Livros do Escritor

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sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Que rosto contemplarei quando fechar os olhos pela última vez?

 



Percebi, há pouco tempo, que sou eu que procuro o mundo e não o mundo que me procura. Chegar a esta conclusão teve, claro, o seu quê de amargura, nunca é fácil percebermos, de repente, que a nossa campainha deixou de soar. Reconheço que já ando para aqui há algum tempo, não é que esteja para além dos limites, pelo contrário, ainda estou aquém dessas metas, contudo, muitos da minha leva já embarcaram na derradeira viagem. Ao contrário de outros, não a receio, tenho uma inesgotável curiosidade em saber onde me conduzirá, sempre ouvi falar em tantos destinos, desde horizontes de nuvens e criaturas aladas, a intermináveis fogos acompanhados de gritos lancinantes, outros dizem que se trata de uma pausa, para aqui regressar com outras vestes, há ainda quem defenda que tudo acaba, como se mergulhássemos numa noite imensa, onde não houvesse mais nada, nem nós mesmos, confesso que esta visão sempre me assustou um pouco, pelo absurdo da coisa, lembra-me, em certa medida, aqueles filmes que vemos numa ansiedade crescente e, de repente, terminam, de uma forma perfeitamente estúpida, sem um final condigno. Não, isto afigura-se-me insuportável, ando a matutar nestas coisas, e não é de agora, desde que o meu marido se finou, vai para doze anos, éramos tão amigos, tão companheiros, não havia melhor homem, recto, honesto, educado, muito educado mesmo, nunca lhe ouvi um palavrão, segurava-me sempre a porta, um autêntico cavalheiro, ainda dizia “ora, se faz favor”, o que eu rejubilava com o “ora, se faz favor”, tanta saudade, quando fazia a barba, por exemplo, nem um resquício pelo lavatório, nada, tão higiénico, nessa altura, de facto, a minha campainha soava mais, tinha as minhas amizades entre algumas vizinhas, nada de especial mas sempre nos entretínhamos a conversar disto e daquilo, das novelas às novidades do bairro corríamos tudo, confesso a minha preferência pela temática das novelas, daí que os laços de amizade, mais consistentes, fossem com as devotas dos infortúnios televisivos além-Atlântico. Nunca percebi aquelas mulheres que não viam novelas, ou que falavam disso com uma insensibilidade que me remoía. Havia uma, em particular, que morava num prédio em frente, também já morreu, coitada, que, uma vez, me chegou a dizer que detestava novelas. Veja-se só! Nem lhe respondi, lembro-me bem, encontrei-a nas compras, falávamos disto e daquilo, não, minto, ela só falava de preços, do galopante aumento das coisas, de multiplicar o almoço para o jantar, sem que os filhos se apercebessem, dizia que para dureza, nesta vida, já bastam as pedras da calçada,” vivia num pânico que o marido perdesse o emprego, enfim, um drama, e, inopinadamente, sai-se com esta, “Oh, vizinha?! Sinceramente, está-me a confundir? Eu vejo lá disso! É o que eles querem… Antes davam pão e circo, agora só dão o circo… Novelas e bola, mas os estômagos continuam vazios, e os espíritos a desaprender de sonhar… Peguei no saco, que havia pousado, para dois dedos de prosa, e segui, magoada, como é óbvio, a pensar como é que alguém podia detestar novelas… Ela nunca percebeu o meu azedume, também possuía as minhas artes do disfarce. O meu marido, éramos tão amigos, tão companheiros, não havia melhor homem, por exemplo, se estava a ver a bola, chegada a hora da novela, nem um óbice, de imediato dizia “ora, se faz favor”, o que eu rejubilava com o “ora, se faz favor”, e levantava-se para mudar o canal. Passado pouco tempo, adormecia, mas nem um vislumbre de ressonar, coitado, era compreensível, o cansaço do trabalho, àquela hora, vencia-o. Talvez por isso, não assistisse àquelas reconciliações tão emotivas, àqueles beijos sôfregos ao som de músicas que me apertavam o coração, talvez fosse por isso também que, em certas situações, tão distantes que preciso de esforçar a memória para as alcançar, fechasse sempre a luz e não admitisse que o lençol se levantasse nem um bocadinho, beijos sempre fugazes, quando íamos pela rua, volta e meia, dava-lhe a mão, enquanto recriava a cena do episódio vespertino, chegava mesmo a cantarolar a música, mas bastavam dois ou três passos, para ele logo me devolver a mão ao bolso do meu casaco. Não havia melhor homem, recto, honesto, educado, muito educado mesmo, nunca lhe ouvi um palavrão, segurava-me sempre a porta… Por isso, às vezes não compreendo o porquê de sonhar com aqueles das novelas, despenteados, rudes, por vezes, mal-educados, que se esquecem sempre de segurar a porta, porém, não há semana em que não os veja a segurá-las nos braços, a beijá-las como se não houvesse amanhã, murmúrios passeantes à beira-mar de dedos entrelaçados, certo dia, nas compras, reencontro a vizinha do prédio em frente, a tal que não via novelas, estava com o marido, saíram à minha frente, reparei, era impossível não o fazer, que caminhavam de dedos entrelaçados, e, de facto, nem por uma vez, ele apontou, à mão dela, a direcção do bolso. Chegamos a um ponto, na vida, em que desaprendemos de lamentar, isto só sucede quando percebemos o porquê das coisas, claro que continuo a ver novelas, mas, por outro lado, sempre que chego diante de uma porta, meu Deus, que saudade de ouvir, uma vez mais, “ora, se faz favor”, e o que eu rejubilava com o “ora, se faz favor”.

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