Ele já não se recorda do exacto
momento em que ali entrou. Daquele preciso instante em que se atravessa uma
linha (sempre divisora de realidades). Afinal, é essa a sua razão de existir.
Mas ele era pródigo em transgressões. Aquela estranha coisa dos limites… O que
é isso de um limite? Não será sempre um espartilho? Embora o seu espartilho
momentâneo, porém, seja de outra ordem. Um esforço superlativo para ser. Logo
que atravessou as portas envidraçadas, a profusão de cheiros. As pernas
cederam. Ela, a seu lado, contrariada por ali estar. Só tinha um apetite (o de
não ser). Mas ele arrastou-a. Não foi difícil (um corpo de treze anos
emoldurado por um rosto de cinquenta; embora, em verdade, andasse pelos vinte e
seis). Pelo movimento de gente, seria aí pelo meio da tarde. Sim, eles tinham
despertado há pouco. Estavam sem carrinho. Talvez por não haver força para o
empurrar. Mas, depois, como levar os sacos? Eles também não iam abastecer
qualquer frigorífico. Apenas sobreviver. Nada mais. Começaram pelos iogurtes.
Logo ali. Um para cada. A sabedoria da natureza: quando um corpo apenas implora
por algo vital, cansado de tanto veneno, é por já avistar a outra margem. E
eles sôfregos, reanimados pelas efémeras calorias, partem em busca da padaria,
indiferentes a olhares e gestos (que apenas prenunciam um desprezo e nojo
inesgotáveis).
Na padaria, uma senhora, com a idade do respeito, providencia o
seu lanche (e talvez dos netos) com o cumprimento da sua carteira.
Parcimoniosamente. Ele, proveniente de outra realidade espácio-temporal,
grosseiro para a senhora (afinal, desconhecia parcimónia), agreste à lentidão
(a vertigem da necessidade requer velocidade), a empregada da padaria ameaça
com o segurança (que há muito os conhecia, mas receava a hora do fecho), por
fim, ela intervém, e ele afasta-se da padaria e abastece-se nas bolachas, o
olhar da idosa nela (uma sincera compaixão eivada de uma genuína tristeza), e
ela, agora, mais fraca. A partir dali, apenas aquele olhar. Ela sempre a
diminuir. Abrira-se a porta do passado. A arqueologia de um corpo no presente,
a alma num passado, não tão longínquo assim. Uma casa com uma família. De vez
em quando, a visita de uma avó. Com um carinho lento (sempre o verdadeiro). A
mão que lhe passava no rosto (e verbalizava: Vais dar muitas alegrias a esta tua Avó, não é verdade, minha filha?
Quero viver, para te ver a subir os degraus da faculdade. Hás-de ser médica,
para depois cuidares de mim). Agora, num qualquer lugar de sombras e
cimento, ele prepara a sua verdadeira refeição. E a dela também. Afinal, ele é
generoso. E neste exacto momento, ela olha a realidade como um todo: na
evidência do seu presente, com o peso trazido do passado, e com a mais provável
colheita do devir. Só se tem a noção
de totalidade quando o tempo se funde. Ele, absorto com o preparo, numa minúcia
de cirurgião, a olhar a seringa numa familiaridade inata de profissional,
iniciava a sua jornada além tempo.
Ela a fundir-se com a parede. A
relembrar aquele sorriso que a desarmou. Continuava a olhá-lo. A procurar
resquícios do passado naquele pardacento vulto que ali estava, diante de si, a
emitir onomatopeias indecifráveis. Um sorriso gabado em toda a escola.
Sobretudo no sector feminino, claro. Mas foi nela que mais se demorou. Curioso,
com a idade ele desaprendeu a lentidão. É quando se vive ao contrário. Ela
sucumbiu ao sorriso. Em casa dela, foi bem acolhido. Mesmo pela Avó. A tormenta
começou cerca de dois anos depois. O desconhecido. A ânsia de ir além. Ela
ainda procurou refreá-lo. Primeiro, fumos no carro, em lugares tímidos. Ela não
achava graça. Mas aquele sorriso podia fugir-lhe. Daí… Em casa, não lhe
estranhavam as alegrias fora de estação. Só a Avó, quando estava de visita,
retinha a testa. Chamou a atenção do filho e da nora para o perigo daquele sorriso
cada vez mais amarelecido, mas os empregos têm o dom de endurecer os ouvidos.
Até que, num final de tarde, não houve fumos. Nova transgressão. Afinal, ela
sempre ia aprender a usar instrumentos da medicina. A princípio, recusou-se.
Ele apenas uma expressão (Acompanha-me,
tenho medo de me perder). E aquele sorriso que se esbatia, de instante para
instante, e ela, logo a seguir, a enterrar, num antebraço trémulo, pelo garrote
improvisado da fita do cabelo, pelo genuíno medo, aquela agulha fria, a fechar os
olhos, a entreabrir os lábios, e a despedir-se de quem era (…)
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