Livros do Escritor

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domingo, 19 de abril de 2020

A Cor do Abandono



Hoje ele pediu-me para mostrar a casa a um casal (estrangeiro?) que estaria interessado. Precisamente hoje, um Domingo. Eu ainda ripostei, mas a mãe interveio. Que podia fazer? Todos sabemos que é à sombra da mãe, que uma família repousa. Lá fui, contrariado. Porque não ia ele? Que tinha para fazer num Domingo à tarde? Pelo que me apercebi, nada. Só saía para trabalhar durante a semana. Os fins-de-semana, desde há uns meses, passados hermeticamente no anexo que lhe cedemos nos fundos do quintal. Com excepção das horas das refeições, claro. Afinal, todo o eremita tem de ter uma mesa próxima. E este soube, muito bem, escolher a sua. Chegada a hora, lá fui. Sempre contrariado. A minha mulher acompanhou-me à porta. Os meus passos ritmados pela resmunguice. Ela: Está bem, está bem, mas despacha-te, que ainda chegas atrasado. Olha que não devemos perder estas oportunidades. E eu a pensar (Quais oportunidades? Na minha idade, já não encontro essa palavra no dicionário. E ele dentro daquele anexo, a ver para onde aponta a sombra das árvores). Felizmente, não era longe a casa. Ficava a cerca de 20 minutos da nossa. Destacava-se das demais, por ficar ao cimo da rua. Assim que os meus olhos nela, o carro desacelerou, até se imobilizar. Não, era aquela a casa. Não, não havia nada de diferente. Mas eu tive de parar. Porque a diferença estava comigo. O casal (estrangeiro?) ainda não tinha chegado. Desliguei o carro, silenciei o rádio (apesar do relato em breve), abri os vidros na totalidade, e olhei, apenas isso, talvez para assimilar aquela diferença de há pouco, porque, talvez aí, nasça a compreensão da génese de um eremita. A casa tinha dois pisos (apesar do segundo se assemelhar mais a um apêndice, ainda por extirpar) e um terreno considerável. Era um desses bairros clandestinos, em que as casas obedecem a padrões estéticos de correntes por enquanto incógnitas. Talvez o tempo traga algum iluminado que reconheça uma similitude entre Nossa Senhora e os anõezinhos, ou entre um leão e a torre Eiffel. E eu, no alpendre da ignorância, sabia-me aquém destes imperativos do sublime. E os azulejos, sempre no exterior, como se proclamassem ao mundo que, ali dentro, há um lugar onde se pode aliviar dos pesos da existência. Mas, não sei porquê, hoje aquela casa afigura-se-me diferente. Talvez porque o meu olhar se tenha demorado mais. Não sei. Mas pareceu-me vê-la dizer adeus.

Conheceram-se há dois anos. Um dia telefonou, como sempre à mãe, a dizer que trazia uma amiga para jantar. Agradou-nos a ideia. Afinal, a idade casadoira estava no final do prazo. Assim que o vi, nessa noite, apercebi-me. No fundo, foram mais os seus gestos a denunciá-lo. A solicitude, num homem, brota sempre da mesma fraga. Dela não gostei. A idade casadoira também no fim do prazo, mas com as ideias inatas de um recreio de escola. E ele, embevecido, a disfarçar o habitual apetite de cavalo, em garfadas de pardalito enjoado. Aquele serão pareceu-me uma noite de insónias com origem numa irreprimível tosse, que nos faz procurar as órbitas, vezes sem conta, na colcha da cama. Ele olhava-me, numa súplica muda de tréguas, com receio que eu soltasse alguma sentença confrangedora. E o serão arrastou-se. A mãe, como sempre, com a sua sombra refrescante. Mas quando o assunto derivou para maternidade, a dita amiga manifestou uma veemência até então desconhecida. O tolo anuía a tudo. A sombra refrescante da mãe esbateu-se um pouco, talvez os ramos se agitassem. E a amiga dissertou tanto acerca da temática, que, por momentos, eu acreditei estar perante o obstetra de uma qualquer maternidade. Finda a refeição, apenas anunciaram um até amanhã. Ela nem se despediu do prato que deixou na mesa. Olhei a minha mulher. Os lábios não se distenderam muito. Quando alguém que ainda não perdeu a fé nos homens, permanece estática numa despedida, é porque acabou derrotada numa grande batalha interior. E eles lá foram, noite adentro. Levantámos, os dois, a mesa. E compreendemos, na linguagem da mudez, aquele malogro. Um lar constrói-se sempre de fora para dentro. Aqueles iam construir, o seu, ao contrário. Como tantos outros. Sem alicerces sólidos, a ruína está à mercê do tempo. Não sei se durou um mês, até as malas dela povoarem o anexo. Desde aí, passou a falar-se mais alto à hora das refeições. E também no resto do tempo. Até que a saída se tornou uma inevitabilidade. Ela exibia, a determinada altura, o ventre dilatado como um troféu e o tolo como um refém. Era uma guerra que ela travava consigo própria. Provinha de um lar construído, também, de dentro para fora. Compreendemos isso quando nos apresentou a sua mãe, uma senhora sexagenária, oxigenada quanto baste, com um discurso oco, em que a palavra felicidade vinha à liça com a mesma rapidez com que puxava por mais um cigarro. E eu a pensar (as palavras exigem o mesmo pudor que os gestos, ou mais ainda).

Mudaram-se, dois meses antes da bebé, para uma casa a cerca de vinte minutos de carro da nossa. Uma casa a proclamar obras. Mas ela queria uma vivenda. Afinal, todos os conhecidos tinham uma. O tolo correu ao banco. Ainda pediu a minha intervenção. Neguei-lhe. Praguejou. Ia-me virando a ele. Afinal, o respeito, mas nisto, um ramo tocou-me no ombro, e sussurrou-me: É ela a falar nele. Empenhou-se todo. As obras começaram. Ela com laivos de capataz. Os meses foram-se atropelando. A bebé veio reclamar o seu lugar no mundo. Só um mês depois, é que ele nos veio apresentá-la. Nada se disse. Talvez a capataz tivesse feito um intervalo de cabeleireiro. Tinha muitos interlúdios desse tipo. O tolo, com a bebé nos braços, com um sentir a desenhar-se-lhe no rosto, num perdoem-me mudo. A árvore logo a estender os ramos, a dizer-lhe para repousar da fatigante jornada, a cobrir a bebé com um suave arbusto, e eu a assistir, siderado, numa admiração sentida (...)

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