Livros do Escritor

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quinta-feira, 9 de abril de 2020

A Porteira



A primeira vez que nela reparei foi a meio de uma manhã, ia a sair, ela em sentido contrário, deteve-se, em pleno átrio do prédio, e olhou-me longamente, de cima a baixo, tal foi o meu desagrado com aquela desmedida intromissão, que me ocorreram múltiplas invectivas, contudo, prevaleceu a educação recepcionada de meus pais, e condensei todo o meu desprezo num olhar que gentilmente lhe devolvi, por acaso, nunca tinha ouvido uma palavra abonatória acerca daquela criatura, logo eu que sempre gostei de inferir o mundo pelos meus juízos, porém, após este e outros acontecimentos, que seguidamente irei relatar, tenho somente de corroborar os pareceres chegados, neste ponto, e pelo título deste relato, o leitor já percebeu que falo de uma porteira, aproxima-se dos sessenta, olhando-a de qualquer perspectiva apenas uma imagem esférica, o cabelo quase sempre apanhado, apenas acentua um carácter de vileza, por fim, uns óculos de massa com sabor a três décadas, era comum vê-la de xaile sobre os ombros, sobretudo em dias frios, dava passos curtos e arrastados, talvez para não se desequilibrar, nessa noite, ao jantar, comentei com meus pais o desagrado com aquela intromissão em pleno átrio do prédio, reparei que se entreolharam durante o necessário, numa esperança muda de que eu não notasse, reforçaram a necessidade de educação com os outros e apelaram à benevolência com os mais velhos, encolhi os ombros, mas não me passou despercebido o seu constante entreolhar, quando tal sucedia era sinal de que eu tinha razão, embora, por pedagogia, não me quisessem concedê-la, semanas após a primeira troca de olhares, ouvi minha mãe, num tom arrebatado, “Onde já se viu uma coisa destas? Só neste prédio é que essa mulher conseguia ser porteira! Põe e dispõe perante a apatia de todos! Primeiro, conseguiu que lhe concedessem a casa do rés-do-chão a troco da limpeza do prédio… Agora, ainda lança a escada para um ordenado fixo! E vais ver que consegue! Quando for a votação, na reunião de condomínio, quero ver quem se irá opor! Não compreendo, desculpa, mas não compreendo… Todos se calam! Onde estão os homens?”, não ouvi meu pai contra-argumentar muito, percebi, mais ou menos, o modus operandi  da criatura de imagem esférica, uns óculos de massa com sabor a três décadas, passos curtos e arrastados, talvez para não se desequilibrar, uma estratégia tão bolorenta, dividia para reinar, criou um grupo de condóminos, como é natural espelhos seus, mulheres que avistavam ou já tinham dobrado o sofrível cabo da menopausa, regra geral com casamentos de hábito, onde nem cinzas de paixão, se as houve, o vento há muito as diluíra pelos céus do mundo, ou nem ao casamento chegaram, permanecem sós, solteiras ou abandonadas, num indisfarçável traço de frustração que se lhes grita do rosto aos gestos, por conseguinte, aquando da votação, o séquito levantava o braço balofo sob a orientação dos óculos de massa com sabor a três décadas, e lá conseguiu ser remunerada para além de ocupar  a casa do rés-do-chão, quanto à limpeza, manifestamente sofrível, subsiste, é mais o tempo que fica atrás da porta a ouvir conversas, de forma a extrair informações da vida alheia que oportunamente possa jogar a seu favor, do que a limpar o chão...

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