Livros do Escritor

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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Desolação IV

 


Ele já se inclinava para o regresso, no entanto, ela ainda com o areal, onde uma mãe, num zelo só possível à maternidade, procura o último grão de areia dos pés do filho, este segura um avião de plástico nas mãos, em si talvez o desejo da distância, num último esforço, entrelaça-lhe, com suavidade, os dedos na mão, e tenta erguê-la, para a afastar de um quadro de dor, ela cede, talvez pelo vazio de si, nem meia-dúzia de passos depois, percebe o olhar, uma vez mais, no areal, há vazios, neste caminhar, que levaremos connosco, as minudências acabam por despertar o verbo, concordaram que gente e barulho a mais, quando ontem tudo parecia no seu lugar, é um facto: ontem tudo parecia no seu lugar; ambos sabiam a razão, tantos anos depois, do seu regresso ao local das primeiras férias juntos, esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, embora jamais o verbalizassem, em verdade, procuravam compreender se, entre eles, tudo estaria no seu lugar ou se nem vislumbres de quem foram, quantas vezes um homem e uma mulher se perderam e insistem no equívoco de caminhar juntos, quando olham em direcções distintas passaram a ser apenas uma memória, ela jamais esqueceu, há quem insista em dizer perdoar, o facto “de lhe relembrar os imperativos da existência do hoje: o curso, a urgência de um trabalho, o choque ou desgosto das famílias por tanta imprudência, a escassez de recursos para chegaram dois, mas regressaram três;” o passado sempre ao alcance de um simples olhar, de uma palavra, de um som, da incessante procura por um grão de areia nos pés de uma criança, quem os visse de uma certa distância compreendia-lhes derrota nos passos e no rosto, como se sobre os seus ombros tantos e tantos sonhos sepultados, o olhar dela em si mesma, como se estivesse irremediavelmente presa num lugar ou situação lá bem atrás, curiosamente nunca respondia à primeira, tinham sempre de lhe repetir a questão, os mais próximos, sobretudo ele, temiam problemas auditivos, nada disso, era apenas o tempo de se regressar, ficara irremediavelmente presa num lugar ou situação lá bem atrás, ele, pelo contrário, olhava constantemente em volta, como se na procura de ponto de fuga que lhe permitisse a redenção de si mesmo, já pouco tinham para se dizer, nem espelhos, em volta, encontravam de quem haviam sido, à medida que subiam a rua principal, que atravessa a povoação caiada de branco, com, pelo menos, o triplo dos carros, os passeios sem vagas para mais transeuntes, tão longe das primeiras férias juntos, como se todos, em Agosto, para ali se precipitassem, umas inquietantes e recém-chegadas sombras observam quem passa, ora estão pelos passeios, ora em lojecas com conteúdos manifestamente descontextualizados com uma povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, aquando das primeiras férias juntos, há tantos anos, nem vislumbres de tais sombras, pois, nada é por acaso, o possível verde de Sul cedia ingloriamente ao cinzentismo dos trolhas, não há quase lugar, no hoje, onde essas patas imundas não cheguem, essas inquietantes sombras, tragicamente disseminadas por todo o canto, apenas um reflexo de cinquenta-anos de trolhas ao leme, ele limitou-se a verter todo o desprezo pelo olhar, as inquietantes sombras nem um passo para fora das trevas, afinal, estavam onde pertenciam, quando chegaram perto da pastelaria, ele nem perguntou se…, para lá se encaminhou, embora ela o secundasse ligeira, por fim, um espelho luminoso do ontem, ao menos por ali não havia vozes com um timbre solene e, ao mesmo tempo, deveras irritante, tudo como dantes, excepto um ou outro apontamento da denominada modernice, abrira precisamente no ano das suas primeiras férias juntos, muito irreverente para esta povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, a dona era, na altura, uma trintona, anafada, um quê de histeria,  com uma dose exagerada de prepotência, de quem sabe ter escolhido o lugar e o negócio certos, acrescente-se o tempo, factor determinante nesta equação, nada havia por ali que se assemelhasse, um conceito simultaneamente de pastelaria, padaria e mercearia, a inegável qualidade e fausta quantidade de produtos, nos meses de Verão, alimentavam as filas à porta, sobretudo de manhã, o entra e sai de veraneantes, sobretudo da capital, era constante, no fundo ali estava um espelho da sua proveniência, demasiados dias, numa povoação caiada de branco debruçada sobre o mar, sem um vislumbre do seu quotidiano, tornar-se-ia fastidioso, como a sujeita, uma trintona, anafada, um quê de histeria, com uma dose exagerada de prepotência, soube trazer-lhes um espelho do dia-a-dia à lassidão das férias, ficaram logo agradados pela disposição se manter - um conceito simultaneamente de pastelaria, padaria e mercearia –, não havia, por ali, vestígios de sombras inquietantes, pelo menos uma trintona, anafada, um quê de histeria, com uma dose exagerada de prepotência, sabia afastar as trevas da sua porta, o ar adocicado também subsistia, de repente, o tempo parecia ter-se suspendido e eles regressavam às primeiras férias juntos, a quem haviam sido, aproximaram-se do balcão, entreolharam-se, ambos sabiam o que pedir: “Um vislumbre de quem foram no hoje…”

Pedro de Sá

(17/12/24)

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