Livros do Escritor

Livros do Escritor

sábado, 31 de agosto de 2024

O pântano da alternadeira



Já ouvi, em tempos, alguém afirmar que as rameiras ajudam à sobrevivência de muitos casamentos, pois, é possível, à luz desta premissa, hoje vamos falar de “O Pântano”, uma conhecida casa-de-alterne, gerida, como é natural nestes contextos, por uma hábil alternadeira, dizem as más-línguas que, há uns anos, soube ardilosamente envolver-se com um velho, de carácter deveras manhoso, dizia-se, por aquelas bandas, que a preparou cuidadosamente para o cargo, era uma mulher baixa, com umas ancas de égua, um rosto de suína deveras desagradável, o cabelo, se assim se podia denominar, uns fios sebosos num constante desalinho, quanto à indumentária, o normal de uma alternadeira, uma efémera tentativa de parecer o que não é, dos pés à cabeça nada lhe assentava condignamente, a rotunda volumetria apenas um desafio para as costuras, não havia dia em que o velho, de carácter deveras manhoso, não fosse visto a entrar na casa-de-alterne, apenas ia para contabilizar os proveitos, há muito que a natureza lhe vedara outras possibilidades, embora, pelo focinho manhoso, não se adivinhasse, por ali, alguém capaz de levar uma mulher às estrelas, gestos contidos, uma indumentária de sacristão-arrependido, embora aquele focinho-manhoso olhasse de soslaio tudo ao seu redor, era habitual ver as alternadeiras-fumadoras à porta, houve uma que rapidamente escalou na hierarquia do “Pântano”, já caminhava pelo Outono do viver, estranha esta ligação entre o alterne e o ocaso da existência, o imperativo cabelo pintado de louro, talvez acredite em mitos associados ao masculino, os incisivos-centrais escurecidos, quiçá do excesso de tabaco, o rosto assemelhava-se a um possível campo de arqueologia, tal a ruína e desolação gritantes, a expressão quotidiana também não trazia vestígios de luz ao quadro, o ar resignado de quem compreendeu, há tempo suficiente, que só lhe resta caminhar pelos subterrâneos do viver, tornou-se próxima de uma lésbica que lá aportou no departamento comercial, encarregada dos livros, todo o negócio, para prosperar, carece de um bom contabilista, diziam que esta era uma taumaturga das contas, como a maioria da sua espécie, cabelo-curto, sempre dá um ar másculo à coisa, também caminhava há muito pelo Outono da existência, uns óculos anacrónicos, convém para dar credibilidade a quem está próximo dos livros, pelo menos passa por entendida ao olhar dos outros, do pescoço para baixo passava por homem, o que muito lhe agradava, sublinhe-se, afinal gostava do mesmo que qualquer macho digno desse epíteto, do pescoço para cima, com aquela escassa neve em cima da cabeça, e rapada quase à militar na nuca, só lhe acentuava a inclinação, como já referido, tornou-se muito próxima da alternadeira dos incisivos-escurecidos, era vê-las, durante o dia, alterne quase sempre rima com noite, em longas conversas, vá-se lá saber porquê, apesar de os dentes-podres parecerem gostar do sexo-oposto, embora daí só colhessem desilusões, não por acaso o rosto assemelhar-se a um possível campo de arqueologia, talvez fosse o facto de o cabelo-curto estar encarregado dos livros, todo o final do mês era vê-la a correr para aquela nuca rapada quase à militar a perguntar-lhe pela percentagem que lhe cabia, mas nada se passava no “Pântano” sem o aval e o conhecimento do velho, de focinho-manhoso, quando a natureza subtrai a alegria essencial de um homem, embora, pelo focinho-manhoso, não se adivinhasse, por ali, alguém capaz de levar uma mulher às estrelas, gestos contidos, uma indumentária de sacristão-arrependido, os medíocres viram-se para o vil-metal e para a tentativa de logo asfixiar qualquer vislumbre de luz, alterne quase sempre rima com noite, e como o “Pântano” recrudescia com as primeiras sombras derramadas nos passeios pelos candeeiros iluminados, apesar do controle do focinho-manhoso, a hábil-alternadeira, com um rosto de suína deveras desagradável, o cabelo, se assim se podia denominar, uns fios sebosos num constante desalinho, geria a casa com um aparente à-vontade, foi ideia sua a de colocar o cabelo-curto, sempre dá um ar másculo à coisa, próxima dos livros, diziam ser uma taumaturga das contas, o focinho-manhoso não se opôs, só lhe interessava o avolumar da conta, já que o resto de si era uma subtracção galopante – temos, neste particular, de apartar a crescente volumetria da sua alternadeira, claro –, e sufocar qualquer vestígio de luz emergente, talvez um dia a luz irrompa pelo “Pântano” e o focinho-manhoso, com as suas alternadeiras, nem a memória cheguem…

Pedro de Sá

Espera, ainda não te contei tudo…

 



