Livros do Escritor

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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Para quê??? III


 

Não obstante “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”, por questões profissionais, teriam de ali permanecer, no mínimo, um ano, ela, sempre mais maleável, adaptou-se perfeitamente à sua nova realidade laboral, apesar das distâncias, quantas vezes as interrogações daquele familiar lhes regressaram (“Vocês têm a certeza? Acham que é uma boa opção? Sempre aqui viveram… Não sei, até a casa parece-me ser bastante deslocada dos vossos trabalhos… Mas, claro, é a vossa vida…”), as estradas tão diferentes das que estavam habituados, sinuosas, estreitas, esburacadas, pejadas de camiões e camiões, tripulados por trolhas e trolhas, numa lentidão exasperante, a vegetação em volta negra, contorcida, imóvel, funesta, nas margens imundas era comum ver-se espelhos de degradação, tudo numa aparência de normalidade, nalguns casos em idade de estar a caminho de uma escola, ali estava o esplendor da decadência, tudo ao alcance da vileza de quem se senta atrás de um qualquer volante, também era recorrente animais trucidados ao longo do alcatrão, tão distante do que estavam habituados, nem vestígios do horizonte azul de três décadas, ele reparou, durante dias e dias, no cadáver de um cão, dilacerado a meio, até as marcas dos pneus se lhe gravaram nos restos visíveis de carne, acima de tudo um céu pardacento, as coisas do mundo sem a dignidade de uma sombra, aquele inquietante sentir, como se caminhasse para uma noite sem prenúncio de amanhã, materializava-se para seu profundo terror,  só à noite usufruíam, e não na totalidade, dos cento e trinta e seis metros quadrados do andar que habitavam, quanto aos cento e trinta e seis metros quadrados do andar superior mantinham-se numa total obscuridade, durante semanas até se esqueciam, quanto à escada, no meio do corredor, que lhe dava acesso, limitavam-se a contorná-la, era pungente, sobretudo à noite, abandonar o carro naquela tão comprida garagem –  parecia um carrito de brincar ali colocado pela mão de uma criança, havia algo de enternecedor na sua solidão no meio daquele amplo espaço, dele parecia emanar um grito envergonhado de desamparo –, as semanas sucediam-se e continuavam a ser os únicos habitantes daquele prédio, nos outros edifícios também só duas ou três casas com luzes, se fossem menos destemidos, seriam presas fáceis do medo, habitavam um de seis apartamentos por vender naquele edifício, nos adjacentes o número não era maior, descobririam, meses depois, que faltava um papelito ao trolha responsável por aquilo, é normal na terra dos papelitos, não os preocupou muito, nenhum deles, por ali, sorria, aos fins-de-semana iam até à praia mais próxima, se aquilo podia ser denominado de praia, um omnipresente vento cortante e agreste, o mar apenas um espelho irado e retumbante da incessante ventania, olhavam as águas e procuravam um resquício do horizonte azul de três décadas, só na sua memória, quem sabe numa outra existência, isso doía-lhes, como lhes doía, por vezes, os corpos caminhavam sem lhes obedecer, no automatismo de cumprir o necessário, sobretudo ele, o que mais mergulhara na dor (“Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”), ela, apesar da maleabilidade, há tanto não sorria, o asco foi-lhes crescendo em relação a tudo, aos cento e trinta e seis metros quadrados a duplicar, à garagem para três carros, ao facto de serem olhados, pelos locais, como estranhos, uma indizível, mas tão palpável, barreira, talvez provenientes de um outro mundo, apesar dos laivos de urbanismo de alguns campónios, uma das piores misturas possíveis, o olhar deles, derramado em redor, que lhes gritava, sem verbo, “Parolos, parolos, parolos…”, agudizava-se, tinham, no entanto, bem presente que por questões profissionais, teriam de ali permanecer, no mínimo, um ano, tentaram agarrar-se aos pequenos prazeres por ali proporcionados, apesar de nem vislumbres do propalado bucolismo rural, apenas um inquietante silêncio em redor, quando almoçavam fora, iam ao mesmo restaurante, ao menos aí eram recebidos com cordialidade, apesar de, nos primeiros tempos, serem olhados como estranhos, uma indizível, mas tão palpável, barreira, também frequentavam a mesma pastelaria, um ambiente mais airoso, quando não rumavam até à praia mais próxima, procuraram explorar as serranias, anos depois, perguntar-lhes-iam aspectos sobre essas paisagens e terras visitadas, não souberam responder, limitaram-se a um desolador encolher-de-ombros, por vezes, os corpos caminhavam sem lhes obedecer, no automatismo de cumprir o necessário, tal sucede quando a infelicidade é demasiada para a alma, quatro ou cinco meses depois, descobriram que o papelito tardava, foram questionar o trolha, talvez não surgisse tão cedo foi a resposta, abria-se-lhes uma porta, ele não hesitou, acordaram rescindir tudo, embora mais maleável, ela prontamente o secundou, também o seu coração oprimido por nem vestígios do horizonte azul de três décadas, na data combinada lá foram oficializar a rescisão, após tudo acertado, o trolha olhou-os com curiosidade e “Não ficam com pena de largar uma casa daquelas? Aquilo é um palácio! Aposto que lá em baixo não há disto! E, se houver, imagino o preço!,” ele não se conteve, a frase saiu-lhe pronta “Sabe, preferia uma cave, lá em baixo, como disse, com um quarto e uma casa-de-banho, a este palácio…”, viraram costas e saíram, os lugares de onde não nos despedimos são os que nos lembram dor, na geografia existencial de ambos este foi um deles, de madrugada chegaram, de madrugada partiram, uma aura de pesadelo, não fossem as cicatrizes na alma que ainda hoje perduram, tiveram indubitavelmente o benefício de cedo aprenderem a lição, cento e trinta e seis metros quadrados divididos por uma sala, cozinha, três quartos e duas casas-de-banho, a meio do corredor, uma escada para o andar de cima, pois, tratava-se de um duplex, um espaço-aberto  precisamente com a dimensão do andar inferior, iluminado por duas amplas janelas modernas, “Para quê???”

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