Livros do Escritor

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segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Um olhito-transviado e maroto

 


Há personagens, com que nos cruzamos neste somar de dias, que, por este ou aquele motivo, nos parecem familiares: rosto, voz, gestos, situações, em alguns casos apenas a sensação de familiaridade, e a dúvida da sua génese; noutros identificamos logo por se assemelharem a personagens de cinema ou de televisão, esta personagem, por acaso, tinha o seu sósia noutra arte: na banda-desenhada! Tudo por causa do seu essencial par-de-óculos! Sempre que se invoca alguém, por muitas particularidades que haja, primeiramente surge o rosto, de seguida a voz (factualmente: visão, audição, os dois mais relevantes sentidos), neste caso, o rosto estava engolido pelas lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a típica bigodaça destes lados, se me perguntassem a cor dos seus olhos, apesar de nada me interessar, não teria resposta, tal o hermetismo daquelas lentes, para o leitor não pensar que me distraí, esclareço já que o seu sósia, na banda-desenhada, é o director de um certo jornal, permanentemente mal-humorado, onde trabalha, nas horas livres, um fotógrafo de nome Peter Parker, o rosto engolido pelas lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a bigodaça, este, talvez não por acidente, vendesse jornais, e não só, tinha uma papelaria, onde também trabalhava a mulher, percebia-se-lhe, à distância, o temor e respeito que esta lhe infundia, e uma empregada, mais nova, tinha um olhito-transviado, quando que me atendia, não sei porquê, obrigava-me a olhar para trás, ou talvez soubesse, o olhito-transviado levantava-nos suspeitas de presenças reveladas ausências, outra das suas características, que não passou despercebida às lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a típica bigodaça destes lados, bom, como hei-de descrever…? Digamos que todas as calças lhe assentavam muito bem, sobretudo vista de trás, sempre que ela cirandava à volta do patrão, as lentes-escurecidas acompanhavam-lhe, com avidez, os passos, talvez fosse preocupação, pois, é isso, certo é que quando a mulher por perto, a empregada era logo reencaminhada para arrumar coisas na cave, o bigode descaía, percebia-se-lhe tristeza, mesmo através das lentes-escurecidas, tinha uma voz-rouca, típica de um jornaleiro, atenção: ali não se vendiam só jornais e revistas! Um dos aspectos que mais me enternecia, ao ali entrar, prendia-se com as múltiplas bolas-de-plástico penduradas, dava um ar de colónia de férias, houve vezes, em verdade, que tive de me recentrar (“Não, não estou numa colónia-de-férias… Não, não estou numa loja infantil… Entrei na papelaria do…”), logo o olhito-transviado e maroto em meu socorro secundado por um par de lentes-escurecidas que ciosamente lhe acompanhavam cada passo, e com razão, de facto todas as calças lhe assentavam muitíssimo bem, este aspecto até me fazia esquecer as vezes que me obrigava a olhar para trás, pois, o olhito-transviado levantava-nos suspeitas de presenças reveladas ausências, certo dia, as lentes-escurecidas resolvem melhorar a sua aparência, inscrevem-se no ginásio mais próximo, para o efeito, bastava atravessar a rua, eu ter-lhe-ia aconselhado a mudar de óculos, mas lá se ia a parecença com o director de um certo jornal, permanentemente mal-humorado, onde trabalha, nas horas livres, um fotógrafo de nome Peter Parker, por conseguinte, mantive-me em silêncio, no primeiro dia de ginásio estava, a seu lado, a mulher, muito direita, um cabelo totalmente imóvel graças às toneladas de laca, todos, por ali, lhes ignoravam quaisquer interesses por prática desportiva, as más-línguas diziam que a mulher só se inscreveu para se certificar se havia, por aqueles lados, um olhito-transviado, se todas as calças-de-ganga lhe assentavam tão bem, imaginemos umas desportivas ou até uns calções, creio que aí as lentes-escurecidas partiam do rosto do jornaleiro de encontro ao chão, no entanto, enquanto ali estavam, alguém tinha de providenciar que a porta da papelaria, onde tantas vezes tive de me recentrar (“Não, não estou numa colónia-de-férias… Não, não estou numa loja infantil… Entrei na papelaria do…”), se mantivesse aberta, não fosse alguém a correr desesperado por uma bola-de-plástico, essa tarefa ficou a cargo do olhito-transviado, o tempo a passar, as lentes-escurecidas a perceberem que, apesar do ginásio, a aparência imutável, só a voz-rouca se acentuava, porém, a mulher até começou a gostar, desconheço se a sua aparência melhorou, talvez por, durante esse período, as lentes-escurecidas não se perderem com o cirandar da empregada com o olhito-transviado e maroto, todos no bairro desconheciam que o olhito-transviado há muito tinha namorado, fez questão de manter a sua vida pessoal sigilosa, compreensível, faria qualquer patrão recuar nos olhares, e o sujeito tinha uma fama nebulosa, certo é que, enquanto as lentes-escurecidas e as toneladas de laca no ginásio, começou a aproximar-se das bolas-de-plástico penduradas, na sua presença, dizia-se, o olhito-transviado e maroto só caminhava na direcção por ele indicada, assim, a caixa-registadora começou a abrir mais que o costume, o tempo a passar, a passar, e a passar, até chegar o dia em que, perante os fornecedores, as lentes-escurecidas não terem verba para os satisfazer, a atenção da mulher logo no olhito-transviado e maroto, a voz-rouca a pedir-lhe calma e prudência, após muita indagação, já com terceiros envolvidos – contabilistas, advogados e afins –, tudo se confirmou, aí veio ao de cima a existência do tal namorado de fama nebulosa, ainda hoje ignoro se o maior choque, para as lentes-escurecidas, foi a existência de um namorado ou as acções do olhito-transviado e maroto, a minha intuição aponta para a primeira possibilidade, a mulher tratou logo de despedir, com justa-causa, o olhito-transviado e maroto, a voz-rouca nem se manifestou, olhava à sua volta perdido, talvez questionasse onde estavam as calças que tão bem lhe assentavam, sobretudo vista de trás, o problema é que os fornecedores não deixavam a porta, afinal, a caixa-registadora fôra aberta vezes demais, e eles tiveram que fechar a porta, desconheço o seu paradeiro, apenas sei que deixaram o ginásio, compreensível, para quê melhorar a aparência se nem vislumbres de um olhito-transviado e maroto a cirandar por perto, e em que todas as calças tão bem lhe assentavam, sobretudo vista de trás.

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