Os outros viam-na como uma inclemente predadora, voraz, insaciável, à espera de uma incauta presa, ela, por seu lado, apenas em busca de um ouvido para relatar as últimas façanhas do filho, como as coisas se alteram mediante a perspectiva: de um lado o terror, do outro a carência; àquela hora da manhã, sem se aperceber, assim que um pé no passeio, ajeitava de imediato a gola do casaco, a brisa outonal assim o exigia, o Verão afigurava-se-lhe agora um longínquo ponto ido, quase nas margens da memória, ela não se dava bem com o frio, embora gostasse das roupas exigidas, permitia-lhe mais variedade, e a indumentária é-lhe um tema caro, a paragem-de-autocarro fica, mais ou menos, a duzentos metros da porta do prédio, estuga o passo  quase de forma mecânica, ou talvez para se aquecer, para o autocarro ainda faltavam quinze minutos, assim que a paragem no seu horizonte, do outro lado da rua, emerge-lhe um terror muito subterrâneo que a faz, de forma imperceptível, refrear a passada, acaba por se imobilizar para ver se… Estavam lá seis ou sete vultos, nenhum lhe pareceu ser quem tanto temia, respirou fundo, hoje é quinta-feira, desde segunda que inclementemente a tem apanhado, não é que antipatize com ela, no entanto a paciência faleceu-lhe para as histórias do filho – que está na faculdade, que é o melhor, que é o maior, que já tem convites do exterior, embora também o queiram, na faculdade, para dar aulas – enfim, um autêntico rosário, e logo àquela hora da manhã, lá no fundo havia algo a desassossegá-la sobremaneira ao ouvi-la cantar os feitos do filho, não obstante exageros ou não, o facto de o seu ser avesso a livros, faculdade, então, apenas uma quimera, só pensava em desporto e namorar, pouco mais, perante: que está na faculdade, que é o melhor, que é o maior, que já tem convites do exterior, embora também o queiram, na faculdade, para dar aulas: o que tinha ela para apresentar? As suas marcas na modalidade desportiva? As fotos com a namorada? Logo ela que sonhou com um filho doutor, e este estigma a recair sobre si, de forma inclemente, todas as manhãs, sob a forma daquela vizinha, cada frase atomizava-a ainda mais, vezes houve em que teve de refrear lágrimas, tal a dor, como desejaria retribuir que também o seu: está na faculdade, que é o melhor, que é o maior, que já tem convites do exterior, embora também o queiram, na faculdade, para dar aulas… Quando se iniciava o rosário, o olhar descaía-lhe, certa vez chegou a contabilizar as beatas por ali largadas no passeio, não a conseguia encarar, vezes houve em que teve de refrear lágrimas, tal a dor – era como se um ferrete lhe revolvesse uma ferida –, a inclemente predadora jamais lhe percepcionou o descair do olhar, tal a sofreguidão e arrebatamento pela captura de uma incauta presa, raras palavras sobre o marido, apenas breves notas do seu paradeiro, caminhava para a reforma, sobre a filha também não era muito pródiga, apenas que tinha realizado um excelente casamento, o caudal do verbo sobre o genro avolumava-se um pouco, engenheiro, de muito boas famílias, com propriedades, lua-de-mel numa ilha do Mediterrâneo, ela e o marido, desde há uns tempos, ficaram, em parte, encarregados de uma das propriedades, a árdua tarefa de, todos os fins-de-semana, se deslocarem para lá,  zelar pela casa e pelos animais, duro, muito duro, há vidas complicadas, acentuava o final de cada relato com uma longuíssima expiração, por norma era dentro do comboio, a presa sem escapatória possível, que as apanhava, passados uns meses, ela deixou de se sentar, passou a viajar, em pé, junto às portas, tudo em vão, a inclemente predadora parecia farejar as suas presas, aparecia de surpresa, com um “Bom-dia” demasiado sonoro, sobretudo para a circunstância, metade da carruagem tê-la-á ouvido, duas ou três frases depois, “Hoje estou nervosíssima! Nem imagina! Não é que o meu Paulo tem um exame dificílimo! Se for aprovado, tem trabalho certo lá na faculdade! O orientador já o assegurou! Há duas semanas que estuda noite e dia, noite e dia, para este exame! Quase não se alimenta! Não sei como se aguenta em pé…”, felizmente a cadência do comboio abafava-lhe ligeiramente a voz, apesar do esforço para se ouvir, tratava-se, afinal, de uma inclemente predadora, ela já não sabia o que fazer, não havia, pelo chão, beatas para contabilizar, assim sendo, olhava horizontes, perdia-se pelo possível das praias da margem-Sul, há mais de uma década lá não iam, talvez mais, curioso, pensou ela, há hábitos que, sem se saber o porquê, vamos perdendo, até da memória se desvanecem, uma manhã, seria Sábado, pois, foi há bem mais de dez anos, talvez uns dezoito, ela com o filho a brincar na areia, o marido possivelmente na água, muito nítido ela com o filho a brincar na areia, pá, ancinho, balde, aqueles típicos utensílios infantis com as cores da alegria, não consegue trazer ao presente o que edificavam, mas é de somenos, apenas perdura, muito nítido, o eco da espontaneidade da criança: “És a melhor mãe do mundo!” Nem a cadência do comboio conseguiu esbater este eco do ontem – “És a melhor mãe do mundo!” –, espontâneo, genuíno, puro – “És a melhor mãe do mundo!” –, levantou o olhar, sorriu para a inclemente predadora, e “Está a ver, do outro lado, as praias de Sul? Sabe, certa vez, estávamos por lá, teria o meu filho uns dois ou três anos, virou-se para mim, enquanto brincava na areia, e sabe o que disse…?”


segunda-feira, 26 de agosto de 2024



 No fundo, todas as histórias de amor são belas, por serem raras, não fosse o amor o mais raro bem deste mundo...

in Vazios

Vazios


 

