Não
obstante “Aqui jamais serei feliz! Eu não pertenço a este lugar!”, por questões profissionais, teriam de ali permanecer,
no mínimo, um ano, ela, sempre mais maleável, adaptou-se
perfeitamente à sua nova realidade laboral, apesar das distâncias, quantas
vezes as interrogações daquele familiar lhes regressaram (“Vocês têm a certeza? Acham que é uma boa opção? Sempre
aqui viveram… Não sei, até a casa parece-me ser bastante deslocada dos vossos
trabalhos… Mas, claro, é a vossa vida…”), as estradas tão diferentes das
que estavam habituados, sinuosas, estreitas, esburacadas, pejadas de camiões e
camiões, tripulados por trolhas e trolhas, numa lentidão exasperante, a
vegetação em volta negra, contorcida, imóvel, funesta, nas margens imundas era
comum ver-se espelhos de degradação, tudo numa aparência de normalidade,
nalguns casos em idade de estar a caminho de uma escola, ali estava o esplendor
da decadência, tudo ao alcance da vileza de quem se senta atrás de um qualquer
volante, também era recorrente animais trucidados ao longo do alcatrão, tão
distante do que estavam habituados, nem vestígios do
horizonte azul de três décadas, ele reparou, durante dias e dias, no
cadáver de um cão, dilacerado a meio, até as marcas dos pneus se lhe gravaram
nos restos visíveis de carne, acima de tudo um céu pardacento, as coisas do
mundo sem a dignidade de uma sombra, aquele inquietante sentir, como se
caminhasse para uma noite sem prenúncio de amanhã, materializava-se para seu
profundo terror, só à noite usufruíam, e
não na totalidade, dos cento e trinta e seis metros
quadrados do andar que habitavam, quanto aos cento e trinta e seis metros
quadrados do andar superior mantinham-se numa total obscuridade, durante
semanas até se esqueciam, quanto à escada, no meio do corredor, que lhe dava
acesso, limitavam-se a contorná-la, era pungente, sobretudo à noite, abandonar
o carro naquela tão comprida garagem –
parecia um carrito de brincar ali colocado pela
mão de uma criança, havia algo de enternecedor na sua solidão no meio
daquele amplo espaço, dele parecia emanar um grito
envergonhado de desamparo –, as semanas sucediam-se e continuavam a ser os
únicos habitantes daquele prédio, nos outros edifícios também só duas ou três
casas com luzes, se fossem menos destemidos, seriam presas fáceis do medo,
habitavam um de seis apartamentos por vender naquele edifício, nos adjacentes o
número não era maior, descobririam, meses depois, que faltava um papelito ao
trolha responsável por aquilo, é normal na terra dos papelitos, não os
preocupou muito, nenhum deles, por ali, sorria, aos fins-de-semana iam até à
praia mais próxima, se aquilo podia ser denominado de praia, um omnipresente
vento cortante e agreste, o mar apenas um espelho irado e retumbante da
incessante ventania, olhavam as águas e procuravam um resquício do horizonte
azul de três décadas, só na sua memória, quem sabe numa outra existência, isso
doía-lhes, como lhes doía, por vezes, os corpos
caminhavam sem lhes obedecer, no automatismo de cumprir o necessário, sobretudo
ele, o que mais mergulhara na dor (“Aqui jamais serei feliz! Eu não
pertenço a este lugar!”), ela, apesar da maleabilidade, há tanto não sorria,
o asco foi-lhes crescendo em relação a tudo, aos cento e trinta e seis metros
quadrados a duplicar, à garagem para três carros, ao facto de serem olhados, pelos locais, como estranhos, uma
indizível, mas tão palpável, barreira, talvez provenientes de um outro
mundo, apesar dos laivos de urbanismo de alguns campónios, uma das piores
misturas possíveis, o olhar deles, derramado em redor, que lhes gritava, sem
verbo, “Parolos, parolos, parolos…”, agudizava-se, tinham, no entanto,
bem presente que por questões profissionais, teriam de ali permanecer, no
mínimo, um ano, tentaram agarrar-se aos pequenos prazeres por ali
proporcionados, apesar de nem vislumbres do propalado bucolismo rural, apenas um
inquietante silêncio em redor, quando almoçavam fora, iam ao mesmo restaurante,
ao menos aí eram recebidos com cordialidade, apesar de, nos primeiros tempos, serem
olhados como estranhos, uma indizível, mas tão palpável, barreira, também
frequentavam a mesma pastelaria, um ambiente mais airoso, quando não rumavam
até à praia mais próxima, procuraram explorar as serranias, anos depois,
perguntar-lhes-iam aspectos sobre essas paisagens e terras visitadas, não
souberam responder, limitaram-se a um desolador encolher-de-ombros, por vezes,
os corpos caminhavam sem lhes obedecer, no automatismo de cumprir o necessário,
tal sucede quando a infelicidade é demasiada para a alma, quatro ou cinco meses
depois, descobriram que o papelito tardava, foram questionar o trolha, talvez
não surgisse tão cedo foi a resposta, abria-se-lhes uma porta, ele não hesitou,
acordaram rescindir tudo, embora mais maleável, ela prontamente o secundou,
também o seu coração oprimido por nem vestígios do horizonte azul de três
décadas, na data combinada lá foram oficializar a rescisão, após tudo acertado,
o trolha olhou-os com curiosidade e “Não ficam com pena de largar uma casa
daquelas? Aquilo é um palácio! Aposto que lá em baixo não há disto! E, se houver,
imagino o preço!,” ele não se conteve, a frase saiu-lhe pronta “Sabe,
preferia uma cave, lá em baixo, como disse, com um quarto e uma casa-de-banho,
a este palácio…”, viraram costas e saíram, os lugares de onde não nos
despedimos são os que nos lembram dor, na geografia existencial de ambos este
foi um deles, de madrugada chegaram, de madrugada partiram, uma aura de
pesadelo, não fossem as cicatrizes na alma que ainda hoje perduram, tiveram
indubitavelmente o benefício de cedo aprenderem a lição, cento e trinta e seis
metros quadrados divididos por uma sala, cozinha, três quartos e duas
casas-de-banho, a meio do corredor, uma escada para o andar de cima, pois,
tratava-se de um duplex, um espaço-aberto
precisamente com a dimensão do andar inferior, iluminado por duas amplas
janelas modernas, “Para quê???”
Livros do Escritor
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Para quê??? III
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