Assim que ali entrei, depois de folhear três ou quatro revistas, que, de certa forma, reclamavam um merecido descanso, de tão manuseadas serem, além do evidente atestado anacrónico, bastava atentar nas temáticas, não era necessário o preciosismo de verificar devidamente o cabeçalho, espalhadas numa mesa, bem à nossa frente, depois de também percorrer, por mais que um par de vezes, os outros para ali sentados, suficientes para não haver cadeiras vagas, mais elas, é verdade, sinal dos tempos, o feminino aprendeu a determinação, também me olharam, os outros para ali sentados, mais que uma vez, percebi isso, o mais velho devia andar próximo dos quarenta, talvez já tivesse dobrado esse cabo, vinha dentro de um fato habituado a estes cenários, estava sentado muito direito, ao colo uma mala, de couro, coçada em várias partes, também velha viajante destas paisagens, percebia-se-lhe a nervoseira pelo permanente oscilar de joelhos, embora se revestisse de uma expressão imperturbável, como se soubesse ao que vinha, pois, a aparência, a geada da madrugada que se dilui ao irromper da luz primeira de um recomeço, no anelar esquerdo o flagrante vazio, num gritado branco, de um anel retirado, talvez na velocidade da raiva, talvez na lentidão dolorosa do arrependimento, talvez na lucidez fria de quem olha o fim chegado, quem sabe se daquele gritado branco não ficaram despojos, que oscilam, aos fins-de-semana, entre lares, desde que olham o mundo, abaixo da altura de um banco, compreendem na carne do sentir o ser-se indesejado, seres apátridas submergidos na veloz e tumultuosa corrente do hoje, sem direito a réplica, ainda olham o mundo, abaixo da altura de um banco, e já sabem que, entre um homem e uma mulher, para sempre é uma expressão votada a um tempo algures adormecido nos idos da História, foi isso, abaixo da altura de um banco, o que o mundo lhes ensinou, mesmo em frente, uma mulher mais jovem que eu, não devia ter deixado os bancos da faculdade há muito, não sei porquê, mas foi o que me pareceu, havia nela um traço de arrogância de quem se distanciou em demasia da realidade, mas que se vai gradualmente esbatendo à medida que compreendemos a distância entre uma ideia, traduzida por caracteres, gravados na impessoalidade branca de uma página, e a agonia de uma viagem, em hora de ponta, num qualquer transporte público, devia morar em casa dos pais, é possível, denotava-se-lhe ainda aquela segurança de quem desconhece o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, usava as roupas do hoje recicladas, como sempre acontece, ao ontem, não se conseguia perceber se bonita ou feia, tal a dose de efeitos especiais providenciados pela maquilhagem, ao contrário do quase quarentão, permanecia impassível no lugar, de certa forma, parecia mais curiosa do que outra coisa, como se uma exploradora num território inóspito, de facto, desconhecia o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, a dada altura, começou o entra e sai de um gabinete, cada um demorar-se-ia cerca de uma dezena de minutos, percebi que, para o efeito, usaram a ordem de chegada, pareceu-me justo, por fim, ouvi o meu nome, numa voz sumida, do interior do gabinete, levantei-me e avancei, entrei ao mesmo tempo que fechava a porta atrás de mim, deparei-me com um sujeito um pouco mais novo que eu, nem se dignou a levantar para me cumprimentar, estava dentro de um fato impecavelmente engomado, a gravata condizente, para já, no conjunto, só os modos a destoar, e o cabelo, que insistia em reflectir a luz do tecto por um desencontro de há muito com o champô, os gestos transpareciam a indolência de quem cumpre um papel a contragosto, e a expressão não desmentia o enfado, pelo contrário, só o acentuava, era outro que desconhecia o flagelo da calculadora para se manter à tona até ao final de cada mês, estendeu-me a mão sem me olhar o rosto, optei pela educação, encontrei uma mão pequena e oleosa, um cumprimento débil, talvez um eco do seu carácter, ouvi, uma vez, que o carácter de um homem se vê pelo vigor do aperto de mão, não sei se é conversa resultante da soma de testosterona e álcool, mas reconheço-lhe alguma credibilidade, e aquele afigurou-se-me um exemplo flagrante, “Ora vem-se candidatar ao…”, optei por encurtar o diálogo e ir ao cerne da coisa, “Sim, e aqui tem o meu currículo”, enquanto lhe estendia uma pasta, com umas quantas folhas impressas, por ali andavam muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, vencia um monte, naquele cume pensei repousar, mas, ali chegado, só encontrei a sombra de um outro ainda mais alto, logo iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas meu, o sujeito virou as folhas, não sem antes levar o indicador à boca, nem conseguia disfarçar o desinteresse, o facto de nem estar a ler, finalmente, devolveu-me a pasta, “Pois, de facto, tem um currículo muito interessante… Como deve calcular, para já, não podemos garantir nada. A ver vamos… É uma questão, se for seleccionado, de aguardar o nosso contacto. Tenha um bom dia!” E lá me estendeu, pela segunda vez, aquela sua mão untuosa, seguiu-se o cumprimento débil, talvez um eco do seu carácter, levantei-me, dirigi-me para a porta, antes de sair, observei o sujeito, nem que fosse uma vez, teria de o ver de cima, claro que nem se apercebeu destas minhas conjecturas, perdido que estava no seu próprio enfado de despachar papéis, sem se aperceber que despachava vidas, que nessas folhas que teatralizava ver, havia muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, muitos montes vencidos, e quando se julgava poder repousar, ainda a arfar pelo cume conquistado, só a sombra de um outro ainda mais alto, logo se iniciava nova escalada, com a esperança de alcançar nesse outro cume o merecido repouso sob a luz revigorizante de um sol apenas seu, mas era o suíno que se sentava atrás de uma secretária, era o suíno que decidia quem teria a possibilidade de lutar, na manhã seguinte, pelo pão de cada dia, nestes momentos, sinto-me um viajante que caminha por cenários longínquos, já não reconheço o meu mundo, um suíno atrás de uma secretária, que leva o indicador à boca para virar folhas, onde estão impressos muitos sonhos seguidos de outras tantas frias manhãs, saio para o que resta da tarde, no ponto onde estava no passeio, percebo a sombra derramada pelo edifício em frente, terei de iniciar uma nova escalada…
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