Há uns dias, não sei porquê, parei e olhei para um lugar significativo desta minha passagem pelo aqui, de facto, ignoro a razão de o ter fixado precisamente naquela tarde, pois ali passo de vez em quando, mas não me quero perder, como dizia olhei para um lugar significativo desta minha passagem pelo aqui, estive, há uns anos, ali por um imperativo-social, religioso e, acima de tudo, do sentir, o meu olhar de hoje vislumbrava o lugar onde se tiraram múltiplas fotos, à minha volta mais de uma centena, entre familiares, amigos, conhecidos, desconhecidos e até inimizades – também era um imperativo-social –, disse há pouco que olhei para um lugar significativo desta minha passagem pelo aqui, talvez não seja bem assim, quando o meu olhar percorreu aquela escadaria, encimada pelas pedras que nos relembram a existência de Deus, eu procurava reconstruir, pelo menos, uma das múltiplas fotos ali tiradas naquele dia, porém, foi-me impossível, tentei, voltei a tentar, esforcei-me de novo, só subtracções às originais, a minha mente não parava de somar subtracções, um terror assomou das funduras da minha alma sob a forma de uma questão: “Se fosse hoje, quantos ali estariam presentes?” Não parava de somar subtracções, tantos e tantos já partiram, e não foi há tanto assim que ali entrei por um imperativo-social, religioso e, acima de tudo, do sentir, senti-me perdido, esmagado, “Se fosse hoje, quantos ali estariam presentes?” Desde que nos lembramos de sermos, quantos vazios já somamos? Em verdade, a lista só termina quando também partirmos, essa é a ironia maior! Viuvez é feminina, o homem não tem tal dignidade, pela carência, fragilidade, o desamparo da solidão, a criança que jamais deixou de ser, a incessante procura pelo abrigo de um colo, enquanto a mulher sempre mais completa, fortificada, granítica, como se imune ao desamparo de caminhar só, não fosse ela fonte de vida, ninguém olha uma mulher só com compaixão, já um homem, pois, a incessante procura pelo abrigo de um colo… Há uns dias, num entardecer, chamaram-me a atenção para uma velhota, aprumada, vinha, sozinha, assistir ao adeus da luz à terra dos homens, ali permaneceu, entre as várias dezenas de espectadores, poucos eventos terão esta nobreza, durou cerca de uma dezena de minutos, quando, por fim, o adeus da luz se cumpriu, todos dispersaram, no entanto, o meu olhar procurou a velhota, para quem há pouco me haviam chamado a atenção, lá a encontrei, aprumada, de facto, mas pressenti-lhe um latente desamparo a cada passo, pelo vazio de agora, talvez, antes, ali viesse, todos os finais de tarde, acompanhada por quem lhe fazia nascer sorrisos no rosto, assistir ao adeus da luz à terra dos homens, ali permaneciam, abraçados, rostos para Oeste, a contemplar aquela singular melancolia de um adeus, assim que, no horizonte, nem memória do alaranjado de há pouco, regressavam a casa, talvez morassem perto, caminhavam abraçados ou de mão-dada, compreendi pelo latente desamparo a cada passo, devia haver confidências pelo caminho, risos, compreensão, desconheço se tem filhos, embora o latente desamparo a cada passo indicie que não, aquela mulher há muito se despediu do mundo, o seu sentir partiu com quem lhe fazia nascer sorrisos no rosto, que bela história de amor terá sido… No fundo, todas as histórias de amor são belas, por serem raras – não fosse o amor o mais raro bem deste mundo –, continuei a olhá-la, lá ia pelos passeios anoitecidos, aprumada, de facto, mas pressenti-lhe um latente desamparo a cada passo, talvez morassem perto, caminhavam abraçados ou de mão-dada, a certa altura pareceu-me vê-la sorrir, não, não foi impressão, ela sorriu, que bela história de amor terá sido…

sábado, 24 de agosto de 2024


 

Creio ser tarde para tudo! Nós somos apenas memória! Só aí respiramos.

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Teatro


 

