Livros do Escritor

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sábado, 18 de janeiro de 2025

Passeio fora, de mãos nos bolsos, a assobiar melodias do ontem

 


Entrei em casa e fui directa para o quarto, deitei-me na cama, revisitei, incontáveis vezes, a cena de há pouco, de certa forma num espanto orgulhoso pela minha atitude, nunca será fácil compreender o abismo e avançar com obstinação, é o que melhor encontro para traduzir o meu feito, batem-me, sempre num estrépito demasiado, à porta do quarto, percebo que minha mãe, “Já chegaste? Está tudo bem? Não queres vir lanchar qualquer coisa? Tenho ali umas torradinhas acabadas de fazer… Anda, olha que ainda estão quentinhas…”, desculpei-me com uma dor de cabeça, só queria para ali estar, e talvez revisitar, ainda umas quantas vezes, a cena de há pouco, e aqueles diminutivos sucessivos amplificavam-me os ecos surdos das coisas ao insuportável, por fim, desistiu, largou-me a soleira da porta e regressou para a segurança do seu mundo de “inhos” e “inhas”, contudo, foi dela que partiu a nuvem inicial, aquando da primeira visita lá a casa, era tão evidente a sua expressão desaprovadora, quase gritava olhos adentro, assim que ele saiu, “Minha querida filha, bem sei que vida é tua, mas este rapaz, não sei… Que objectivos de vida tem? Qual a sua família? Não sei, acho que devias reflectir muito bem…”, as palavras sempre se nos demoram mais do que queremos admitir, no repente da vida, podemos virar costas, fingir surdez, desaprovação, mas a palavra é anterior ao homem, daí conhecer melhor os caminhos da terra, desde então, sempre que nos encontrávamos, a inicial nuvem materna passou, nem que fosse por um “inho” qualquer, a obscurecer-nos os passos, em verdade, da soleira da porta do meu quarto, nada de novo foi dito, eu conhecia-o tão bem, sabia do estorvo que os estudos constituíam na sua vida, da encenação quotidiana de livros e mochila para garantir o aval diário dos pais, chegado à porta do liceu, por ali ficava – pelo menos sempre revia colegas e professores –, ou então acelerava rumo a outros destinos, e como eu gostava de partir com ele para uma qualquer outra paragem, como se desvelássemos, nessas intermináveis excursões, o nosso lugar no mundo, só quando passamos a respirar de uma outra forma é que compreendemos o amor, comigo foi o que sucedeu, conheci-o naquela idade em que tudo serve para nos afirmarmos no mundo, como se quiséssemos erguer bem alto a nossa bandeira face às demais, a certa altura, pelo que grassava à minha volta, julguei que beijar era um lugar-comum, todavia, nasci com a evidência de que o sublime não se atém à mecânica do corriqueiro, e quando o olhar dele se demorou em mim, o suficiente para me alegrar, num indizível sentido, ainda me lembro, saía da escola, era de tarde, ele estava com um grupo, como sempre acontecia, no portão da escola, no fundo, sempre gostou de margens, o olhar de alguém só nos agrada ou insatisfaz quando temos a sensação de que já o conhecemos, foi o que em mim nasceu, quando me apercebi daquele olhar que pelo meu rosto se passeava, desacelerei o passo, quase até me imobilizar, e procurei a fonte de uma súbita alegria, num indizível sentido, não me recordo das primeiras frases, porque, em verdade, são as impressões que prevalecem e sobrevivem, como se náufragas nas margens do rio do tempo, antes da primeira frase, sim, como é verdade, já lhe conhecia a voz, foi como se um eco adormecido despertasse pelo espaço da minha memória, com reverberações de dias idos, quando a mim regressei, dias depois, estávamos numa esplanada, cada um com o seu refresco, percebi, enquanto o olhava, que nada voltava ao que era – só quando passamos a respirar de uma outra forma é que compreendemos o amor –, alguma coisa se alterava gradualmente no espaço do meu sentir, é curioso, se me perguntassem, hoje, se faria alguma coisa diferente, diria que sim (só os tolos respondem que fariam tudo igual), no entanto, já sei que sentimento me espera em cada esquina desta coisa chamada existir, como se dali não houvesse  a mais ilusória fuga, das esplanadas aos estores corridos, em tardes que se prolongavam por uma vida, e como é verdade: só quando passamos a respirar de uma outra forma é que compreendemos o amor; quando não estava comigo, regressava para as companhias dantes, disse bem, companhias e não amigos, de facto, palavra rara e preciosa, certa tarde, antes do estore corrido, antes de uma outra forma de respirar, antes do mais ténue vislumbre de um gesto traduzido amor, ele “Trouxe isto… Não queres experimen…”, não sei se foi o meu olhar, o meu recuo, a expressão que assumi no momento, a verdade é que não terminou a pergunta, talvez porque a resposta a tenha ultrapassado, quando assim sucede, as questões não perduram, levantei-me, saí, fechei a porta devagar atrás de mim, não senti o menor esforço para me dissuadir, talvez a surpresa, o orgulho ferido, a máscara subitamente pelo soalho, ou o tal isto que para ali trouxera, o tenham retido, ainda hoje não sei, se ele, naquele momento, se tivesse levantado, corrido por mim, me sussurrasse ao ouvido, “Desculpa, foi uma parvoíce… Vamos esquecer isto!”, corresse o estore, numa tarde que se prolonga por uma vida, eu reconsiderasse, aquela falha não desse lugar a uma tão profunda ferida, afinal, desiludir rima com ferir, e o hoje seria um lugar diferente, chegada a casa, fechei a porta devagar atrás de mim, repetia um gesto de há pouco, fui directa para o meu quarto, deitei-me na cama, revisitei, incontáveis vezes, a cena de há pouco, de certa forma num espanto orgulhoso pela minha atitude, ele procurou-me dias depois, mas já nada podia sarar, de facto, desiludir rima com ferir, evitei-o, estava tudo dito entre nós, as ilusões são isso mesmo, construções atrás das quais nos escondemos do mundo, mas a vida sempre nos encontra, e de repente, percebemos isso sob as mais diversas formas, um vento gélido pela face, uma dor demasiada, ou uma tarde suspensa por um estore antes caído…

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