Livros do Escritor

Livros do Escritor

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Tenho Saudades de Mim



Ele já não se recorda do exacto momento em que ali entrou. Daquele preciso instante em que se atravessa uma linha (sempre divisora de realidades). Afinal, é essa a sua razão de existir. Mas ele era pródigo em transgressões. Aquela estranha coisa dos limites… O que é isso de um limite? Não será sempre um espartilho? Embora o seu espartilho momentâneo, porém, seja de outra ordem. Um esforço superlativo para ser. Logo que atravessou as portas envidraçadas, a profusão de cheiros. As pernas cederam. Ela, a seu lado, contrariada por ali estar. Só tinha um apetite (o de não ser). Mas ele arrastou-a. Não foi difícil (um corpo de treze anos emoldurado por um rosto de cinquenta; embora, em verdade, andasse pelos vinte e seis). Pelo movimento de gente, seria aí pelo meio da tarde. Sim, eles tinham despertado há pouco. Estavam sem carrinho. Talvez por não haver força para o empurrar. Mas, depois, como levar os sacos? Eles também não iam abastecer qualquer frigorífico. Apenas sobreviver. Nada mais. Começaram pelos iogurtes. Logo ali. Um para cada. A sabedoria da natureza: quando um corpo apenas implora por algo vital, cansado de tanto veneno, é por já avistar a outra margem. E eles sôfregos, reanimados pelas efémeras calorias, partem em busca da padaria, indiferentes a olhares e gestos (que apenas prenunciam um desprezo e nojo inesgotáveis). 

Na padaria, uma senhora, com a idade do respeito, providencia o seu lanche (e talvez dos netos) com o cumprimento da sua carteira. Parcimoniosamente. Ele, proveniente de outra realidade espácio-temporal, grosseiro para a senhora (afinal, desconhecia parcimónia), agreste à lentidão (a vertigem da necessidade requer velocidade), a empregada da padaria ameaça com o segurança (que há muito os conhecia, mas receava a hora do fecho), por fim, ela intervém, e ele afasta-se da padaria e abastece-se nas bolachas, o olhar da idosa nela (uma sincera compaixão eivada de uma genuína tristeza), e ela, agora, mais fraca. A partir dali, apenas aquele olhar. Ela sempre a diminuir. Abrira-se a porta do passado. A arqueologia de um corpo no presente, a alma num passado, não tão longínquo assim. Uma casa com uma família. De vez em quando, a visita de uma avó. Com um carinho lento (sempre o verdadeiro). A mão que lhe passava no rosto (e verbalizava: Vais dar muitas alegrias a esta tua Avó, não é verdade, minha filha? Quero viver, para te ver a subir os degraus da faculdade. Hás-de ser médica, para depois cuidares de mim). Agora, num qualquer lugar de sombras e cimento, ele prepara a sua verdadeira refeição. E a dela também. Afinal, ele é generoso. E neste exacto momento, ela olha a realidade como um todo: na evidência do seu presente, com o peso trazido do passado, e com a mais provável colheita do devir. Só se tem a noção de totalidade quando o tempo se funde. Ele, absorto com o preparo, numa minúcia de cirurgião, a olhar a seringa numa familiaridade inata de profissional, iniciava a sua jornada além tempo.
 
Ela a fundir-se com a parede. A relembrar aquele sorriso que a desarmou. Continuava a olhá-lo. A procurar resquícios do passado naquele pardacento vulto que ali estava, diante de si, a emitir onomatopeias indecifráveis. Um sorriso gabado em toda a escola. Sobretudo no sector feminino, claro. Mas foi nela que mais se demorou. Curioso, com a idade ele desaprendeu a lentidão. É quando se vive ao contrário. Ela sucumbiu ao sorriso. Em casa dela, foi bem acolhido. Mesmo pela Avó. A tormenta começou cerca de dois anos depois. O desconhecido. A ânsia de ir além. Ela ainda procurou refreá-lo. Primeiro, fumos no carro, em lugares tímidos. Ela não achava graça. Mas aquele sorriso podia fugir-lhe. Daí… Em casa, não lhe estranhavam as alegrias fora de estação. Só a Avó, quando estava de visita, retinha a testa. Chamou a atenção do filho e da nora para o perigo daquele sorriso cada vez mais amarelecido, mas os empregos têm o dom de endurecer os ouvidos. Até que, num final de tarde, não houve fumos. Nova transgressão. Afinal, ela sempre ia aprender a usar instrumentos da medicina. A princípio, recusou-se. Ele apenas uma expressão (Acompanha-me, tenho medo de me perder). E aquele sorriso que se esbatia, de instante para instante, e ela, logo a seguir, a enterrar, num antebraço trémulo, pelo garrote improvisado da fita do cabelo, pelo genuíno medo, aquela agulha fria, a fechar os olhos, a entreabrir os lábios, e a despedir-se de quem era (…)


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.