Estou, da janela, com a rua deserta e anoitecida, sabes, cada vez gosto mais de olhar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo? O resto é apenas teatro, e de fraca qualidade, duvidas? Agora tudo de férias, conceito mais estranho, se a maioria nem trabalha, férias de quê? Repara, o próprio conceito se dilui no circo de fotos e publicações, nas redes-sociais, com o destino mais exótico, longínquo, luxuoso, a foto mais ovacionada, por regra com uma generosa dose de carnes à mostra, em posições artificiais, sorrisos postiços, e uma efémera tentativa de exteriorizar “Estou no paraíso e sou tão feliz…” Não é necessária muita sabedoria para se compreender que o paraíso não é deste lado, daí a minha crescente inclinação por contemplar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo? Creio que, no fundo, fogem de si mesmos, apenas e só, e o sorriso de cada foto é diametralmente oposto à felicidade sentida, não duvides, lembro-me de um conhecido, não, não me tentes dissuadir, não emprego a palavra “amigo” com facilidade, como dizia, chegados os ditos meses de férias, escolheu um destino de postal, lá despendeu a imperativa e redonda quantia, logo no aeroporto fotos e fotos, no avião também, convém assinalar tudo ao minuto, como se de uma reportagem fotográfica se tratasse, como lá chegaram de tarde, o sol ainda iluminava horizontes, fotos do destino avistado das alturas, o sonho materializado, a aterragem, o aeroporto, a chegada ao hotel, assim que cumprida a sempre exaustiva burocracia, a corrida até à praia, o sol ainda generoso, por conseguinte, fotos e mais fotos – não duvido haver quem chegue perto da centena diária ou ultrapasse esta simbólica barreira –, no dia seguinte, tudo se repetiu, acreditaram estar efectivamente no paraíso, ao terceiro dia, as trevas surgiram no horizonte sob a forma de nuvens, entreolharam-se e o pensamento mais à mão “É passageiro! Até serve para romper a monotonia! O sol regressará mais forte,,,”, a verdade é que não regressou, ele, com uma paciência de rés-do-chão, questionou, após o pequeno-almoço, um empregado se aquele tempo era habitual, este apontou para um monte, que apelidou de “vulcão”, e discorreu a mais atamancada teoria possível, incrédulo perante tal estupidez nem conseguiu retorquir, apesar de uma considerável parte de si querer acreditar naquela atamancada teoria, quando tudo se desmorona à nossa volta, agarramo-nos ao possível, após as nuvens do terceiro-dia, o quarto acordou com chuva, o humor do casal alinhava-se com as sombras exteriores, vislumbrar a chuva através de uma janela tem primeiramente o condão de nos despertar a melancolia, de seguida, se os houver, aportam os terrores do ontem, ele estava bem preenchido de gritos funestos, ela procurava alternativas, como as piscinas-interiores, no entanto ele reticente com esta possibilidade, contestava que ali estava apenas e só por praia, para cúmulo descobrira recentemente, após a necessária introspecção, que preferia muito mais praia a piscina, o contexto natureza, areia, a valia do sal para a saúde, o movimento rítmico das águas, o despertar das endorfinas, enfim, de tudo o que pôde se valeu para sustentar a sua tese e adensar a dramatização do seu contexto, chegou a vociferar “São todos uns vigaristas! Que vão para o vulcão que os parta! Jamais aqui voltarei a pôr os pés!!!”, ela nem balbuciou uma sílaba, limitou-se a ouvi-lo e a dar-lhe razão sem verbo, muito comum entre eles, compreensível, já havia fogo-de-artifício que chegasse de uma parte, era desnecessário adicionar o que fosse, considerava ela, ainda hoje, se lhes perguntarem, pouco se recordam dos três últimos dias, muito menos da viagem de regresso, tudo se cumpriu sob um considerável efeito depressivo, após o segundo-dia, deixou de haver fotos, ela ainda tirou uma ou duas na piscina, ele jamais, distante, muito distante, das centenas dos dois primeiros dias, este casal sobreviveu ao revés, que não é de somenos, de uma ilusão, alimentada ao longo de um ano, de estar, pelo menos durante uma semana, no paraíso, jamais pode ser desvalorizada, repito: este casal sobreviveu! Enquanto ele se limitou a vislumbrar as trevas chuvosas do sítio e a lamber as feridas, ela procurou reunir todo e qualquer aspecto positivo, esta substancial diferença de posições permitiu-lhes continuar a sua marcha lado-a-lado, não obstante só ter havido fotos nos dois primeiros dias, embora quem as viu ficasse tão aquém do acontecer, ou os invejasse ou desejasse ali aportar um dia, os primeiros são os avessos à acção, os segundos são precisamente o oposto, conhecem o seu carácter de inevitabilidade, mas não julgues que o teatro, e de fraca qualidade, sucede só nesta altura, está omnipresente em cada respirar, à mesa do restaurante, por norma fotos de refeições convém quando se vai comer fora, como manda a etiqueta, ou lá o que isso for, do teatro, e de fraca qualidade, em passeios, a exibir o último artigo comprado, enfim, um delírio colectivo que, de repente, arrastou quase todos, como se a sua vida, de facto, interessasse aos outros: repito: ou os invejam ou ali desejam aportar um dia… Ignoro onde este teatro, e de fraca qualidade, nos irá levar, não auguro muita felicidade, a histeria é demasiada, privado e público hoje são conceitos difusos, quando na essência são antónimos, logo algo de muito inquietante respira entre nós, há também os que nada publicam, mas tudo veem dos outros, os dissimulados, a fauna é vasta, como vês, subitamente, cada um tem, na sua mão, a possibilidade de projectar os seus desejos, de outro modo, aquilo que ambiciona ser reconhecido, nunca por ali vislumbrei a Verdade de uma lágrima salgada, uma fila-de-trânsito, a birra de um filho, a zanga de um casal, o desemprego, a calculadora, na mão, para enfrentar as compras da semana, a doença, uma ida à farmácia, um pneu furado, um desarranjo intestinal, uma dor de dentes, o tédio de um Domingo à tarde, a marquise sempre demasiado próxima do prédio em frente, o opressivo silêncio de um almoço familiar após uma discussão, e a vida, como sabes, é tão isto, uma tão sonhada semana no paraíso e cerca de cinquenta-e-uma a sonhá-la, depois a semana de paraíso reduz-se a dois dias e cinco a contemplar as trevas caídas dos céus, se um casal sobreviver a isto é porque ainda tem espaço para o sonho, estou, da janela, com a rua deserta e anoitecida, sabes, cada vez gosto mais de olhar ruas desertas e anoitecidas, já viste mais verdade no mundo?

segunda-feira, 19 de agosto de 2024



... nós somos a soma de momentos, mas a poucos regressamos, esses são os que perduram e iluminam a palavra saudade…

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Um olhito-transviado e maroto

 


