Um dos
encantos da noite, desde miúdo, reside no fascínio de olhar as janelas iluminadas em volta, como se, por aí, o lar que
nunca encontrei entre as paredes onde habitava, como se, por aí, o paraíso que
sempre procurei, ou seja, o lugar onde me compreendessem, até hoje o procuro,
duvido que o encontre, pelo menos, caída a noite, vou até uma janela e olho as
luzes das casas em volta, tudo numa aparente serenidade, a
dor do mundo parece ter partido para um lugar demasiado longínquo, onde nem a
imaginação a alcança, quando olho as janelas iluminadas em volta, faço-o no melodioso silêncio nocturno, jamais com música, seria
supérfluo, basta-me, de facto, o melodioso silêncio nocturno, este meu lado
sonhador felizmente ainda não me deixou, se tivesse sucedido, ser-me-ia
impossível redigir estas linhas sobre janelas iluminadas em volta, ainda hoje,
caída a noite, olho as luzes das casas em redor, a minha atenção demora-se
sobretudo onde não vislumbro o écran que tudo devora em
redor (Quantos anos de verbo, numa família, são calados? Quantos estranhos
se edificam, entre paredes, à volta desse écran? Quantos sonhos ficam por
partilhar? Quantos não partiram sem tempo para um gesto de adeus?), pois, como
dizia, a minha atenção demora-se sobretudo em janelas onde não encontro o
tremeluzir desse écran, algo de encantatório, para mim, nesses espaços, um eco
de poesia, uma musicalidade prenunciada,
talvez porque, entre paredes, esse écran, que tudo devora em redor, imperasse,
todos o reverenciavam, por algum motivo tinha uma posição central na sala, o
lugar de uma divindade imposta para todos adorarem, foi, mais ou menos, nessa
altura que se iniciou, em mim, a compreensão de tal absurdo, devia haver
lugares, neste mundo, onde me compreendessem e a dor tenha partido para uma
demasia longínqua, onde nem a imaginação a alcance, continuo a acreditar,
quando olho janelas iluminadas em volta, que por ali o sentir encontre a
palavra, e o que nos habita encontre eco num outro, lembro-me de, numa janela
iluminada, ver um sujeito à secretária, já de madrugada, calava a obscenidade
branca de folhas numa escrita resoluta, sabia por onde caminhava, a perspectiva
que se me oferecia não permitia ver-lhe o rosto, a divisão apenas iluminada
pelo candeeiro sobre o tampo da secretária, fascinava-me
olhar a caneta, linha após linha, a formar um todo só por ele conhecido, eu,
incrédulo, assistia a um acto demiúrgico, senti-me um privilegiado, talvez um
romance, ou o relato das suas múltiplas viagens pelo mundo, um viajante cansado
que, por fim, ali assentou, e agora resolveu verter, em papel, madrugada após
madrugada, à luz daquele candeeiro sobre o tampo da secretária, o tanto que
vivenciou, poesia não me pareceu, sim, era prosa, disso tenho a certeza,
escrevia embalado pelo melodioso silêncio nocturno, nunca me ocorreu, durante o
dia, olhar para aquela janela, de certa forma compreendo-o, a luz do dia turva
os pormenores, as janelas tornam-se herméticas, a vida parece ter partido para
um qualquer outro lugar, como se tivesse perdido interesse pelos que caminham
sob o sol, numa outra janela iluminada,
havia um casal de velhotes, cada um sentado no seu cadeirão, o écran
tremeluzia, embora não parecesse emitir qualquer som, como se, no fundo, para
aquele casal de velhotes, o próprio écran, em silêncio, constituísse a sua
janela iluminada, ela tricotava numa elegância serena,
a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, ele com um jornal ou
uma revista, percebia-se-lhes diálogo, o silêncio do écran contribuía para esta
convicção, volta e meia um gato pulava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, para
o braço do cadeirão onde ela estava, nunca o vi pular para o cadeirão onde o
velhote com um jornal ou uma revista, a visão do gato, entre os velhos,
conferiu o calor que me permitiu soletrar “lar” àquela janela
iluminada, a vida por ali ainda se mobilizava, numa elegância serena, a
compreensão do desperdício da fúria e das pressas, certa madrugada, uns andares
mais abaixo, pela iluminada janela, retive-me a olhar um casal, de pé, a
conversar com o filho, sentado, olhava a carpete, teria a minha idade nessa altura,
adolescente, havia seriedade nas expressões dos pais, o filho com a carpete,
mas de ouvido atento, percebi diálogo, jamais discussão, quiçá um daqueles
momentos decisivos, nesta caminhada, em que os pais são cruciais para, no
amanhã, o adulto não coxear, um pormenor ressaltou-me de imediato, apesar de
permanecerem em pé, pai e mãe jamais cruzaram os braços, por aquela janela
iluminada censura e derrota não tinham espaço de entrada, talvez se, o
adolescente levantasse o olhar da carpete, concluísse o mesmo que eu.
Livros do Escritor
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Nocturnos
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