Livros do Escritor

Livros do Escritor

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Nocturnos


Um dos encantos da noite, desde miúdo, reside no fascínio de olhar as janelas iluminadas em volta, como se, por aí, o lar que nunca encontrei entre as paredes onde habitava, como se, por aí, o paraíso que sempre procurei, ou seja, o lugar onde me compreendessem, até hoje o procuro, duvido que o encontre, pelo menos, caída a noite, vou até uma janela e olho as luzes das casas em volta, tudo numa aparente serenidade, a dor do mundo parece ter partido para um lugar demasiado longínquo, onde nem a imaginação a alcança, quando olho as janelas iluminadas em volta, faço-o no melodioso silêncio nocturno, jamais com música, seria supérfluo, basta-me, de facto, o melodioso silêncio nocturno, este meu lado sonhador felizmente ainda não me deixou, se tivesse sucedido, ser-me-ia impossível redigir estas linhas sobre janelas iluminadas em volta, ainda hoje, caída a noite, olho as luzes das casas em redor, a minha atenção demora-se sobretudo onde não vislumbro o écran que tudo devora em redor (Quantos anos de verbo, numa família, são calados? Quantos estranhos se edificam, entre paredes, à volta desse écran? Quantos sonhos ficam por partilhar? Quantos não partiram sem tempo para um gesto de adeus?), pois, como dizia, a minha atenção demora-se sobretudo em janelas onde não encontro o tremeluzir desse écran, algo de encantatório, para mim, nesses espaços, um eco de poesia, uma musicalidade  prenunciada, talvez porque, entre paredes, esse écran, que tudo devora em redor, imperasse, todos o reverenciavam, por algum motivo tinha uma posição central na sala, o lugar de uma divindade imposta para todos adorarem, foi, mais ou menos, nessa altura que se iniciou, em mim, a compreensão de tal absurdo, devia haver lugares, neste mundo, onde me compreendessem e a dor tenha partido para uma demasia longínqua, onde nem a imaginação a alcance, continuo a acreditar, quando olho janelas iluminadas em volta, que por ali o sentir encontre a palavra, e o que nos habita encontre eco num outro, lembro-me de, numa janela iluminada, ver um sujeito à secretária, já de madrugada, calava a obscenidade branca de folhas numa escrita resoluta, sabia por onde caminhava, a perspectiva que se me oferecia não permitia ver-lhe o rosto, a divisão apenas iluminada pelo candeeiro sobre o tampo da secretária, fascinava-me olhar a caneta, linha após linha, a formar um todo só por ele conhecido, eu, incrédulo, assistia a um acto demiúrgico, senti-me um privilegiado, talvez um romance, ou o relato das suas múltiplas viagens pelo mundo, um viajante cansado que, por fim, ali assentou, e agora resolveu verter, em papel, madrugada após madrugada, à luz daquele candeeiro sobre o tampo da secretária, o tanto que vivenciou, poesia não me pareceu, sim, era prosa, disso tenho a certeza, escrevia embalado pelo melodioso silêncio nocturno, nunca me ocorreu, durante o dia, olhar para aquela janela, de certa forma compreendo-o, a luz do dia turva os pormenores, as janelas tornam-se herméticas, a vida parece ter partido para um qualquer outro lugar, como se tivesse perdido interesse pelos que caminham sob o sol,  numa outra janela iluminada, havia um casal de velhotes, cada um sentado no seu cadeirão, o écran tremeluzia, embora não parecesse emitir qualquer som, como se, no fundo, para aquele casal de velhotes, o próprio écran, em silêncio, constituísse a sua janela iluminada, ela tricotava numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, ele com um jornal ou uma revista, percebia-se-lhes diálogo, o silêncio do écran contribuía para esta convicção, volta e meia um gato pulava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, para o braço do cadeirão onde ela estava, nunca o vi pular para o cadeirão onde o velhote com um jornal ou uma revista, a visão do gato, entre os velhos, conferiu o calor que me permitiu soletrar “lar” àquela janela iluminada, a vida por ali ainda se mobilizava, numa elegância serena, a compreensão do desperdício da fúria e das pressas, certa madrugada, uns andares mais abaixo, pela iluminada janela, retive-me a olhar um casal, de pé, a conversar com o filho, sentado, olhava a carpete, teria a minha idade nessa altura, adolescente, havia seriedade nas expressões dos pais, o filho com a carpete, mas de ouvido atento, percebi diálogo, jamais discussão, quiçá um daqueles momentos decisivos, nesta caminhada, em que os pais são cruciais para, no amanhã, o adulto não coxear, um pormenor ressaltou-me de imediato, apesar de permanecerem em pé, pai e mãe jamais cruzaram os braços, por aquela janela iluminada censura e derrota não tinham espaço de entrada, talvez se, o adolescente levantasse o olhar da carpete, concluísse o mesmo que eu.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.