Há personagens, com que nos cruzamos neste somar de dias, que, por este ou aquele motivo, nos parecem familiares: rosto, voz, gestos, situações, em alguns casos apenas a sensação de familiaridade, e a dúvida da sua génese; noutros identificamos logo por se assemelharem a personagens de cinema ou de televisão, esta personagem, por acaso, tinha o seu sósia noutra arte: na banda-desenhada! Tudo por causa do seu essencial par-de-óculos! Sempre que se invoca alguém, por muitas particularidades que haja, primeiramente surge o rosto, de seguida a voz (factualmente: visão, audição, os dois mais relevantes sentidos), neste caso, o rosto estava engolido pelas lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a típica bigodaça destes lados, se me perguntassem a cor dos seus olhos, apesar de nada me interessar, não teria resposta, tal o hermetismo daquelas lentes, para o leitor não pensar que me distraí, esclareço já que o seu sósia, na banda-desenhada, é o director de um certo jornal, permanentemente mal-humorado, onde trabalha, nas horas livres, um fotógrafo de nome Peter Parker, o rosto engolido pelas lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a bigodaça, este, talvez não por acidente, vendesse jornais, e não só, tinha uma papelaria, onde também trabalhava a mulher, percebia-se-lhe, à distância, o temor e respeito que esta lhe infundia, e uma empregada, mais nova, tinha um olhito-transviado, quando que me atendia, não sei porquê, obrigava-me a olhar para trás, ou talvez soubesse, o olhito-transviado levantava-nos suspeitas de presenças reveladas ausências, outra das suas características, que não passou despercebida às lentes-escurecidas, um pouco abaixo, a típica bigodaça destes lados, bom, como hei-de descrever…? Digamos que todas as calças lhe assentavam muito bem, sobretudo vista de trás, sempre que ela cirandava à volta do patrão, as lentes-escurecidas acompanhavam-lhe, com avidez, os passos, talvez fosse preocupação, pois, é isso, certo é que quando a mulher por perto, a empregada era logo reencaminhada para arrumar coisas na cave, o bigode descaía, percebia-se-lhe tristeza, mesmo através das lentes-escurecidas, tinha uma voz-rouca, típica de um jornaleiro, atenção: ali não se vendiam só jornais e revistas! Um dos aspectos que mais me enternecia, ao ali entrar, prendia-se com as múltiplas bolas-de-plástico penduradas, dava um ar de colónia de férias, houve vezes, em verdade, que tive de me recentrar (“Não, não estou numa colónia-de-férias… Não, não estou numa loja infantil… Entrei na papelaria do…”), logo o olhito-transviado e maroto em meu socorro secundado por um par de lentes-escurecidas que ciosamente lhe acompanhavam cada passo, e com razão, de facto todas as calças lhe assentavam muitíssimo bem, este aspecto até me fazia esquecer as vezes que me obrigava a olhar para trás, pois, o olhito-transviado levantava-nos suspeitas de presenças reveladas ausências, certo dia, as lentes-escurecidas resolvem melhorar a sua aparência, inscrevem-se no ginásio mais próximo, para o efeito, bastava atravessar a rua, eu ter-lhe-ia aconselhado a mudar de óculos, mas lá se ia a parecença com o director de um certo jornal, permanentemente mal-humorado, onde trabalha, nas horas livres, um fotógrafo de nome Peter Parker, por conseguinte, mantive-me em silêncio, no primeiro dia de ginásio estava, a seu lado, a mulher, muito direita, um cabelo totalmente imóvel graças às toneladas de laca, todos, por ali, lhes ignoravam quaisquer interesses por prática desportiva, as más-línguas diziam que a mulher só se inscreveu para se certificar se havia, por aqueles lados, um olhito-transviado, se todas as calças-de-ganga lhe assentavam tão bem, imaginemos umas desportivas ou até uns calções, creio que aí as lentes-escurecidas partiam do rosto do jornaleiro de encontro ao chão, no entanto, enquanto ali estavam, alguém tinha de providenciar que a porta da papelaria, onde tantas vezes tive de me recentrar (“Não, não estou numa colónia-de-férias… Não, não estou numa loja infantil… Entrei na papelaria do…”), se mantivesse aberta, não fosse alguém a correr desesperado por uma bola-de-plástico, essa tarefa ficou a cargo do olhito-transviado, o tempo a passar, as lentes-escurecidas a perceberem que, apesar do ginásio, a aparência imutável, só a voz-rouca se acentuava, porém, a mulher até começou a gostar, desconheço se a sua aparência melhorou, talvez por, durante esse período, as lentes-escurecidas não se perderem com o cirandar da empregada com o olhito-transviado e maroto, todos no bairro desconheciam que o olhito-transviado há muito tinha namorado, fez questão de manter a sua vida pessoal sigilosa, compreensível, faria qualquer patrão recuar nos olhares, e o sujeito tinha uma fama nebulosa, certo é que, enquanto as lentes-escurecidas e as toneladas de laca no ginásio, começou a aproximar-se das bolas-de-plástico penduradas, na sua presença, dizia-se, o olhito-transviado e maroto só caminhava na direcção por ele indicada, assim, a caixa-registadora começou a abrir mais que o costume, o tempo a passar, a passar, e a passar, até chegar o dia em que, perante os fornecedores, as lentes-escurecidas não terem verba para os satisfazer, a atenção da mulher logo no olhito-transviado e maroto, a voz-rouca a pedir-lhe calma e prudência, após muita indagação, já com terceiros envolvidos – contabilistas, advogados e afins –, tudo se confirmou, aí veio ao de cima a existência do tal namorado de fama nebulosa, ainda hoje ignoro se o maior choque, para as lentes-escurecidas, foi a existência de um namorado ou as acções do olhito-transviado e maroto, a minha intuição aponta para a primeira possibilidade, a mulher tratou logo de despedir, com justa-causa, o olhito-transviado e maroto, a voz-rouca nem se manifestou, olhava à sua volta perdido, talvez questionasse onde estavam as calças que tão bem lhe assentavam, sobretudo vista de trás, o problema é que os fornecedores não deixavam a porta, afinal, a caixa-registadora fôra aberta vezes demais, e eles tiveram que fechar a porta, desconheço o seu paradeiro, apenas sei que deixaram o ginásio, compreensível, para quê melhorar a aparência se nem vislumbres de um olhito-transviado e maroto a cirandar por perto, e em que todas as calças tão bem lhe assentavam, sobretudo vista de trás.

sábado, 10 de agosto de 2024


 

... talvez escrever seja o respirar da minha alma...

in Esta estranha coisa de juntar palavras

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Esta estranha coisa de juntar palavras


