Livros do Escritor

Livros do Escritor

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Vazios


 

Há uns dias, não sei porquê, parei e olhei para um lugar significativo desta minha passagem pelo aqui, de facto, ignoro a razão de o ter fixado precisamente naquela tarde, pois ali passo de vez em quando, mas não me quero perder, como dizia olhei para um lugar significativo desta minha passagem pelo aqui, estive, há uns anos, ali por um imperativo-social, religioso e, acima de tudo, do sentir, o meu olhar de hoje vislumbrava o lugar onde se tiraram múltiplas fotos, à minha volta mais de uma centena, entre familiares, amigos, conhecidos, desconhecidos e até inimizades – também era um imperativo-social –, disse há pouco que olhei para um lugar significativo desta minha passagem pelo aqui, talvez não seja bem assim, quando o meu olhar percorreu aquela escadaria, encimada pelas pedras que nos relembram a existência de Deus, eu procurava reconstruir, pelo menos, uma das múltiplas fotos ali tiradas naquele dia, porém, foi-me impossível, tentei, voltei a tentar, esforcei-me de novo, só subtracções às originais, a minha mente não parava de somar subtracções, um terror assomou das funduras da minha alma sob a forma de uma questão: “Se fosse hoje, quantos ali estariam presentes?” Não parava de somar subtracções, tantos e tantos já partiram, e não foi há tanto assim que ali entrei por um imperativo-social, religioso e, acima de tudo, do sentir, senti-me perdido, esmagado, “Se fosse hoje, quantos ali estariam presentes?” Desde que nos lembramos de sermos, quantos vazios já somamos? Em verdade, a lista só termina quando também partirmos, essa é a ironia maior! Viuvez é feminina, o homem não tem tal dignidade, pela carência, fragilidade, o desamparo da solidão, a criança que jamais deixou de ser, a incessante procura pelo abrigo de um colo, enquanto a mulher sempre mais completa, fortificada, granítica, como se imune ao desamparo de caminhar só, não fosse ela fonte de vida, ninguém olha uma mulher só com compaixão, já um homem, pois, a incessante procura pelo abrigo de um colo… Há uns dias, num entardecer, chamaram-me a atenção para uma velhota, aprumada, vinha, sozinha, assistir ao adeus da luz à terra dos homens, ali permaneceu, entre as várias dezenas de espectadores, poucos eventos terão esta nobreza, durou cerca de uma dezena de minutos, quando, por fim, o adeus da luz se cumpriu, todos dispersaram, no entanto, o meu olhar procurou a velhota, para quem há pouco me haviam chamado a atenção, lá a encontrei, aprumada, de facto, mas pressenti-lhe um latente desamparo a cada passo, pelo vazio de agora, talvez, antes, ali viesse, todos os finais de tarde, acompanhada por quem lhe fazia nascer sorrisos no rosto, assistir ao adeus da luz à terra dos homens, ali permaneciam, abraçados, rostos para Oeste, a contemplar aquela singular melancolia de um adeus, assim que, no horizonte, nem memória do alaranjado de há pouco, regressavam a casa, talvez morassem perto, caminhavam abraçados ou de mão-dada, compreendi pelo latente desamparo a cada passo, devia haver confidências pelo caminho, risos, compreensão, desconheço se tem filhos, embora o latente desamparo a cada passo indicie que não, aquela mulher há muito se despediu do mundo, o seu sentir partiu com quem lhe fazia nascer sorrisos no rosto, que bela história de amor terá sido… No fundo, todas as histórias de amor são belas, por serem raras – não fosse o amor o mais raro bem deste mundo –, continuei a olhá-la, lá ia pelos passeios anoitecidos, aprumada, de facto, mas pressenti-lhe um latente desamparo a cada passo, talvez morassem perto, caminhavam abraçados ou de mão-dada, a certa altura pareceu-me vê-la sorrir, não, não foi impressão, ela sorriu, que bela história de amor terá sido…

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.