Quem
morava na rua das Alfazemas? Todo o mundo ali morava, afinal, numa rua cabem os
sonhos vivos e enterrados de cada um de nós, logo após o almoço, ela vinha para
a janela, ali ficava até à hora da janta, sabia das rotinas de cada um, mas era
um saber-lhe amargo, não era isso que a levava até à janela, mas o que já não
encontrava por casa, afinal, numa rua cabem os sonhos vivos e enterrados de
cada um de nós… Há quanto tempo ela morava na rua das Alfazemas? Foi depois de,
sim, foi depois disso, ainda foram remetentes de outras moradas, talvez duas ou
três, até que assentaram na rua das Alfazemas, ele partiu há três anos, mais
concretamente trinta e nove meses, foi de madrugada, parece-lhe que foi ontem,
de repente, algo a chamá-la para o lado de cá das coisas, o telefone parecia
contorcer-se para que ela o viesse silenciar, por ter de se socorrer de um
candeeiro para lhe alumiar os passos, lá fora, o mundo ainda uma harmonia de
silêncios e sombras, o frio do momento fê-la cobrir-se, de imediato, com o robe
e valer-se também de um xaile, compreendeu que a vida ainda não recomeçara,
pelo contrário, despedia-se, antes de silenciar aquele obsceno grito na noite
do mundo, sabia o que ia ouvir, sentiu-o no peito antes do silêncio pelo
auscultador levantado, o coração partira de si para um qualquer lado, o pensar
uma tela branca, por fim, uma voz mecânica, que mal conseguia disfarçar a total
ausência de um calor sentido, informou-a de que o marido se finara, há uns
minutos, em paz, o que lhe ficou, desse momento, foi a imagem de um imenso
deserto diante de si, nada mais, afastou o auscultador, do outro lado, a voz
mecânica persistia no seu desfiar de trivialidades, acalme-se, por favor, queira sentar-se… Quer que lhe mande algum apoio?
Está-me a ouvir? Tem a certeza de que está bem? Ouça, infelizmente esta era uma
situação expectável… Pense que, ao menos, o seu marido não sofreu… Partiu em
paz… Um dia, irá juntar-se-lhe, acredite, lembre-se… Desligou, que sabia
aquela voz ou qualquer outra de situações expectáveis e de partidas em paz,
não, não se sentou, foi para a janela olhar o céu, há quanto não assistia ao
nascimento da vida, tudo se inicia com um tímido alaranjar a Este, uns veios de
luz que trazem substância às coisas, e o movimento na terra acompanha os passos
da luz, como se tudo fosse um coro imemorial a saudar a vida, pensamentos assim
passaram-lhe pelo espírito, saudar a vida, tão longe estava de tais desígnios,
um imenso deserto diante de si, nada mais, ainda foram remetentes de outras
moradas, talvez duas ou três, até que assentaram na rua das Alfazemas, e dali
ele partiu para uma morada incógnita, a última, a por todos conhecida e por
todos sempre ignorada, é acometida de um cansaço súbito, cede às horas de sono
por cumprir, ao desgosto, à frieza doravante dos lençóis, à solidão
impronunciada de cada sombra lá de casa, e um imenso deserto diante de si,
agora, lá fora, a luz era demasiada para as cores do seu pensar, não sabe se a
luz ou o movimento próprio da vida, talvez fosse o todo, correu a cortina e deitou-se
à espera de não sabe o quê, mais de quarenta anos com ele a seu lado, tinha a
qualidade rara de ser um edificador de sonhos, em verdade, nunca os alcançava,
contudo, assim que se diluíam, logo partia em busca de um outro, assim foi
quando de regresso à metrópole, após mais de uma década de África, onde se
conheceram, encantou-se com aquela aparente segurança, que mal disfarçava a
criança que, até hoje, se recusa a caminhar às escuras pela casa, mais duas
solidões originaram um casamento, não há assim tantos anos tudo desaguava em
casamento, no que respeita a partilhar vidas, depois começaram as dúvidas, as
inevitáveis questões atiradas de fora, a cada instante, como pedras em feridas
ainda por cicatrizar, Então, para quando
um herdeiro? Não me digam que não está no vosso horizonte? Preferem menino ou
menina? Não acham que já está na altura? Estão a deixar para muito tarde… Não
vos parece? Assim era, mal saíam de casa, pedras vindas de todo e qualquer
lado, algumas bem traiçoeiras, como doíam, ela pensou ser a fonte do problema,
não se esquivou, pelo contrário, médico, exames, do seu lado, estava tudo bem,
era uma fonte segura, afinal, ele é que… Nunca lhe mostrou qualquer exame,
escondeu-os no fundo de uma gaveta sua, de roupa interior, até que, certo dia,
resolveu mesmo deitá-los no lixo mais próximo, entre eles nunca houve acusações
nem censuras por isto, ela, até hoje, nunca soube se ele tinha consciência da
sua infertilidade, talvez sim, mas é apenas uma suposição, é curioso, mais de
quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre
um homem e uma mulher, no fundo, ambos perceberam que já bastavam as
inclementes pedradas exteriores, como doíam, não era preciso, entre eles,
elevar os ecos da dor, quando aterraram na metrópole, obrigados por uma súbita
incerteza que se instalou em cada canto da sua, e de todos os outros,
existência, nada traziam, bolsos famintos, olhares caídos, o amanhã apenas um
medo, olhavam os outros regressados nas mesmas circunstâncias, e perceberam que,
dos anos de África, ao menos, traziam, pelas mãos, o fruto de algo chamado
amor, eles nem esse desígnio atingiram, mesmo assim, lá seguiram em frente,
como não podia deixar de ser, mais de quarenta anos a partilhar tectos e
lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, à noite,
antes do sono assumir o leme do pensar, ela incessantemente revisitava o
passado, e assim percebia a outra que se negara ser, ou que a vida lhe
subtraíra, com indisfarçável esforço, resolve levantar-se, ele partiu há três
anos, mais concretamente trinta e nove meses, foi de madrugada, acredita que
ele a espera em algum lugar, longe das inclementes pedradas exteriores, como
doíam, abre a cortina, já é noite, a rua num silêncio iluminado pela luz
derramada dos candeeiros, os lençóis na cama persistem no seu frio há mais de
três anos, se, ao menos, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, quando
regressaram de África, se não houvesse tanto silêncio sob um tecto, entre um
homem e uma mulher, talvez a vida uma outra, e possivelmente uma existência
fosse resgatada de um estigma de nome orfandade, lá fora nem um carro se ouve,
se alguém ali passasse, àquela hora, diria que tudo está em paz na rua das
Alfazemas.
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