 

Uma das ambições que, desde cedo, guardei para mim, foi a de escrever um livro, concretamente um romance, desconheço a sua génese, talvez não se distancie tanto assim daquele lugar-comum que cada homem, nesta sua passagem, deve: “Plantar uma árvore, escrever um livro e fazer um filho”; quando ouvia, em miúdo, isto, de mim para mim o maior desejo inquestionavelmente estava com o livro, lá por casa, com demasiada insistência, empurravam-me para a leitura, o problema é que nunca gostei de ser empurrado e muito menos que meçam forças comigo, por conseguinte, durante muitos anos andei afastado de capas, lombadas, contracapas e páginas, sempre que, ao serão, reforçavam a pertinência da leitura, simplesmente respondia: “Ler é perda de tempo! O importante é viver!” E não estava errado, como se pode derramar numa folha de papel o que não se viveu? O gosto pelo livro veio mais tarde, foi preciso um Mago para o despertar, e, até à minha última expiração, estar-lhe-ei grato, assim como aos Escritores que tanto influenciaram a minha mundividência, não foram muitos, confesso, daí a sua relevância ser maior, há quem defenda que estamos no lugar e na companhia devidos, pois, não sei, em tempos redigi: “Escrever é dizer não ao acontecer”, a Arte é sempre uma insubordinação, o artista jamais se resigna, não quero com isto afirmar ingratidão, mas tenho esta mania de me perder a olhar horizontes… Esta mania de me perder a olhar horizontes… Faz parte da minha fôrma, e como demorei a compreendê-lo, às vezes penso que vivi ao contrário, houve coisas que cedo entraram na minha vida e outras tarde aportaram, no entanto, um desejo sempre luziu em mim: o de escrever um livro, mais concretamente um romance; hoje já somo oito, não, não gosto de todos da mesma forma, tenho o meu preferido, o que menos aprecio, o mais solar, o nocturno a que não gosto de regressar, não os olho da mesma forma, neste ponto as preferências equivalem ao orgulho, porém há o laço inquebrável por de mim provirem, desconheço quantos livros ainda tenho por escrever, esta estranha coisa de juntar palavras, preencher o inquietante vazio de uma página em branco, como se calasse um dilacerante grito de dor, por um latente e doloroso vazio, há uns tempos compreendi que o mais difícil é sempre a primeira palavra, desta verdade jamais alguém me demoverá, a primeira palavra, simultaneamente a que ilumina e desbravará o caminho às vindouras, uma conquista recente prende-se com o facto de escrever somente para me agradar, já não me interessam os juízos de terceiros, no início claro que aguardava, com impaciência, o parecer de alguns que me mereciam crédito, isso já lá vai, neste momento o meu foco está que, a cada página escrita, se desvele um pouco mais do meu nebuloso “eu”, a sonoridade das palavras, a incessante procura de dizer as coisas que o pensar só depois ilumina, pela sua singela evidência, não raras vezes, quando em grupos na juventude, dava por mim, da considerável distância do pensar, a observar-lhes os tiques, trejeitos, a aguardar as frases que lhes maquilhavam as vontades, a contabilizar inocência e malícia – resultado sempre tão desnivelado a favor da última –, como se uma fatalidade, lamento que o Mal sempre nos marque mais que o Bem, mas é um facto, é da nossa essência esta particular sensibilidade para o Mal, já escrevi múltiplas linhas para ajustar-contas, no fundo desde a primeira-linha creio que estou a ajustar contas comigo, talvez por, demasiado tarde, compreender que a capacidade da desilusão reside em cada um de nós, por outras palavras, jamais alguém nos desiludiu, fomos sempre nós que o fizemos, em tempos escrevi, numa mensagem, “Viver, aprender…”, é a realidade, sempre que se me afigurou chegar a um ponto elevado e daí observar o mundo circundante, lá vem a vida, com toda a sua volumosa ironia, lançar-me por terra e abolir todas as certezinhas até então fragilmente construídas, creio que a vida muito gosta de se rir de nós, desta verdade jamais alguém me demoverá, não raras vezes dou por mim a questionar a razão que me leva, noites infindas, a juntar e juntar palavras, claro que certas linhas me fizeram regressar à doçuras de dias idos, onde um sonho norteava cada passo, outras houve que me submergiram em pesadelos dos quais, em verdade, jamais se desperta por inteiro, mas esta coisa de juntar palavras é um imperativo de fonte incógnita, simplesmente tenho de cumprir, há quinze-anos o compreendi, desde então limito-me a obedecer-lhe, talvez escrever seja o respirar da minha alma, é possível que sim, nunca tive qualquer paciência para conversas de ocasião, sobre o tempo, trânsito, situações confrangedoras como no elevador com um vizinho, limito-me a um sorriso opaco e a anuir, já não encontro paciência para mais, não quero com isto colocar-me acima seja do que for, apenas sublinho e repito que nunca tive paciência para conversas de elevador ou de sala-de-espera, embora esteja atento a tiques ou trejeitos que possam ser necessários para preencher o inquietante vazio de uma página em branco, e quantas circunstâncias assim já ilustrei, se me preocupo, quando partir, se serei lido? É como perguntar, a quem ajuda um desvalido, se espera gratidão! Trata-se de um imperativo, Kant explanou-o magistralmente, sempre tive esta mania de me perder a olhar horizontes… Esta mania de me perder a olhar horizontes… Desde há quinze-anos ando a juntar palavras para compreender a direcção do meu olhar.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024


 


 

Quanto já perdeste no aquém por tanto olhares a distância? Nunca serás feliz nessa demanda pela perfeição!

