha lá, há
muito mais destinos, para férias, no mundo, do que as aldeias de pais ou
sogros,” quando se deitaram, procurou um espaço por onde a frase (“Olha
lá, há muito mais destinos, para férias, no mundo, do que as aldeias de pais ou
sogros”) pudesse entrar, mas os afazeres do amanhã, a pressa do sono que só
o retarda, prevaleceram, acabou por pousar o rosto na almofada, já de luz
apagada, a frase, iluminada, diante de si, foi nas compras, no dia seguinte, entre
uma prateleira e outra, com o pretexto de um produto oriundo de longínquas
paragens que “Sabes, há muito mais destinos, para
férias, no mundo, do que as aldeias de pais ou sogros,” ela, de
início, nem sequer pareceu ouvir, o
facto de, uns metros à frente, se imobilizar, deu-lhe esperança de que a frase
lhe ecoasse, só que “Tanto pedi para me lembrares do sal! Se aqui não
viesse, voltava a esquecer-me…”, a esperança, de uma ponte de diálogo,
empalidecia-lhe, foi sob a sombra da bagageira, enquanto depositavam as
compras, “Olha que tens razão… Sem dúvida, aquela pindérica lá do meu
trabalho, já te falei nela, não pára de correr o cão... Os anos a passar, e nós
sempre a caminho da casa dos meus pais ou dos teus… E não caminhamos para
novos!”, a ponte reconstruira-se-lhe, num repente, para sua estupefacção, repetiu
com o devido ênfase “E ninguém caminha para novo!”, ele “Sempre te
disse que só o tempo não conhece o caminho de volta,” “Sim, tens toda a razão,
e os miúdos já estão crescidinhos, podem perfeitamente ficar, uma ou
duas semanas, com os avós. Já sei que vão escolher os meus pais…”, “O velho
ditado: Filhos de minha filha meus netos são, filhos de meu filho podem ser
ou não,” “Deixa-te dessas coisas, sabes perfeitamente o quanto os miúdos
também gostam dos teus pais!,” considerou, de momento, suficiente a questão
estar sobre a mesa, não lhe esperava tanta receptividade, percebeu que, afinal,
também ela já concluíra “Há muito mais destinos, para férias, no mundo, do
que as aldeias de pais ou sogros,” reflectiu no porquê de esta questão se
manter silenciada, entre eles, até hoje, como é difícil o sentir sobreviver ao
tempo, pois, a questão anda por aqui, nessa noite, pensou perguntar-lhe pelos
sonhos, logo capitulou quando, pela casa, ecoou o genérico da telenovela.
Livros do Escritor
quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
Luar de Inverno I
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