Livros do Escritor

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Luar de Inverno III


 

Perante a coreografia da hospedeira-de-bordo, com as cansadas normas de segurança, para quem está habituado a viajar na companhia das nuvens, ambos ficaram atónitos, ela, de início, quase em risos, o pudor lá prevaleceu, para se manter impassível, apesar de questionar o seu crédito, ele optou por imaginar, em caso de desastre, se aquelas recomendações bastariam, assim que as luzes se desligaram, uma voz sem corpo ordenou a colocação dos cintos-de-segurança, o aparelho começou a rolar na pista numa crescente velocidade, até que, até que, as rodas se desprendem da terra, um instante imperceptivelmente sentido por todos, a ânsia impronunciada e secular de o homem tactear os céus, está gravada na alma de cada um, são os que mais olham as alturas a sentir gratidão pelo adeus à terra, em baixo só contemplaram luzes e luzes, um carro ali, outro acolá, numa angustiante solidão, até que o mundo se tornou um oceano de trevas, lamentaram, sem verbalizar, a hora do vôo, tanto que ela desejava ver o seu quotidiano das alturas, para lhe perceber a insignificância, algo lhe ditava esta necessidade, compreender a pequenez das suas atribulações, no entanto, lá em baixo, só luzes e luzes, um carro ali, outro acolá, numa angustiante solidão, até que o mundo se tornou um oceano de trevas, aí a janelita perdeu qualquer interesse, logo que as luzes se reacenderam, ela só vislumbrava o seu reflexo, bem como o latente vestígio de angústia que a acompanhava há uns bons tempos, endireitou-se no banco, ele recostara-se de olhos fechados, embora a impossibilidade do sono lhe fosse certa, por vários motivos (as luzes, o incómodo do lugar, saber que, tarde ou cedo, ela falaria, os vestígios de adrenalina, ainda em si, pela odisseia no aeroporto…), pois, saber que, tarde ou cedo, ela falaria, “Não tens frio?”, da sensação térmica ao desconforto das cadeiras, da fadiga ao tédio de ali permanecer, no mínimo, por mais quatro horas, tentou perceber se ela “Não vais tentar dormir?,” a prontidão da resposta liquidou-lhe todas as esperanças “Achas que conseguia? Isto é tão desconfortável! E não páram de cirandar a caminho das casas-de-banho,” um facto, realmente não havia minuto em que sentissem alguém a arrastar-se, pelo exíguo corredor, ladeado de assentos e assentos, a caminho de um inglório destino, uma ideia começou a materializar-se-lhe em palavras “Afinal, as aldeias de pais ou sogros são destinos bem apelativos para as férias,” em menos de três horas chegam a qualquer uma, o tempo de aeroporto, há que somar o vôo, se não houver atrasos, estava perdido nestes pensamentos enquanto um saudoso sentir o invadia, quando uma voz longínqua “Querem café, água ou sumo?”, ela antecipou-se-lhe “Não, muito obrigada,” nem oportunidade teve de se manifestar, serviu para o despertar ligeiramente, ainda lhe ocorreu dizer em surdina “Afinal, as aldeias de pais ou sogros são destinos bem apelativos para as férias,” mas algo o dissuadiu, uma voz mecânica a anunciar uma zona de turbulência, prontamente deram as mãos, a ternura desponta nos pequenos nadas da existência, no entanto, como a enriquece, passava das seis da manhã locais quando aterraram, “Não sei como vamos conseguir descansar…”, “E daqui a pouco amanhece!,” o olhar dela ao nível dos sapatos, tudo tão diferente do imaginado, além de uma monumental dor de cabeça, de repente, pelo pensar, a imagem daquela pindérica lá do seu trabalho, a que não pára de correr o cão, nas fotos que publicava nem vestígios de cansaço, de olhares ao nível dos sapatos, da gigantesca fadiga pelas odisseias aeroportuárias, nada, apenas cenários idílicos e sorrisos solares, como se o sonho lhe acompanhasse os passos, chegaram ao hotel já o sol fazia nascer sombras a Oeste, entre eles um acordo sublimado de poupar o verbo, a energia escasseava, ele, num derradeiro assomo de energia, para um dos recepcionistas “O pequeno-almoço até que horas é?”, dez e trinta, disponham de três para se estender numa cama e fechar os olhos, antes “Põe o despertador! Não vou perder o pequeno-almoço nem o resto do dia! Temos de gozar isto e tirar o máximo de fotos possíveis! Para aquela pindérica e todas as outras verem quem é quem…”, talvez, aquando do regresso, alguém lhes recorde que viram tudo sempre através de um écran, mas isto é uma possibilidade, porque esse alguém, quem sabe, tenha optado pelo silêncio.

Pedro de Sá

(04/02/25)

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