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

terça-feira, 6 de agosto de 2024

As toneladas do pensar inclinam-me para a terra


 

Há uns dias, apercebi-me desta evidência: sempre que o pensar num torvelinho, eu a olhar o chão do mundo, como se precisasse de um lastro para não me afundar de vez… Pois, de facto, o pensar pesa-me toneladas, como gostava de, pelo menos, livrar-me de algumas, aligeirar este pesaroso fardo que, a cada instante, me ameaça esmagar de encontro à terra, andava eu nisto quando, de repente, surge a imagem de uma velhota, amiga da família, há uma altura na vida, não sei porquê, que todos os adultos nos parecem velhos, como se falassem uma linguagem distinta e simultaneamente vivessem num mundo lá muito deles, aborrecidíssimo, onde só há lugar para telejornais, inflacção, problemas e mais problemas, enfim, tudo aquilo que uma criança abomina – o esbater das cores do mundo –, como dizia, há uma altura na vida, não sei porquê, que todos os adultos nos parecem velhos, e, apesar de haver décadas de diferenças entre eles, tudo nos passa despercebido, por um simples facto: são adultos - falam uma linguagem distinta e simultaneamente vivem num mundo lá muito deles, aborrecidíssimo, onde só há lugar para telejornais, inflacção, problemas e mais problemas… Não obstante esta evidência, a imagem de uma velhota, amiga da família, uma aura de leveza, sorria com o rosto, vista do hoje, não me recordo de a ver inclinada para a terra pelas toneladas do pensar, talvez por um simples facto: distraía-se com facilidade – e não se importava com isso –, ora tinha de vigiar, pela manhã, a saúde de umas tias ainda mais velhas, viviam as duas, num primeiro-andar, sem elevador, uma escada deveras íngreme até lá, era a sua única parente viva, por conseguinte, todas as manhãs, impreterivelmente, como se uma incumbência divina, lá ia zelar pelo bem-estar das duas, aos fins-de-semana, quando o marido por casa, passavam lá os dois, o maior lamento das duas velhotas era a impossibilidade de assistirem à missa, a inclinação da escada e a soma dos degraus tornava impossível a saída de casa, restava-lhes a telefonia, à hora do culto, sentavam-se na mesa-da-cozinha, terço na mão, fechavam os olhos, e logo se viam transportadas para a igreja-matriz, que se situava a duas centenas de metros; regressava a casa, perto da hora de almoço, e lá tinha de providenciar refeição para três: ela, o marido, que vinha almoçar a casa, e o irmão, relojoeiro, alugara uma casa, mesmo ao lado, que transformara em oficina; à noite, cumpridas as missões diárias, ocupava-se com as tramas novelescas, quando assentava lá por casa, assim que ecoava a música do genérico da telenovela do momento, sabia que se instalava um silêncio análogo ao da cozinha onde, duas velhotas, na impossibilidade de assistirem à missa, a inclinação da escada e a soma dos degraus tornava impossível a saída de casa, se sentavam à mesa, terço na mão, fechavam os olhos, e logo se viam transportadas para a igreja-matriz, que se situava a duas centenas de metros, um dos seus aspectos mais fascinantes, aos meus infantis olhos, era a naturalidade com que falava das acções das personagens, como se pessoas de facto, no entanto, nunca lhe ouvi rotundos juízos-de-valor, havia em si uma velada compreensão por aqueles que optam por seguir caminhos anoitecidos, o rosto sempre sorridente, quando lhe perguntavam pelo dia seguinte, lá falava das tias, da preocupação pela escada íngreme e a soma dos degraus, não se esquecer de comprar pilhas para a telefonia, a uma certa hora, há uma cozinha que se transforma miraculosamente na igreja-matriz, situada a duas centenas de metros, olhava sempre em frente, nunca para cima, sinal de desconhecer as alturas, jamais para baixo, pois, o pensar não lhe pesava, e assim se lhe somaram os dias, de distracção em distracção, até do horizonte tudo se subtrair, do irmão nunca mais soube, a sua versão masculina, um sujeito baixo, para o anafado, à volta da mecânica dos relógios, outra coisa aborrecidíssima, já por aqui pressentia o peso do meu pensar, afinal, quem podia achar graça a andar todo o dia, com uma bata azul-escura, nodoada, numa cave, onde nem um vestígio de sol chegava, que tresandava a ferrugem? Neste aspecto, o meu respeito estava todo com as duas velhotas, na impossibilidade de assistirem à missa, a inclinação da escada e a soma dos degraus tornava impossível a saída de casa, se sentavam à mesa, terço na mão, fechavam os olhos, e logo se viam transportadas para a igreja-matriz, que se situava a duas centenas de metros, pensar e sentir – há quem designe de Fé –, impeliam-nas para as alturas, e toda a realidade circundante se metamorfoseava, àquela hora, tão distante de uma bata azul-escura, nodoada, numa cave, onde nem um vestígio de sol chegava… Como há pouco referi, tudo se subtraiu do horizonte, só no espaço da memória estas personagens, há uns dias, me regressaram, não vou revelar o final da velhota, amiga da família, uma aura de leveza, sorria com o rosto, é sabido que, há muito, não se veem desfechos grandiosos, tudo dentro de portas, sob o compasso da medicação, não raras vezes já sem se saberem, e a dignidade nem encontra porta de entrada neste quadro, pois, como se tudo já fosse a normalidade… Um dia destes, hei-de comprar umas pilhas, encontrar algures uma telefonia, e, a uma certa hora, sentar-me à mesa-da-cozinha, talvez a igreja-matriz não fique a duas centenas de metros.


sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Que rosto contemplarei quando fechar os olhos pela última vez?

