Entrei em
casa e fui directa para o quarto, deitei-me na cama, revisitei, incontáveis
vezes, a cena de há pouco, de certa forma num espanto orgulhoso pela minha
atitude, nunca será fácil compreender o abismo e avançar com obstinação, é o
que melhor encontro para traduzir o meu feito, batem-me, sempre num estrépito
demasiado, à porta do quarto, percebo que minha mãe, “Já chegaste? Está tudo
bem? Não queres vir lanchar qualquer coisa? Tenho ali umas torradinhas acabadas
de fazer… Anda, olha que ainda estão quentinhas…”, desculpei-me com uma dor de
cabeça, só queria para ali estar, e talvez revisitar, ainda umas quantas vezes,
a cena de há pouco, e aqueles diminutivos sucessivos amplificavam-me os ecos
surdos das coisas ao insuportável, por fim, desistiu, largou-me a soleira da
porta e regressou para a segurança do seu mundo de “inhos” e “inhas”, contudo,
foi dela que partiu a nuvem inicial, aquando da primeira visita lá a casa, era
tão evidente a sua expressão desaprovadora, quase gritava olhos adentro, assim
que ele saiu, “Minha querida filha, bem sei que vida é tua, mas este rapaz, não
sei… Que objectivos de vida tem? Qual a sua família? Não sei, acho que devias
reflectir muito bem…”, as palavras sempre se nos demoram mais do que queremos
admitir, no repente da vida, podemos virar costas, fingir surdez, desaprovação,
mas a palavra é anterior ao homem, daí conhecer melhor os caminhos da terra,
desde então, sempre que nos encontrávamos, a inicial nuvem materna passou, nem
que fosse por um “inho” qualquer, a obscurecer-nos os passos, em verdade, da
soleira da porta do meu quarto, nada de novo foi dito, eu conhecia-o tão bem,
sabia do estorvo que os estudos constituíam na sua vida, da encenação
quotidiana de livros e mochila para garantir o aval diário dos pais, chegado à
porta do liceu, por ali ficava – pelo menos sempre revia colegas e professores
–, ou então acelerava rumo a outros destinos, e como eu gostava de partir com
ele para uma qualquer outra paragem, como se desvelássemos, nessas
intermináveis excursões, o nosso lugar no mundo, só quando passamos a respirar
de uma outra forma é que compreendemos o amor, comigo foi o que sucedeu,
conheci-o naquela idade em que tudo serve para nos afirmarmos no mundo, como se
quiséssemos erguer bem alto a nossa bandeira face às demais, a certa altura,
pelo que grassava à minha volta, julguei que beijar era um lugar-comum,
todavia, nasci com a evidência de que o sublime não se atém à mecânica do
corriqueiro, e quando o olhar dele se demorou em mim, o suficiente para me alegrar,
num indizível sentido, ainda me lembro, saía da escola, era de tarde, ele
estava com um grupo, como sempre acontecia, no portão da escola, no fundo,
sempre gostou de margens, o olhar de alguém só nos agrada ou insatisfaz quando
temos a sensação de que já o conhecemos, foi o que em mim nasceu, quando me
apercebi daquele olhar que pelo meu rosto se passeava, desacelerei o passo,
quase até me imobilizar, e procurei a fonte de uma súbita alegria, num
indizível sentido, não me recordo das primeiras frases, porque, em verdade, são
as impressões que prevalecem e sobrevivem, como se náufragas nas margens do rio
do tempo, antes da primeira frase, sim, como é verdade, já lhe conhecia a voz,
foi como se um eco adormecido despertasse pelo espaço da minha memória, com
reverberações de dias idos, quando a mim regressei, dias depois, estávamos numa
esplanada, cada um com o seu refresco, percebi, enquanto o olhava, que nada
voltava ao que era – só quando passamos a respirar de uma outra forma é que
compreendemos o amor –, alguma coisa se alterava gradualmente no espaço do meu
sentir, é curioso, se me perguntassem, hoje, se faria alguma coisa diferente,
diria que sim (só os tolos respondem que fariam tudo igual), no entanto, já sei
que sentimento me espera em cada esquina desta coisa chamada existir, como se
dali não houvesse a mais ilusória fuga,
das esplanadas aos estores corridos, em tardes que se prolongavam por uma vida,
e como é verdade: só quando passamos a respirar de uma outra forma é que
compreendemos o amor; quando não estava comigo, regressava para as companhias
dantes, disse bem, companhias e não amigos, de facto, palavra rara e preciosa,
certa tarde, antes do estore corrido, antes de uma outra forma de respirar,
antes do mais ténue vislumbre de um gesto traduzido amor, ele “Trouxe isto… Não
queres experimen…”, não sei se foi o meu olhar, o meu recuo, a expressão que
assumi no momento, a verdade é que não terminou a pergunta, talvez porque a
resposta a tenha ultrapassado, quando assim sucede, as questões não perduram,
levantei-me, saí, fechei a porta devagar atrás de mim, não senti o menor
esforço para me dissuadir, talvez a surpresa, o orgulho ferido, a máscara
subitamente pelo soalho, ou o tal isto que para ali trouxera, o tenham retido,
ainda hoje não sei, se ele, naquele momento, se tivesse levantado, corrido por
mim, me sussurrasse ao ouvido, “Desculpa, foi uma parvoíce… Vamos esquecer
isto!”, corresse o estore, numa tarde que se prolonga por uma vida, eu
reconsiderasse, aquela falha não desse lugar a uma tão profunda ferida, afinal,
desiludir rima com ferir, e o hoje seria um lugar diferente, chegada a casa,
fechei a porta devagar atrás de mim, repetia um gesto de há pouco, fui directa
para o meu quarto, deitei-me na cama, revisitei, incontáveis vezes, a cena de
há pouco, de certa forma num espanto orgulhoso pela minha atitude, ele
procurou-me dias depois, mas já nada podia sarar, de facto, desiludir rima com
ferir, evitei-o, estava tudo dito entre nós, as ilusões são isso mesmo,
construções atrás das quais nos escondemos do mundo, mas a vida sempre nos
encontra, e de repente, percebemos isso sob as mais diversas formas, um vento
gélido pela face, uma dor demasiada, ou uma tarde suspensa por um estore antes
caído…
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