Livros do Escritor

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domingo, 8 de dezembro de 2024

Desolação III

 



Assim que abriram a porta do quarto, de novo a sensação de imutabilidade, nada se havia alterado, nem o cheiro, um quê a flores-silvestres e a madeira, para trás ficou o varandim, as águas verdes do rio que, pouco mais à frente, abraçam o mar, o ar povoado pelo cântico estival das cigarras, como se um grito da vida, efémero, trágico, mas que o mundo ouve, os olhos dela em tristeza pelo fim anunciado da doçura daquelas águas, entraram dois naquele quarto, saíram três, nada disseram, tudo se gritava entre eles, de novo, o equívoco de ali terem regressado, quantas vezes ele desejou que o pensar se apiedasse de si, jamais, incessante, feroz, nem por um fragmento de tempo o largava, neste ponto, sabia-a mais quieta, tranquila, como se em cadência com o vagar do dia, assim que a porta do quarto se fechou, ele abriu a janela e ficou a contemplar o possível de montes e águas-esverdeadas, ela a desfazer a mala, queria povoar o quarto da sua identidade, ele procurava-se, ela derramava-se, nesse momento estavam de costas, o silêncio do pensar – entraram dois naquele quarto, saíram três –, as minudências acabam por despertar o verbo, saíram do quarto já a tarde em despedidas, desceram a rua principal até à praia, a ligeireza do ar permitiu-lhes sorrir, lá estava a pastelaria do ontem, um espelho onde ambos gostaram de se rever, ao menos por ali não havia vozes com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, tudo como dantes, excepto um ou outro apontamento da denominada modernice, no regresso lá entrariam, havia neles uma latente urgência de reencontrar a praia onde as águas verdes do rio abraçam o mar, sobretudo da parte dele, sempre encontrou ali algo de hipnotizante, o único local com o dom de permanentemente se metamorfosear, ou pela luz, ou pelas areias emergentes aquando da vazante, o seu espírito aquietava-se, como se exorcizasse de si todas as noites somadas neste caminhar, ela chegou aqui depois, pela mão dele, também se sentiu esperada neste lugar onde as águas verdes do rio abraçam o mar, o olhar dele acabava por se perder inevitavelmente pelas areias ora douradas, ora alaranjadas, da margem Sul, ali só um cafezito de madeira como testemunha de haver homem no mundo, daí o seu fascínio, acabava  por ali repousar o olhar e assim  iluminar sonho, ela sempre lhe respeitou os silêncios, talvez intuísse haver nele divisões  onde nem à porta queria passar, não se trata do incomunicável de nós, mas onde sepultamos os nossos sonhos, quantos sonhos suporta um homem? Quantos sonhos suporta uma mulher? Talvez a mulher, pelo seu carácter prático, seja mais lesta a sepultá-los, ou talvez seja o inverso, pois, não sei, ele, como o miúdo que foi, e ainda é, segundo o próprio, olhava para Sul, como desde sempre o fez, a intuição ditava-lhe que talvez na distância o pensar se apiedasse de si, ou por ali, quem sabe, houvesse sonhos à sua espera (quantos sonhos suporta um homem?), ela sabiamente apoia o rosto no seu ombro, num gesto pede-lhe para regressar da lonjura do Sul e, ao mesmo tempo, diz-lhe que alguém o espera, nunca foi insensível a tais singelezas, no rosto desenha-se-lhe um sorriso de gratidão, pensou no que leva um homem, com um tesouro ao lado, a olhar a distância, coisa mais estranha: a beleza das coisas morar num indefinível ponto só tangido pelo pensar; o grito de uma gaivota anunciou o aproximar da noite, ela ainda com o rosto no seu ombro, olhou-a e percebeu-lhe tristeza, ela, neste momento, acompanhava uma mãe, com infinita paciência, a limpar a areia, lá em baixo, na praia, dos pés do filho, teria uns três anos, preferiu manter o silêncio, os argumentos para justificar “entraram dois naquele quarto, saíram três” há muito se lhe esgotaram, bem como a paciência, facto, não foi a sua fonte a secar, mas a dela, antes de entrar naquela sala, as ocas palavras de incentivo (Incentivo para quê? Para o indesejado? Há fases, numa vida, para o amor? Para acolher uma vida nos braços?): “Vai correr tudo bem! Não te preocupes! Tudo voltará a ser como dantes…”: nada foi como dantes, uma fonte ali secou, se o olhar dele, há pouco, pelas areias ora douradas, ora alaranjadas, da margem Sul, o dela simplesmente uns metros abaixo, nos degraus, de madeira, para o areal, onde uma mãe, num zelo só possível à maternidade, procura o último grão de areia dos pés do filho, este segura um avião de plástico nas mãos, em si talvez o desejo da distância, ela reflectiu no que leva um garoto, com um tesouro ao lado, a olhar a distância, ele tentou juntar palavras que os levassem a regressar, não as encontrou, ainda menos que fizessem sentido, nada tinha substância perante a cena a que ela desoladamente assistia, por fim, ela levantou o rosto do ombro dele, com o olhar soletrou-lhe “Entrámos dois naquele quarto, saímos três.”

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