Os outros viam-na como uma inclemente
predadora, voraz, insaciável, à espera de uma incauta presa, ela, por seu lado,
apenas em busca de um ouvido para relatar as últimas façanhas do filho, como as
coisas se alteram mediante a perspectiva: de um lado o terror, do outro a
carência; àquela hora da manhã, sem se aperceber, assim que um pé no passeio,
ajeitava de imediato a gola do casaco, a brisa outonal assim o exigia, o Verão
afigurava-se-lhe agora um longínquo ponto ido, quase nas margens da memória,
ela não se dava bem com o frio, embora gostasse das roupas exigidas,
permitia-lhe mais variedade, e a indumentária é-lhe um tema caro, a
paragem-de-autocarro fica, mais ou menos, a duzentos metros da porta do prédio,
estuga o passo quase de forma mecânica,
ou talvez para se aquecer, para o autocarro ainda faltavam quinze minutos,
assim que a paragem no seu horizonte, do outro lado da rua, emerge-lhe um
terror muito subterrâneo que a faz, de forma imperceptível, refrear a passada,
acaba por se imobilizar para ver se… Estavam lá seis ou sete vultos, nenhum lhe
pareceu ser quem tanto temia, respirou fundo, hoje é quinta-feira, desde
segunda que inclementemente a tem apanhado, não é que antipatize com ela, no
entanto a paciência faleceu-lhe para as histórias do filho – que está na faculdade, que é o melhor, que é o maior, que
já tem convites do exterior, embora também o queiram, na faculdade, para dar
aulas – enfim, um autêntico rosário, e logo àquela hora da manhã, lá no
fundo havia algo a desassossegá-la sobremaneira ao ouvi-la cantar os feitos do
filho, não obstante exageros ou não, o facto de o seu ser avesso a livros,
faculdade, então, apenas uma quimera, só pensava em desporto e namorar, pouco
mais, perante: que está na faculdade, que é o melhor, que é o maior, que já tem
convites do exterior, embora também o queiram, na faculdade, para dar aulas: o
que tinha ela para apresentar? As suas marcas na modalidade desportiva? As
fotos com a namorada? Logo ela que sonhou com um filho doutor, e este estigma a
recair sobre si, de forma inclemente, todas as manhãs, sob a forma daquela
vizinha, cada frase atomizava-a ainda mais, vezes houve
em que teve de refrear lágrimas, tal a dor, como desejaria retribuir que
também o seu: está na faculdade, que é o melhor, que é o maior, que já tem
convites do exterior, embora também o queiram, na faculdade, para dar aulas…
Quando se iniciava o rosário, o olhar descaía-lhe, certa vez chegou a
contabilizar as beatas por ali largadas no passeio, não a conseguia encarar,
vezes houve em que teve de refrear lágrimas, tal a dor – era como se um ferrete
lhe revolvesse uma ferida –, a inclemente predadora jamais lhe percepcionou o
descair do olhar, tal a sofreguidão e arrebatamento pela captura de uma incauta
presa, raras palavras sobre o marido, apenas breves notas do seu paradeiro,
caminhava para a reforma, sobre a filha também não era muito pródiga, apenas
que tinha realizado um excelente casamento, o caudal do verbo sobre o genro
avolumava-se um pouco, engenheiro, de muito boas famílias, com propriedades,
lua-de-mel numa ilha do Mediterrâneo, ela e o marido, desde há uns tempos,
ficaram, em parte, encarregados de uma das propriedades, a árdua tarefa de,
todos os fins-de-semana, se deslocarem para lá, zelar pela casa e pelos animais, duro, muito
duro, há vidas complicadas, acentuava o final de cada relato com uma
longuíssima expiração, por norma era dentro do comboio, a presa sem escapatória
possível, que as apanhava, passados uns meses, ela deixou de se sentar, passou
a viajar, em pé, junto às portas, tudo em vão, a inclemente predadora parecia
farejar as suas presas, aparecia de surpresa, com um “Bom-dia” demasiado sonoro, sobretudo
para a circunstância, metade da carruagem tê-la-á ouvido, duas ou três frases
depois, “Hoje estou nervosíssima! Nem imagina! Não é que o meu Paulo tem um
exame dificílimo! Se for aprovado, tem trabalho certo lá na faculdade! O
orientador já o assegurou! Há duas semanas que estuda noite e dia, noite e dia,
para este exame! Quase não se alimenta! Não sei como se aguenta em pé…”,
felizmente a cadência do comboio abafava-lhe ligeiramente a voz, apesar do esforço
para se ouvir, tratava-se, afinal, de uma inclemente predadora, ela já não
sabia o que fazer, não havia, pelo chão, beatas para contabilizar, assim sendo,
olhava horizontes, perdia-se pelo possível das praias da margem-Sul, há mais de
uma década lá não iam, talvez mais, curioso, pensou ela, há hábitos que, sem se
saber o porquê, vamos perdendo, até da memória se desvanecem, uma manhã, seria
Sábado, pois, foi há bem mais de dez anos, talvez uns dezoito, ela com o filho a brincar na areia, o marido possivelmente
na água, muito nítido ela com o filho a brincar na areia, pá, ancinho, balde,
aqueles típicos utensílios infantis com as cores da alegria, não consegue
trazer ao presente o que edificavam, mas é de somenos, apenas perdura, muito
nítido, o eco da espontaneidade da criança: “És a
melhor mãe do mundo!” Nem a cadência do comboio conseguiu esbater este
eco do ontem – “És a melhor mãe do mundo!” –, espontâneo, genuíno, puro –
“És a melhor mãe do mundo!” –, levantou o olhar, sorriu para a
inclemente predadora, e “Está a ver, do outro lado, as praias de Sul? Sabe,
certa vez, estávamos por lá, teria o meu filho uns dois ou três anos, virou-se
para mim, enquanto brincava na areia, e sabe o que disse…?”
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.