Estou, da janela, com a rua deserta e
anoitecida, sabes, cada vez gosto mais de olhar ruas desertas e anoitecidas, já
viste mais verdade no mundo? O resto é apenas
teatro, e de fraca qualidade, duvidas? Agora tudo
de férias, conceito mais estranho, se a maioria nem trabalha, férias de quê?
Repara, o próprio conceito se dilui no circo de fotos e publicações, nas
redes-sociais, com o destino mais exótico, longínquo, luxuoso, a foto mais
ovacionada, por regra com uma generosa dose de carnes à mostra, em posições
artificiais, sorrisos postiços, e uma efémera tentativa de exteriorizar “Estou
no paraíso e sou tão feliz…” Não é necessária muita sabedoria para se
compreender que o paraíso não é deste lado, daí a minha crescente inclinação
por contemplar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo?
Creio que, no fundo, fogem de si mesmos, apenas e só, e o sorriso de cada foto
é diametralmente oposto à felicidade sentida, não duvides, lembro-me de um
conhecido, não, não me tentes dissuadir, não emprego a palavra “amigo” com
facilidade, como dizia, chegados os ditos meses de férias, escolheu um destino
de postal, lá despendeu a imperativa e redonda quantia, logo no aeroporto fotos
e fotos, no avião também, convém assinalar tudo ao minuto, como se de uma
reportagem fotográfica se tratasse, como lá chegaram de tarde, o sol ainda
iluminava horizontes, fotos do destino avistado das alturas, o sonho
materializado, a aterragem, o aeroporto, a chegada ao hotel, assim que cumprida
a sempre exaustiva burocracia, a corrida até à praia, o sol ainda generoso, por
conseguinte, fotos e mais fotos – não duvido haver quem chegue perto da centena
diária ou ultrapasse esta simbólica barreira –, no dia seguinte, tudo se
repetiu, acreditaram estar efectivamente no paraíso, ao terceiro dia, as trevas
surgiram no horizonte sob a forma de nuvens, entreolharam-se e o pensamento
mais à mão “É passageiro! Até serve para romper a monotonia! O sol
regressará mais forte,,,”, a verdade é que não regressou, ele, com uma
paciência de rés-do-chão, questionou, após o pequeno-almoço, um empregado se aquele
tempo era habitual, este apontou para um monte, que apelidou de “vulcão”,
e discorreu a mais atamancada teoria possível, incrédulo perante tal estupidez
nem conseguiu retorquir, apesar de uma considerável parte de si querer
acreditar naquela atamancada teoria, quando tudo se desmorona à nossa volta,
agarramo-nos ao possível, após as nuvens do terceiro-dia, o quarto acordou com
chuva, o humor do casal alinhava-se com as sombras exteriores, vislumbrar a
chuva através de uma janela tem primeiramente o condão de nos despertar a
melancolia, de seguida, se os houver, aportam os terrores do ontem, ele estava
bem preenchido de gritos funestos, ela procurava alternativas, como as piscinas-interiores,
no entanto ele reticente com esta possibilidade, contestava que ali estava
apenas e só por praia, para cúmulo descobrira recentemente, após a necessária
introspecção, que preferia muito mais praia a piscina, o contexto natureza,
areia, a valia do sal para a saúde, o movimento rítmico das águas, o despertar
das endorfinas, enfim, de tudo o que pôde se valeu para sustentar a sua tese e
adensar a dramatização do seu contexto, chegou a vociferar “São todos uns
vigaristas! Que vão para o vulcão que os parta! Jamais aqui voltarei a pôr os
pés!!!”, ela nem balbuciou uma sílaba, limitou-se a ouvi-lo e a dar-lhe
razão sem verbo, muito comum entre eles, compreensível, já havia
fogo-de-artifício que chegasse de uma parte, era desnecessário adicionar o que
fosse, considerava ela, ainda hoje, se lhes perguntarem, pouco se recordam dos
três últimos dias, muito menos da viagem de regresso, tudo se cumpriu sob um
considerável efeito depressivo, após o segundo-dia, deixou de haver fotos, ela
ainda tirou uma ou duas na piscina, ele jamais, distante, muito distante, das
centenas dos dois primeiros dias, este casal sobreviveu ao revés, que não é de
somenos, de uma ilusão, alimentada ao longo de um ano, de estar, pelo menos
durante uma semana, no paraíso, jamais pode ser desvalorizada, repito: este
casal sobreviveu! Enquanto ele se limitou a vislumbrar as trevas chuvosas do
sítio e a lamber as feridas, ela procurou reunir todo e qualquer aspecto
positivo, esta substancial diferença de posições permitiu-lhes continuar a sua
marcha lado-a-lado, não obstante só ter havido fotos nos dois primeiros dias, embora
quem as viu ficasse tão aquém do acontecer, ou os invejasse ou desejasse ali
aportar um dia, os primeiros são os avessos à acção, os segundos são
precisamente o oposto, conhecem o seu carácter de inevitabilidade, mas não
julgues que o teatro, e de fraca qualidade, sucede
só nesta altura, está omnipresente em cada respirar, à mesa do restaurante, por
norma fotos de refeições convém quando se vai comer fora, como manda a
etiqueta, ou lá o que isso for, do teatro, e de fraca qualidade, em passeios, a
exibir o último artigo comprado, enfim, um delírio colectivo que, de repente,
arrastou quase todos, como se a sua vida, de facto, interessasse aos outros:
repito: ou os invejam ou ali desejam aportar um dia… Ignoro onde este teatro, e
de fraca qualidade, nos irá levar, não auguro muita felicidade, a histeria é
demasiada, privado e público hoje são conceitos difusos, quando na essência são
antónimos, logo algo de muito inquietante respira entre nós, há também os que
nada publicam, mas tudo veem dos outros, os dissimulados, a fauna é vasta, como
vês, subitamente, cada um tem, na sua mão, a possibilidade de projectar os seus
desejos, de outro modo, aquilo que ambiciona ser reconhecido, nunca por ali
vislumbrei a Verdade de uma lágrima salgada, uma fila-de-trânsito, a birra de
um filho, a zanga de um casal, o desemprego, a calculadora, na mão, para
enfrentar as compras da semana, a doença, uma ida à farmácia, um pneu furado,
um desarranjo intestinal, uma dor de dentes, o tédio de um Domingo à tarde, a
marquise sempre demasiado próxima do prédio em frente, o opressivo silêncio de
um almoço familiar após uma discussão, e a vida, como sabes, é tão isto, uma tão
sonhada semana no paraíso e cerca de cinquenta-e-uma a sonhá-la, depois a
semana de paraíso reduz-se a dois dias e cinco a contemplar as trevas caídas dos
céus, se um casal sobreviver a isto é porque ainda tem espaço para o sonho, estou,
da janela, com a rua deserta e anoitecida, sabes, cada vez gosto mais de olhar
ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo?
Livros do Escritor
quarta-feira, 21 de agosto de 2024
Teatro
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