Livros do Escritor

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terça-feira, 6 de agosto de 2024

As toneladas do pensar inclinam-me para a terra


 

Há uns dias, apercebi-me desta evidência: sempre que o pensar num torvelinho, eu a olhar o chão do mundo, como se precisasse de um lastro para não me afundar de vez… Pois, de facto, o pensar pesa-me toneladas, como gostava de, pelo menos, livrar-me de algumas, aligeirar este pesaroso fardo que, a cada instante, me ameaça esmagar de encontro à terra, andava eu nisto quando, de repente, surge a imagem de uma velhota, amiga da família, há uma altura na vida, não sei porquê, que todos os adultos nos parecem velhos, como se falassem uma linguagem distinta e simultaneamente vivessem num mundo lá muito deles, aborrecidíssimo, onde só há lugar para telejornais, inflacção, problemas e mais problemas, enfim, tudo aquilo que uma criança abomina – o esbater das cores do mundo –, como dizia, há uma altura na vida, não sei porquê, que todos os adultos nos parecem velhos, e, apesar de haver décadas de diferenças entre eles, tudo nos passa despercebido, por um simples facto: são adultos - falam uma linguagem distinta e simultaneamente vivem num mundo lá muito deles, aborrecidíssimo, onde só há lugar para telejornais, inflacção, problemas e mais problemas… Não obstante esta evidência, a imagem de uma velhota, amiga da família, uma aura de leveza, sorria com o rosto, vista do hoje, não me recordo de a ver inclinada para a terra pelas toneladas do pensar, talvez por um simples facto: distraía-se com facilidade – e não se importava com isso –, ora tinha de vigiar, pela manhã, a saúde de umas tias ainda mais velhas, viviam as duas, num primeiro-andar, sem elevador, uma escada deveras íngreme até lá, era a sua única parente viva, por conseguinte, todas as manhãs, impreterivelmente, como se uma incumbência divina, lá ia zelar pelo bem-estar das duas, aos fins-de-semana, quando o marido por casa, passavam lá os dois, o maior lamento das duas velhotas era a impossibilidade de assistirem à missa, a inclinação da escada e a soma dos degraus tornava impossível a saída de casa, restava-lhes a telefonia, à hora do culto, sentavam-se na mesa-da-cozinha, terço na mão, fechavam os olhos, e logo se viam transportadas para a igreja-matriz, que se situava a duas centenas de metros; regressava a casa, perto da hora de almoço, e lá tinha de providenciar refeição para três: ela, o marido, que vinha almoçar a casa, e o irmão, relojoeiro, alugara uma casa, mesmo ao lado, que transformara em oficina; à noite, cumpridas as missões diárias, ocupava-se com as tramas novelescas, quando assentava lá por casa, assim que ecoava a música do genérico da telenovela do momento, sabia que se instalava um silêncio análogo ao da cozinha onde, duas velhotas, na impossibilidade de assistirem à missa, a inclinação da escada e a soma dos degraus tornava impossível a saída de casa, se sentavam à mesa, terço na mão, fechavam os olhos, e logo se viam transportadas para a igreja-matriz, que se situava a duas centenas de metros, um dos seus aspectos mais fascinantes, aos meus infantis olhos, era a naturalidade com que falava das acções das personagens, como se pessoas de facto, no entanto, nunca lhe ouvi rotundos juízos-de-valor, havia em si uma velada compreensão por aqueles que optam por seguir caminhos anoitecidos, o rosto sempre sorridente, quando lhe perguntavam pelo dia seguinte, lá falava das tias, da preocupação pela escada íngreme e a soma dos degraus, não se esquecer de comprar pilhas para a telefonia, a uma certa hora, há uma cozinha que se transforma miraculosamente na igreja-matriz, situada a duas centenas de metros, olhava sempre em frente, nunca para cima, sinal de desconhecer as alturas, jamais para baixo, pois, o pensar não lhe pesava, e assim se lhe somaram os dias, de distracção em distracção, até do horizonte tudo se subtrair, do irmão nunca mais soube, a sua versão masculina, um sujeito baixo, para o anafado, à volta da mecânica dos relógios, outra coisa aborrecidíssima, já por aqui pressentia o peso do meu pensar, afinal, quem podia achar graça a andar todo o dia, com uma bata azul-escura, nodoada, numa cave, onde nem um vestígio de sol chegava, que tresandava a ferrugem? Neste aspecto, o meu respeito estava todo com as duas velhotas, na impossibilidade de assistirem à missa, a inclinação da escada e a soma dos degraus tornava impossível a saída de casa, se sentavam à mesa, terço na mão, fechavam os olhos, e logo se viam transportadas para a igreja-matriz, que se situava a duas centenas de metros, pensar e sentir – há quem designe de Fé –, impeliam-nas para as alturas, e toda a realidade circundante se metamorfoseava, àquela hora, tão distante de uma bata azul-escura, nodoada, numa cave, onde nem um vestígio de sol chegava… Como há pouco referi, tudo se subtraiu do horizonte, só no espaço da memória estas personagens, há uns dias, me regressaram, não vou revelar o final da velhota, amiga da família, uma aura de leveza, sorria com o rosto, é sabido que, há muito, não se veem desfechos grandiosos, tudo dentro de portas, sob o compasso da medicação, não raras vezes já sem se saberem, e a dignidade nem encontra porta de entrada neste quadro, pois, como se tudo já fosse a normalidade… Um dia destes, hei-de comprar umas pilhas, encontrar algures uma telefonia, e, a uma certa hora, sentar-me à mesa-da-cozinha, talvez a igreja-matriz não fique a duas centenas de metros.


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