Livros do Escritor

Livros do Escritor

domingo, 12 de janeiro de 2025

Já está pronto o seu carrito…


 

Foi uma urgência mecânica que me levou ao seu encontro, tudo num acaso das atribulações do hoje, o imperativo telefonema, do outro lado “Então, diga lá o que se passa com o seu carrito…”, enterneceu-me, confesso, aquele “… o que se passa com o seu carrito…” quase me despertou uma lágrima infantil há tanto adormecida, dei por mim a fixar o carro para ver se falávamos do mesmo, eu, que nunca me interessei por mecânicas e afins, procurei esclarecê-lo dos sintomas do atamancado andar do carrito, prontamente disse vir buscá-lo, que não nos preocupássemos, fiquei curioso, como não poderia deixar de ser, com a fisionomia por detrás de “Então, diga lá o que se passa com o seu carrito…”, há vozes que, de todo, não coincidem com os corpos, e a voz é o eco da alma, como é sabido, logo essa dissonância perturba, quase orei para que este não fosse mais um, estava junto do automóvel quando, do outro lado da rua, vejo dois sujeitos virem na minha direcção, embora um viesse bem mais à frente, era bem rotundo, detinha aquele andar oscilante próprio dos deveras obesos, ora para um lado ora para outro consoante a passada, só de ver, senti-me a arfar, cheguei a questionar se conseguiria cumprir os metros até onde eu estava, tal a notória dificuldade da empreitada, levantei a mão para verificar se, entretanto, e com o devido esforço, antes de mais uma oscilação, ora para um lado ora para outro consoante a passada, o sujeito rotundo, com um notório esforço, lá conseguiu erguer a sua, por fim, “Ora, boa-tarde! Vamos lá ver, então, o que se passa com o carrito…”, só depois as apresentações, reparei que, a cada sílaba emitida, ajeitava os óculos, o umbigo a despontar da camisola, não havia pano suficiente, no mercado, que o tapasse, as costas das mãos viradas para a frente, outro aspecto muito comum aos sujeitos que padecem de uma excessiva volumetria abdominal, a minha mente, entretanto, em oscilações, talvez pela atenção às suas passadas, ora para um lado ora para outro, acabei por descobrir que o segundo sujeito era seu pai, o que mais ressaltava deste eram as ruínas dentárias e um aspecto chamuscado, tive bastante dificuldade em percebê-lo, a voz saía-lhe assoprada, devido às múltiplas falhas entre incisivos, caninos e molares, embora, em termos de volumetria, fosse um terço do filho, quase lhe cabia debaixo do braço, como sempre acontece nestes contextos, há primeiramente um instante de silêncio, um sublimado rito só ao alcance de mentes iluminadas por bielas, escapes, discos-de-travão, pistons, correias-de-transmissão, válvulas, óleo-do-motor, óleo-dos-travões, discos-de-embraiagem, e demais de um léxico que o comum mortal está fatalmente aquém, já assistira a este ritual, embora o contemplasse das faldas da minha ignorância, foi na juventude, aquando de uma mota nova no bairro, os indefectíveis logo acorriam para, em silêncio, cumprirem com um rito do qual sempre aquém estive, talvez orassem ao deus das bielas, é isso, pois, talvez, quando, por duas vezes, ali cheguei com motas novas, o rito materializou-se, de novo o deus das bielas convocado, embora minhas, eu na longínqua humildade da minha ignorância, de repente, no hoje, levanta-se-me da memória este ritual, eu de regresso ao incómodo da ignorância, das longínquas faldas a assistir àqueles dois iluminados – um desdentado, com aspecto chamuscado, a seu lado, o filho, com o triplo do tamanho, as costas das mãos viradas para a frente, a cada trinta segundos ajeitava os óculos, o umbigo a despontar da camisola, não havia pano suficiente, no mercado, que o tapasse –, num reverencial silêncio, a contemplar o automóvel imobilizado, por fim, o verbo regressa, “Ora a chave do carrito, por favor…”, eu sempre aquém destes desígnios, talvez orassem ao deus das bielas, é isso, pois, talvez, a chave, claro, a chave, a procurá-la nos bolsos, como sempre sucede, nunca está onde esperamos, a assapada manápula dele estendida, reparei nos deditos curtos para a palma que mais parecia uma frigideira, parecia uma mão desenhada por uma criança, riscos a representar os deditos e uma bola no lugar da frigideira, sorri a esta comparação, após o tempo necessário, afinal, a chave estava no lugar mais óbvio: na ignição; ao vê-lo subir para a viatura e simultaneamente ouvir o grito dos amortecedores, nasceu-me uma indizível angústia, pareceu-me sentir a dor da viatura, ele ocupava quase toda a frente interior do carro, nem vestígios dos dois lugares, baixou o vidro e sorridente “Não se preocupe, o carrito voltará como novo!,” as ruínas dentárias também se despediram e lá se encaminharam para o chaço de onde vieram, permaneci onde estava, não lhes quis transmitir desconfiança, a minha indizível angústia advinha somente pelo sofrimento dos amortecedores, passados dois ou três dias, o telefone “Já está pronto o seu carrito…,” a cena repete-se, a carro a entrar na rua, ele ocupava quase toda a frente interior, nem vestígios dos dois lugares, o chaço atrás, ambos estacionam, percebo-lhe um saco-de-plástico pela assapada manápula, as peças que mudara, sinal de honestidade, gostei, começou a recitar a operação empreendida ao paciente com ar de um circunspecto cirurgião, eu, em verdade, só queria saber se os amortecedores sobreviveram, porém, antes de tudo, tive, uma vez mais, de assistir àqueles dois iluminados, num reverencial silêncio, a contemplar o carro.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.