Livros do Escritor

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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Teatro


 

Estou, da janela, com a rua deserta e anoitecida, sabes, cada vez gosto mais de olhar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo? O resto é apenas teatro, e de fraca qualidade, duvidas? Agora tudo de férias, conceito mais estranho, se a maioria nem trabalha, férias de quê? Repara, o próprio conceito se dilui no circo de fotos e publicações, nas redes-sociais, com o destino mais exótico, longínquo, luxuoso, a foto mais ovacionada, por regra com uma generosa dose de carnes à mostra, em posições artificiais, sorrisos postiços, e uma efémera tentativa de exteriorizar “Estou no paraíso e sou tão feliz…” Não é necessária muita sabedoria para se compreender que o paraíso não é deste lado, daí a minha crescente inclinação por contemplar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo? Creio que, no fundo, fogem de si mesmos, apenas e só, e o sorriso de cada foto é diametralmente oposto à felicidade sentida, não duvides, lembro-me de um conhecido, não, não me tentes dissuadir, não emprego a palavra “amigo” com facilidade, como dizia, chegados os ditos meses de férias, escolheu um destino de postal, lá despendeu a imperativa e redonda quantia, logo no aeroporto fotos e fotos, no avião também, convém assinalar tudo ao minuto, como se de uma reportagem fotográfica se tratasse, como lá chegaram de tarde, o sol ainda iluminava horizontes, fotos do destino avistado das alturas, o sonho materializado, a aterragem, o aeroporto, a chegada ao hotel, assim que cumprida a sempre exaustiva burocracia, a corrida até à praia, o sol ainda generoso, por conseguinte, fotos e mais fotos – não duvido haver quem chegue perto da centena diária ou ultrapasse esta simbólica barreira –, no dia seguinte, tudo se repetiu, acreditaram estar efectivamente no paraíso, ao terceiro dia, as trevas surgiram no horizonte sob a forma de nuvens, entreolharam-se e o pensamento mais à mão “É passageiro! Até serve para romper a monotonia! O sol regressará mais forte,,,”, a verdade é que não regressou, ele, com uma paciência de rés-do-chão, questionou, após o pequeno-almoço, um empregado se aquele tempo era habitual, este apontou para um monte, que apelidou de “vulcão”, e discorreu a mais atamancada teoria possível, incrédulo perante tal estupidez nem conseguiu retorquir, apesar de uma considerável parte de si querer acreditar naquela atamancada teoria, quando tudo se desmorona à nossa volta, agarramo-nos ao possível, após as nuvens do terceiro-dia, o quarto acordou com chuva, o humor do casal alinhava-se com as sombras exteriores, vislumbrar a chuva através de uma janela tem primeiramente o condão de nos despertar a melancolia, de seguida, se os houver, aportam os terrores do ontem, ele estava bem preenchido de gritos funestos, ela procurava alternativas, como as piscinas-interiores, no entanto ele reticente com esta possibilidade, contestava que ali estava apenas e só por praia, para cúmulo descobrira recentemente, após a necessária introspecção, que preferia muito mais praia a piscina, o contexto natureza, areia, a valia do sal para a saúde, o movimento rítmico das águas, o despertar das endorfinas, enfim, de tudo o que pôde se valeu para sustentar a sua tese e adensar a dramatização do seu contexto, chegou a vociferar “São todos uns vigaristas! Que vão para o vulcão que os parta! Jamais aqui voltarei a pôr os pés!!!”, ela nem balbuciou uma sílaba, limitou-se a ouvi-lo e a dar-lhe razão sem verbo, muito comum entre eles, compreensível, já havia fogo-de-artifício que chegasse de uma parte, era desnecessário adicionar o que fosse, considerava ela, ainda hoje, se lhes perguntarem, pouco se recordam dos três últimos dias, muito menos da viagem de regresso, tudo se cumpriu sob um considerável efeito depressivo, após o segundo-dia, deixou de haver fotos, ela ainda tirou uma ou duas na piscina, ele jamais, distante, muito distante, das centenas dos dois primeiros dias, este casal sobreviveu ao revés, que não é de somenos, de uma ilusão, alimentada ao longo de um ano, de estar, pelo menos durante uma semana, no paraíso, jamais pode ser desvalorizada, repito: este casal sobreviveu! Enquanto ele se limitou a vislumbrar as trevas chuvosas do sítio e a lamber as feridas, ela procurou reunir todo e qualquer aspecto positivo, esta substancial diferença de posições permitiu-lhes continuar a sua marcha lado-a-lado, não obstante só ter havido fotos nos dois primeiros dias, embora quem as viu ficasse tão aquém do acontecer, ou os invejasse ou desejasse ali aportar um dia, os primeiros são os avessos à acção, os segundos são precisamente o oposto, conhecem o seu carácter de inevitabilidade, mas não julgues que o teatro, e de fraca qualidade, sucede só nesta altura, está omnipresente em cada respirar, à mesa do restaurante, por norma fotos de refeições convém quando se vai comer fora, como manda a etiqueta, ou lá o que isso for, do teatro, e de fraca qualidade, em passeios, a exibir o último artigo comprado, enfim, um delírio colectivo que, de repente, arrastou quase todos, como se a sua vida, de facto, interessasse aos outros: repito: ou os invejam ou ali desejam aportar um dia… Ignoro onde este teatro, e de fraca qualidade, nos irá levar, não auguro muita felicidade, a histeria é demasiada, privado e público hoje são conceitos difusos, quando na essência são antónimos, logo algo de muito inquietante respira entre nós, há também os que nada publicam, mas tudo veem dos outros, os dissimulados, a fauna é vasta, como vês, subitamente, cada um tem, na sua mão, a possibilidade de projectar os seus desejos, de outro modo, aquilo que ambiciona ser reconhecido, nunca por ali vislumbrei a Verdade de uma lágrima salgada, uma fila-de-trânsito, a birra de um filho, a zanga de um casal, o desemprego, a calculadora, na mão, para enfrentar as compras da semana, a doença, uma ida à farmácia, um pneu furado, um desarranjo intestinal, uma dor de dentes, o tédio de um Domingo à tarde, a marquise sempre demasiado próxima do prédio em frente, o opressivo silêncio de um almoço familiar após uma discussão, e a vida, como sabes, é tão isto, uma tão sonhada semana no paraíso e cerca de cinquenta-e-uma a sonhá-la, depois a semana de paraíso reduz-se a dois dias e cinco a contemplar as trevas caídas dos céus, se um casal sobreviver a isto é porque ainda tem espaço para o sonho, estou, da janela, com a rua deserta e anoitecida, sabes, cada vez gosto mais de olhar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo?

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