Hoje ele pediu-me para mostrar a casa
a um casal (estrangeiro?) que estaria interessado. Precisamente hoje, um
Domingo. Eu ainda ripostei, mas a mãe interveio. Que podia fazer? Todos sabemos
que é à sombra da mãe, que uma família repousa. Lá fui, contrariado. Porque não
ia ele? Que tinha para fazer num Domingo à tarde? Pelo que me apercebi, nada.
Só saía para trabalhar durante a semana. Os fins-de-semana, desde há uns meses,
passados hermeticamente no anexo que lhe cedemos nos fundos do quintal. Com
excepção das horas das refeições, claro. Afinal, todo o eremita tem de ter uma
mesa próxima. E este soube, muito bem, escolher a sua. Chegada a hora, lá fui.
Sempre contrariado. A minha mulher acompanhou-me à porta. Os meus passos
ritmados pela resmunguice. Ela: Está bem,
está bem, mas despacha-te, que ainda chegas atrasado. Olha que não devemos
perder estas oportunidades. E eu a pensar (Quais oportunidades? Na minha idade, já não encontro essa palavra no
dicionário. E ele dentro daquele anexo, a ver para onde aponta a sombra das
árvores). Felizmente, não era longe a casa. Ficava a cerca de 20 minutos da
nossa. Destacava-se das demais, por ficar ao cimo da rua. Assim que os meus
olhos nela, o carro desacelerou, até se imobilizar. Não, era aquela a casa.
Não, não havia nada de diferente. Mas eu tive de parar. Porque a diferença
estava comigo. O casal (estrangeiro?) ainda não tinha chegado. Desliguei o
carro, silenciei o rádio (apesar do relato em breve), abri os vidros na
totalidade, e olhei, apenas isso, talvez para assimilar aquela diferença de há
pouco, porque, talvez aí, nasça a compreensão da génese de um eremita. A casa
tinha dois pisos (apesar do segundo se assemelhar mais a um apêndice, ainda por
extirpar) e um terreno considerável. Era um desses bairros clandestinos, em que
as casas obedecem a padrões estéticos de correntes por enquanto incógnitas.
Talvez o tempo traga algum iluminado que reconheça uma similitude entre Nossa
Senhora e os anõezinhos, ou entre um leão e a torre Eiffel. E eu, no alpendre
da ignorância, sabia-me aquém destes imperativos do sublime. E os azulejos,
sempre no exterior, como se proclamassem ao mundo que, ali dentro, há um lugar
onde se pode aliviar dos pesos da existência. Mas, não sei porquê, hoje aquela
casa afigura-se-me diferente. Talvez porque o meu olhar se tenha demorado mais.
Não sei. Mas pareceu-me vê-la dizer adeus.
Conheceram-se há dois anos. Um dia
telefonou, como sempre à mãe, a dizer que trazia uma amiga para jantar.
Agradou-nos a ideia. Afinal, a idade casadoira estava no final do prazo. Assim
que o vi, nessa noite, apercebi-me. No fundo, foram mais os seus gestos a
denunciá-lo. A solicitude, num homem, brota sempre da mesma fraga. Dela não
gostei. A idade casadoira também no fim do prazo, mas com as ideias inatas de
um recreio de escola. E ele, embevecido, a disfarçar o habitual apetite de
cavalo, em garfadas de pardalito enjoado. Aquele serão pareceu-me uma noite de
insónias com origem numa irreprimível tosse, que nos faz procurar as órbitas,
vezes sem conta, na colcha da cama. Ele olhava-me, numa súplica muda de
tréguas, com receio que eu soltasse alguma sentença confrangedora. E o serão
arrastou-se. A mãe, como sempre, com a sua sombra refrescante. Mas quando o
assunto derivou para maternidade, a dita
amiga manifestou uma veemência até então desconhecida. O tolo anuía a tudo.
A sombra refrescante da mãe esbateu-se um pouco, talvez os ramos se agitassem.
E a amiga dissertou tanto acerca da
temática, que, por momentos, eu acreditei estar perante o obstetra de uma
qualquer maternidade. Finda a refeição, apenas anunciaram um até amanhã. Ela
nem se despediu do prato que deixou na mesa. Olhei a minha mulher. Os lábios
não se distenderam muito. Quando alguém que ainda não perdeu a fé nos homens,
permanece estática numa despedida, é porque acabou derrotada numa grande
batalha interior. E eles lá foram, noite adentro. Levantámos, os dois, a mesa.
E compreendemos, na linguagem da mudez, aquele malogro. Um lar constrói-se
sempre de fora para dentro. Aqueles iam construir, o seu, ao contrário. Como
tantos outros. Sem alicerces sólidos, a ruína está à mercê do tempo. Não sei se
durou um mês, até as malas dela povoarem o anexo. Desde aí, passou a falar-se
mais alto à hora das refeições. E também no resto do tempo. Até que a saída se
tornou uma inevitabilidade. Ela exibia, a determinada altura, o ventre dilatado
como um troféu e o tolo como um refém. Era uma guerra que ela travava consigo
própria. Provinha de um lar construído, também, de dentro para fora.
Compreendemos isso quando nos apresentou a sua mãe, uma senhora sexagenária,
oxigenada quanto baste, com um discurso oco, em que a palavra felicidade vinha
à liça com a mesma rapidez com que puxava por mais um cigarro. E eu a pensar (as palavras exigem o mesmo pudor que os
gestos, ou mais ainda).
Mudaram-se, dois meses antes da bebé,
para uma casa a cerca de vinte minutos de carro da nossa. Uma casa a proclamar
obras. Mas ela queria uma vivenda. Afinal, todos os conhecidos tinham uma. O
tolo correu ao banco. Ainda pediu a minha intervenção. Neguei-lhe. Praguejou.
Ia-me virando a ele. Afinal, o respeito, mas nisto, um ramo tocou-me no ombro,
e sussurrou-me: É ela a falar nele.
Empenhou-se todo. As obras começaram. Ela com laivos de capataz. Os meses
foram-se atropelando. A bebé veio reclamar o seu lugar no mundo. Só um mês
depois, é que ele nos veio apresentá-la. Nada se disse. Talvez a capataz
tivesse feito um intervalo de cabeleireiro. Tinha muitos interlúdios desse
tipo. O tolo, com a bebé nos braços, com um sentir a desenhar-se-lhe no rosto,
num perdoem-me mudo. A árvore logo a
estender os ramos, a dizer-lhe para repousar da fatigante jornada, a cobrir a
bebé com um suave arbusto, e eu a assistir, siderado, numa admiração sentida (...)
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