Há
personagens, com que nos cruzamos neste somar de dias, que, por este ou aquele
motivo, nos parecem familiares: rosto, voz, gestos, situações, em alguns casos
apenas a sensação de familiaridade, e a dúvida da sua génese; noutros
identificamos logo por se assemelharem a personagens de cinema ou de televisão,
esta personagem, por acaso, tinha o seu sósia noutra arte: na banda-desenhada!
Tudo por causa do seu essencial par-de-óculos! Sempre que se invoca alguém, por
muitas particularidades que haja, primeiramente surge o rosto, de seguida a voz
(factualmente: visão, audição, os dois mais relevantes sentidos), neste caso, o
rosto estava engolido pelas lentes-escurecidas, um pouco
abaixo, a típica bigodaça destes
lados, se me perguntassem a cor dos seus olhos, apesar de nada me
interessar, não teria resposta, tal o hermetismo daquelas lentes, para o leitor
não pensar que me distraí, esclareço já que o seu sósia, na banda-desenhada, é
o director de um certo jornal, permanentemente
mal-humorado, onde trabalha, nas horas livres, um fotógrafo de nome Peter
Parker, o rosto engolido pelas lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a
bigodaça, este, talvez não por acidente, vendesse jornais, e não só, tinha uma
papelaria, onde também trabalhava a mulher, percebia-se-lhe, à distância, o
temor e respeito que esta lhe infundia, e uma empregada, mais nova, tinha um
olhito-transviado, quando que me atendia, não sei porquê, obrigava-me a olhar
para trás, ou talvez soubesse, o olhito-transviado
levantava-nos suspeitas de presenças reveladas ausências, outra das suas
características, que não passou despercebida às lentes-escurecidas,
um pouco abaixo, a típica bigodaça destes lados, bom, como hei-de descrever…?
Digamos que todas as calças lhe assentavam muito bem,
sobretudo vista de trás, sempre que ela cirandava à volta do patrão,
as lentes-escurecidas acompanhavam-lhe, com avidez, os passos, talvez fosse
preocupação, pois, é isso, certo é que quando a mulher por perto, a empregada
era logo reencaminhada para arrumar coisas na cave, o bigode descaía,
percebia-se-lhe tristeza, mesmo através das lentes-escurecidas, tinha uma
voz-rouca, típica de um jornaleiro, atenção: ali não se vendiam só jornais e
revistas! Um dos aspectos que mais me enternecia, ao ali entrar, prendia-se com
as múltiplas bolas-de-plástico penduradas, dava um ar de colónia de férias,
houve vezes, em verdade, que tive de me recentrar (“Não, não estou numa colónia-de-férias…
Não, não estou numa loja infantil… Entrei na papelaria do…”), logo
o olhito-transviado e maroto em meu socorro secundado por um par de
lentes-escurecidas que ciosamente lhe acompanhavam cada passo, e com razão, de
facto todas as calças lhe assentavam muitíssimo bem, este aspecto até me fazia
esquecer as vezes que me obrigava a olhar para trás, pois, o olhito-transviado
levantava-nos suspeitas de presenças reveladas ausências, certo dia, as
lentes-escurecidas resolvem melhorar a sua aparência, inscrevem-se no ginásio
mais próximo, para o efeito, bastava atravessar a rua, eu ter-lhe-ia
aconselhado a mudar de óculos, mas lá se ia a parecença com o director de um
certo jornal, permanentemente mal-humorado, onde trabalha, nas horas livres, um
fotógrafo de nome Peter Parker, por conseguinte, mantive-me em silêncio, no
primeiro dia de ginásio estava, a seu lado, a mulher, muito direita, um cabelo
totalmente imóvel graças às toneladas de laca, todos, por ali, lhes ignoravam quaisquer
interesses por prática desportiva, as más-línguas diziam que a mulher só se
inscreveu para se certificar se havia, por aqueles lados, um olhito-transviado,
se todas as calças-de-ganga lhe assentavam tão bem, imaginemos umas desportivas
ou até uns calções, creio que aí as lentes-escurecidas partiam do rosto do jornaleiro
de encontro ao chão, no entanto, enquanto ali estavam, alguém tinha de
providenciar que a porta da papelaria, onde tantas vezes tive de me recentrar (“Não,
não estou numa colónia-de-férias… Não, não estou numa loja infantil… Entrei na
papelaria do…”), se mantivesse aberta, não fosse alguém a correr desesperado
por uma bola-de-plástico, essa tarefa ficou a cargo do olhito-transviado, o
tempo a passar, as lentes-escurecidas a perceberem que, apesar do ginásio, a
aparência imutável, só a voz-rouca se acentuava, porém, a mulher até começou a
gostar, desconheço se a sua aparência melhorou, talvez por, durante esse
período, as lentes-escurecidas não se perderem com o cirandar da empregada com
o olhito-transviado e maroto, todos no bairro desconheciam que o
olhito-transviado há muito tinha namorado, fez questão de manter a sua vida
pessoal sigilosa, compreensível, faria qualquer patrão recuar nos olhares, e o
sujeito tinha uma fama nebulosa, certo é que, enquanto as lentes-escurecidas e
as toneladas de laca no ginásio, começou a aproximar-se das bolas-de-plástico
penduradas, na sua presença, dizia-se, o olhito-transviado e maroto só
caminhava na direcção por ele indicada, assim, a caixa-registadora começou a
abrir mais que o costume, o tempo a passar, a passar, e a passar, até chegar o
dia em que, perante os fornecedores, as lentes-escurecidas não terem verba para
os satisfazer, a atenção da mulher logo no olhito-transviado e maroto, a
voz-rouca a pedir-lhe calma e prudência, após muita indagação, já com terceiros
envolvidos – contabilistas, advogados e afins –, tudo se confirmou, aí veio ao
de cima a existência do tal namorado de fama nebulosa, ainda hoje ignoro se o
maior choque, para as lentes-escurecidas, foi a existência de um namorado ou as
acções do olhito-transviado e maroto, a minha
intuição aponta para a primeira possibilidade, a mulher tratou logo de
despedir, com justa-causa, o olhito-transviado e maroto, a voz-rouca nem se
manifestou, olhava à sua volta perdido, talvez questionasse onde estavam as
calças que tão bem lhe assentavam, sobretudo vista de trás, o problema é que os
fornecedores não deixavam a porta, afinal, a caixa-registadora fôra aberta
vezes demais, e eles tiveram que fechar a porta, desconheço o seu paradeiro, apenas
sei que deixaram o ginásio, compreensível, para quê melhorar a aparência se nem
vislumbres de um olhito-transviado e maroto a cirandar por perto, e em que
todas as calças tão bem lhe assentavam, sobretudo vista de trás.
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