Livros do Escritor

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domingo, 22 de dezembro de 2024

Indulgência

 


Dizia-se, por aqueles lados, nunca lhe ouvir um insulto, uma ofensa, um azedume, um grito, uma reprimenda, o timbre sempre discreto, como se um apelo à compreensão e ao serenar, vivia num rés-do-chão, não se lhe conhecia outros paradeiros, com o seu canário, saía de casa apenas para as compras ou a obrigatória Eucaristia-Dominical, pouco mais, se alguém apelasse à sua ajuda, por este ou aquele motivo, nem hesitava, era uma casa modesta, sala, cozinha, quarto e casa-de-banho, para ali se mudaram, ela e o marido, há pouco mais de três décadas, houve quem dissesse que tinham muitas posses, no entanto, o desespero da luta contra o vício do único filho quase lhes levou tudo, até a saúde do marido, partira há dezoito meses, o filho partiu bem antes, há pouco mais de três décadas, tentaram de tudo (clínicas de desintoxicação, mudança de casa para ver se outras companhias, colégios internos, curandeiros de vária ordem, ameaça de deserdar…), cada dia mais magro, pálido, alienado, só se alimentava da crescente subtracção da alma, o negócio do pai minguava simultaneamente, a energia não dava para tantas frentes de batalha, ela tentava compreender o porquê de o filho tanto querer subtrair a alma, sem um insulto, uma ofensa, um azedume, um grito, uma reprimenda, o timbre sempre discreto, como se um apelo à compreensão e ao serenar, talvez equacionasse até que a falha pudesse ser sua, neste ponto, o pai mais radical, sabia que o mimo não augura bons destinos, certa madrugada, o mal quase sempre espeita na obscuridade, a insistência demasiada do telefone, um grito ameaçador de todos acordar por aqueles lados, contrariado foi o pai atender, sem antes o desencontro dos pés com os chinelos, o soalho a relembrar-lhe Inverno e madrugada, levanta-se acompanhado de um enorme bocejo e com a convicção de que as notícias seriam tão ou mais sombrias que a própria madrugada, ela acordara ao mesmo tempo, mas deixou-se estar, não quis agudizar o seu contrariado erguer, deitada talvez enfrentasse melhor a obscuridade que se avizinhava daquela insistência demasiada do telefone, um grito ameaçador de todos acordar por aqueles lados, ouve o silenciar do grito ameaçador, ele, a tentar suavizar a rouquidão e também o receio da prenunciada obscuridade, com um “Sim…” deveras arrastado, não ouviu o auscultador a ser devolvido à procedência, quando olhou para a ombreira do quarto, já o marido lá estava, se lhe perguntassem quantos minutos passaram desde o deveras arrastado “Sim…”, se dois, três, quatro ou cinco minutos, jamais conseguiria responder, para ela, o tempo suspendera-se, as palavras foram proferidas pelo olhar, lágrimas e gestos, há lugares onde a palavra é um excesso, o funeral foi três dias depois, tanto quis subtrair a alma que acabou por abandonar o corpo, ele sabia há muito quem pôs este veneno a correr pelas ruas, amaldiçoou-os entredentes, no dia em que foram enterrar o que seria o seu futuro, uma vizinha coloca-lhe a mão no ombro e “Depois disto, ainda acreditas em Deus?”, ela, sem nunca levantar o olhar dos pés, com a suavidade possível na voz, “Mais do que nunca! Ela partira há muito daqui… Só o corpo se arrastava por este lado… Há maior gesto de misericórdia?”, não sabemos se a vizinha atingira o alcance das suas palavras, no mínimo terá lido incongruência fruto da dor, há muito ela compreendera a essência  das coisas, desejo e acontecer raramente coincidem neste caminhar, por conseguinte, ela simplesmente resolveu sorrir e confiar em Deus ou no destino, como lhe queiram chamar, embora fosse crente, apesar de a vida tanto a subtrair, pelo menos jamais lhe conseguirá tirar Deus, como esse facto lhe estruturou a fé, e como a fortaleceu, passou a olhar à sua volta relativizando minudências que tanto perturbam e enraivecem os outros, teve uma fase da vida em que lera muito, os seus pais chegaram a preocupar-se, achavam-na distante da realidade, era precisamente o oposto, tacteava-lhe a essência, entre milhares e milhares de frases, houve uma que lhe norteou os passos de cada dia (“Um sorriso tudo grita e tudo cala”), nunca se lhe viu uma lágrima, eram dolorosamente interiores, também houve quem afirmasse que as secara muito cedo, aquando de uma partida… Mas são suposições, há dezoito meses, pouco depois da partida do marido, numa terça-feira de manhã, a campainha, era uma senhora, com uma pasta, uma fala delicodoce que logo a desagradou, embora o sorriso lhe fosse indestrutível (“Um sorriso tudo grita e tudo cala”), a chamar a atenção para os seus quase oitenta anos, o facto de viver só, os benefícios da sua entrada num lar, o acompanhamento diário da sua saúde, a interacção com os outros idosos, a segurança, não permitiu que a pasta e a fala delicodoce transpusessem a porta, percebeu logo ao que vinha, apenas lhe perguntou: “Cometi algum crime para ser institucionalizada?” A verborreia delicodoce esmoreceu um pouco, deixou-lhe um cartão, com o contacto, para qualquer eventualidade, logo depositado no lixo doméstico, há muito ela compreendera a essência  das coisas, desejo e acontecer raramente coincidem neste caminhar, por conseguinte, ela simplesmente resolveu sorrir e confiar em Deus ou no destino, como lhe queiram chamar, foi até à janela da cozinha, dava para o estacionamento da praceta e apanhava uma das extremidades do campo de jogos, ali estavam um pai com o filho pequenito num triciclo, nunca os vira por ali, deixou-se estar mais um pouco a observá-los, inspirou longamente, pois, tudo no mundo parecia estar no seu lugar.

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