 



Percebi, há pouco tempo, que sou eu que procuro o mundo e não o mundo que me procura. Chegar a esta conclusão teve, claro, o seu quê de amargura, nunca é fácil percebermos, de repente, que a nossa campainha deixou de soar. Reconheço que já ando para aqui há algum tempo, não é que esteja para além dos limites, pelo contrário, ainda estou aquém dessas metas, contudo, muitos da minha leva já embarcaram na derradeira viagem. Ao contrário de outros, não a receio, tenho uma inesgotável curiosidade em saber onde me conduzirá, sempre ouvi falar em tantos destinos, desde horizontes de nuvens e criaturas aladas, a intermináveis fogos acompanhados de gritos lancinantes, outros dizem que se trata de uma pausa, para aqui regressar com outras vestes, há ainda quem defenda que tudo acaba, como se mergulhássemos numa noite imensa, onde não houvesse mais nada, nem nós mesmos, confesso que esta visão sempre me assustou um pouco, pelo absurdo da coisa, lembra-me, em certa medida, aqueles filmes que vemos numa ansiedade crescente e, de repente, terminam, de uma forma perfeitamente estúpida, sem um final condigno. Não, isto afigura-se-me insuportável, ando a matutar nestas coisas, e não é de agora, desde que o meu marido se finou, vai para doze anos, éramos tão amigos, tão companheiros, não havia melhor homem, recto, honesto, educado, muito educado mesmo, nunca lhe ouvi um palavrão, segurava-me sempre a porta, um autêntico cavalheiro, ainda dizia “ora, se faz favor”, o que eu rejubilava com o “ora, se faz favor”, tanta saudade, quando fazia a barba, por exemplo, nem um resquício pelo lavatório, nada, tão higiénico, nessa altura, de facto, a minha campainha soava mais, tinha as minhas amizades entre algumas vizinhas, nada de especial mas sempre nos entretínhamos a conversar disto e daquilo, das novelas às novidades do bairro corríamos tudo, confesso a minha preferência pela temática das novelas, daí que os laços de amizade, mais consistentes, fossem com as devotas dos infortúnios televisivos além-Atlântico. Nunca percebi aquelas mulheres que não viam novelas, ou que falavam disso com uma insensibilidade que me remoía. Havia uma, em particular, que morava num prédio em frente, também já morreu, coitada, que, uma vez, me chegou a dizer que detestava novelas. Veja-se só! Nem lhe respondi, lembro-me bem, encontrei-a nas compras, falávamos disto e daquilo, não, minto, ela só falava de preços, do galopante aumento das coisas, de multiplicar o almoço para o jantar, sem que os filhos se apercebessem, dizia que para dureza, nesta vida, já bastam as pedras da calçada,” vivia num pânico que o marido perdesse o emprego, enfim, um drama, e, inopinadamente, sai-se com esta, “Oh, vizinha?! Sinceramente, está-me a confundir? Eu vejo lá disso! É o que eles querem… Antes davam pão e circo, agora só dão o circo… Novelas e bola, mas os estômagos continuam vazios, e os espíritos a desaprender de sonhar… Peguei no saco, que havia pousado, para dois dedos de prosa, e segui, magoada, como é óbvio, a pensar como é que alguém podia detestar novelas… Ela nunca percebeu o meu azedume, também possuía as minhas artes do disfarce. O meu marido, éramos tão amigos, tão companheiros, não havia melhor homem, por exemplo, se estava a ver a bola, chegada a hora da novela, nem um óbice, de imediato dizia “ora, se faz favor”, o que eu rejubilava com o “ora, se faz favor”, e levantava-se para mudar o canal. Passado pouco tempo, adormecia, mas nem um vislumbre de ressonar, coitado, era compreensível, o cansaço do trabalho, àquela hora, vencia-o. Talvez por isso, não assistisse àquelas reconciliações tão emotivas, àqueles beijos sôfregos ao som de músicas que me apertavam o coração, talvez fosse por isso também que, em certas situações, tão distantes que preciso de esforçar a memória para as alcançar, fechasse sempre a luz e não admitisse que o lençol se levantasse nem um bocadinho, beijos sempre fugazes, quando íamos pela rua, volta e meia, dava-lhe a mão, enquanto recriava a cena do episódio vespertino, chegava mesmo a cantarolar a música, mas bastavam dois ou três passos, para ele logo me devolver a mão ao bolso do meu casaco. Não havia melhor homem, recto, honesto, educado, muito educado mesmo, nunca lhe ouvi um palavrão, segurava-me sempre a porta… Por isso, às vezes não compreendo o porquê de sonhar com aqueles das novelas, despenteados, rudes, por vezes, mal-educados, que se esquecem sempre de segurar a porta, porém, não há semana em que não os veja a segurá-las nos braços, a beijá-las como se não houvesse amanhã, murmúrios passeantes à beira-mar de dedos entrelaçados, certo dia, nas compras, reencontro a vizinha do prédio em frente, a tal que não via novelas, estava com o marido, saíram à minha frente, reparei, era impossível não o fazer, que caminhavam de dedos entrelaçados, e, de facto, nem por uma vez, ele apontou, à mão dela, a direcção do bolso. Chegamos a um ponto, na vida, em que desaprendemos de lamentar, isto só sucede quando percebemos o porquê das coisas, claro que continuo a ver novelas, mas, por outro lado, sempre que chego diante de uma porta, meu Deus, que saudade de ouvir, uma vez mais, “ora, se faz favor”, e o que eu rejubilava com o “ora, se faz favor”.


 

Às vezes pergunto-me o que é melhor na vida: se ter tacteado o céu e cair por terra ou se nunca do chão tirar os pés?

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã