A
primeira vez que nela reparei foi a meio de uma manhã, ia a sair, ela em
sentido contrário, deteve-se, em pleno átrio do prédio, e olhou-me longamente,
de cima a baixo, tal foi o meu desagrado com aquela desmedida intromissão, que
me ocorreram múltiplas invectivas, contudo, prevaleceu a educação recepcionada
de meus pais, e condensei todo o meu desprezo num olhar que gentilmente lhe devolvi,
por acaso, nunca tinha ouvido uma palavra abonatória acerca daquela criatura,
logo eu que sempre gostei de inferir o mundo pelos meus juízos, porém, após
este e outros acontecimentos, que seguidamente irei relatar, tenho somente de
corroborar os pareceres chegados, neste ponto, e pelo título deste relato, o
leitor já percebeu que falo de uma porteira, aproxima-se dos sessenta,
olhando-a de qualquer perspectiva apenas uma imagem esférica, o cabelo quase
sempre apanhado, apenas acentua um carácter de vileza, por fim, uns óculos de
massa com sabor a três décadas, era comum vê-la de xaile sobre os ombros, sobretudo
em dias frios, dava passos curtos e arrastados, talvez para não se
desequilibrar, nessa noite, ao jantar, comentei com meus pais o desagrado com
aquela intromissão em pleno átrio do prédio, reparei que se entreolharam
durante o necessário, numa esperança muda de que eu não notasse, reforçaram a
necessidade de educação com os outros e apelaram à benevolência com os mais
velhos, encolhi os ombros, mas não me passou despercebido o seu constante entreolhar,
quando tal sucedia era sinal de que eu tinha razão, embora, por pedagogia, não
me quisessem concedê-la, semanas após a primeira troca de olhares, ouvi minha
mãe, num tom arrebatado, “Onde
já se viu uma coisa destas? Só neste prédio é que essa mulher conseguia ser
porteira! Põe e dispõe perante a apatia de todos! Primeiro, conseguiu que lhe
concedessem a casa do rés-do-chão a troco da limpeza do prédio… Agora, ainda
lança a escada para um ordenado fixo! E vais ver que consegue! Quando for a
votação, na reunião de condomínio, quero ver quem se irá opor! Não compreendo,
desculpa, mas não compreendo… Todos se calam! Onde estão os homens?”, não ouvi meu pai contra-argumentar muito,
percebi, mais ou menos, o modus operandi
da criatura de imagem esférica,
uns óculos de massa com sabor a três décadas, passos curtos e arrastados,
talvez para não se desequilibrar, uma estratégia tão bolorenta, dividia para
reinar, criou um grupo de condóminos, como é natural espelhos seus, mulheres
que avistavam ou já tinham dobrado o sofrível cabo da menopausa, regra geral
com casamentos de hábito, onde nem cinzas de paixão, se as houve, o vento há
muito as diluíra pelos céus do mundo, ou nem ao casamento chegaram, permanecem
sós, solteiras ou abandonadas, num indisfarçável traço de frustração que se
lhes grita do rosto aos gestos, por conseguinte, aquando da votação, o séquito
levantava o braço balofo sob a orientação dos óculos de massa com sabor a três
décadas, e lá conseguiu ser remunerada para além de ocupar a casa do rés-do-chão, quanto à limpeza,
manifestamente sofrível, subsiste, é mais o tempo que fica atrás da porta a
ouvir conversas, de forma a extrair informações da vida alheia que
oportunamente possa jogar a seu favor, do que a limpar o chão...
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